Ambiente Jurídico

Hermenêutica e aplicação do direito do patrimônio cultural no Brasil

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

22 de abril de 2023, 8h00

Os estudos acadêmicos e doutrinários a respeito da tutela do patrimônio cultural brasileiro vêm ganhando força ao longo dos anos, sendo reconhecido, gradativamente, que a temática guarda relevo para a nossa sociedade.

Em tal cenário, pesquisadores e autoridades nacionais, no âmbito de todos os poderes e funções, vão se apercebendo da necessidade de melhor conhecer e aplicar o chamado Direito do Patrimônio Cultural[1], extraindo-lhe o máximo de potencialidade e eficiência a fim de socorrer, quando necessário, os bens culturais expostos a riscos ou ameaças.

No corrente ano de 2023 dois eventos nacionais de larga envergadura foram realizados a respeito do tema, atraindo maior atenção do mundo jurídico nacional sobre ele, em particular no que toca à sua hermenêutica (estudo e sistematização dos processos aplicáveis para se determinar o sentido e o alcance da disciplina) e aplicação (modo e meio de amparar juridicamente, de forma adequada, o interesse relacionado ao patrimônio cultural).

Entre os dias 15 e 17 de março foi realizado em Brasília, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) e pela Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Simpósio Internacional de Direito do Patrimônio Cultural e Natural, contando com a participação de juristas, diplomatas, cientistas, políticos e administradores públicos que discutiram os 50 anos da adoção internacional da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, com ênfase em suas conquistas, lacunas e desafios.

Adotada em Paris a 23 de novembro de 1972, durante a 17ª Sessão da Conferência Geral da Unesco, a Convenção, um dos mais relevantes instrumentos internacionais sobre o assunto, foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 74, de 30 de junho de 1974, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 80.978,  de 12 de dezembro de 1977, estando formalmente internalizada ao ordenamento jurídico pátrio.

No Simpósio na capital da República foi destacada a aplicabilidade  direta da Convenção de 1972 em nosso país, "seja porque seus princípios gerais e obrigações, mesmo os aparentemente mais abstratos e difusos, iluminam o sistema constitucional e legal brasileiro e com ele dialogam, em perfeita harmonia, coerência e complementaridade, seja por ser inadmissível que o país negocie, assine e ratifique tratados internacionais para em seguida ignorá-los ou só aplicá-los de maneira seletiva, cosmética ou retórica", conforme já decidido pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça)[2].

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Com efeito, nos termos do artigo 12 da Convenção da Unesco de 1972, a relevância cultural ou natural do bem não está condicionada à sua inscrição em lista oficial de proteção em virtude de tombamento ou de qualquer outra medida de acautelamento, podendo ser objeto de tutela  tanto pela via administrativa, quanto pela judicial.

Já no mês de abril, nos dias 4 e 5, ocorreu na histórica cidade de Ouro Preto, em Minas, o Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural, com o tema: "Radiografia da Legislação Brasileira de Patrimônio Cultural: Propostas de Aperfeiçoamento diante de Novos Paradigmas Ético-Jurídicos". Organizado pela Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto) e pelo MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais), o conclave reuniu pesquisadores, profissionais da área, alunos, gestores e detentores de saberes culturais de várias partes do país. As conclusões obtidas foram consolidadas na denominada Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira de Patrimônio Cultural.

Nos estudos e debates de Ouro Preto, reconheceu-se que o sistema normativo de proteção e salvaguarda ao patrimônio cultural, representado por diplomas de diversas épocas, é testemunho dos esforços empreendidos em prol da preservação de nossos bens culturais e constitui conquista incorporada ao patrimônio jurídico do povo brasileiro, não admitindo retrocessos. Foi ainda relembrado que os diferentes comandos previstos constitucionalmente a respeito do patrimônio cultural, por sua superior hierarquia, preponderam e orientam a aplicação dos dispositivos infraconstitucionais.

Na sequência, foi referendado que o atual ordenamento jurídico brasileiro relativo à proteção e salvaguarda do patrimônio cultural constitui "piso mínimo" e direito adquirido da sociedade brasileira, sendo inconcebível qualquer alteração normativa que implique redução do modelo protetivo já alcançado.

Em seguida, sobre a interpretação e a aplicação do ordenamento jurídico brasileiro relativo à proteção e salvaguarda do patrimônio cultural, assentou-se que elas deverão atender, entre outras, às seguintes diretrizes: I. Supremacia e autoaplicabilidade das normas de índole constitucional e convencional; II. Leitura sistêmica, com utilização, entre outras técnicas, da Teoria do Diálogo das Fontes e da interpretação conforme o texto constitucional; III. Máximo alcance e efetividade da atuação preventiva; IV. Preponderância do direito ao patrimônio cultural, por sua natureza difusa, imprescritível e intergeracional; V. Observância dos princípios gerais de tutela do patrimônio cultural.

Analisados os principais aspectos relacionados aos importantes eventos científicos, externamos nosso entendimento no sentido de que o arcabouço normativo material que trata da ordem pública do patrimônio cultural em nosso país reúne dispositivos de natureza constitucional e infraconstitucional que lhe confere suficiente robustez para sustentar satisfatoriamente a tutela dos bens culturais que sejam portadores de especial significado para a sociedade brasileira.

Conquanto  não desconheçamos que em tal arcabouço existem alguns "vazios regulatórios" que merecem maior atenção, debate e, quiçá, normatização legal, pensamos que os estudiosos e operadores do Direito não devem depositar inocentemente suas expectativas apenas no advento de quiméricas novas leis, que, per se, não resolvem — e não resolverão — os dinâmicos conflitos surgidos em nossa sociedade envolvendo  concretos ou potenciais bens culturais.

Parece-nos que o maior desafio que ora se coloca é o de analisar  detidamente os textos constitucionais, legais e regulamentares já existentes em centenas de atos, deles procurando extrair a necessária efetividade mediante o uso de técnicas especiais de interpretação e aplicação de direitos difusos, entre os quais sobreleva, reconhecidamente, o indisponível direito ao patrimônio cultural brasileiro.

Enfim, segundo as clássicas palavras de Carlos Maximiliano, "toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não verificarem, com esmero, o sentido e o alcance de suas prescrições".[3]


[1] Ramo especializado do Direito Público, composto  por normas e princípios que disciplinam e buscam a proteção, preservação, fruição, difusão e gestão dos bens culturais em nosso país. In:  MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Editora 3i. 2021.

[2] STJ; REsp 840.918; Proc. 2006/0086011-1; DF; Segunda Turma; Relª Minª Eliana Calmon Alves; Julg. 14/10/2008; DJE 10/09/2010. No mesmo sentido: STJ; REsp 1.293.608; Proc. 2011/0101319-3; PE; Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; DJE 11/09/2014.

[3] Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense. 19. ed. 2002. p. 9

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