Licitações e Contratos

Pré-qualificação de empresa estrangeira em licitação internacional

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

21 de abril de 2023, 18h18

É possível adotar a pré-qualificação internacional como meio de filtro de qualidade ou de especificidade técnica de produtos e serviços para contratos governamentais?

Sim, mas isso precisa ocorrer com isonomia para empresas brasileiras e estrangeiras, em respeito aos postulados do artigo 37, caput e inciso XXI, da Constituição.

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E a razão da ênfase sobre as empresas estrangeiras será explicada mais adiante.

Inicialmente, pode-se lembrar que a pré-qualificação já existia no artigo 80 do Decreto-Lei nº 2.300/86 (que tratava de Licitações e Contratos Administrativos) para concorrências de grande vulto e alta complexidade técnica, como uma "habilitação dos interessados em procedimento anterior e distinto da licitação", para que apenas os pré-qualificados fossem convidados a apresentar propostas.

A Lei nº 8.666/93 (que revogou o diploma legal anterior e veio trazer normas gerais sobre Licitações e Contratos Administrativos) estabeleceu a pré-qualificação em seu artigo 114 para concorrências, "a ser procedida sempre que o objeto da licitação recomende análise mais detida da qualificação técnica dos interessados".

Com a Lei nº 10.520 (que criou a modalidade de pregão), discussões surgiram, indo até tribunais de contas e judiciais, o que levou a alertas da jurisprudência de que a pré-qualificação deveria ser bem justificada e não para qualquer caso, sem motivo em complexidade técnica. Mas esse não é o foco do presente texto.

Tratando do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), a Lei nº 12.462/2011, inovou em seu artigo 15, impondo a publicidade do procedimento de pré-qualificação, como também em seu artigo 29, inciso I, criando a pré-qualificação permanente, e detalhando o procedimento em seu artigo 30, inclusive, fixando prazo de um ano de validade.

Já a Lei nº 13.303/2016 (Estatuto das Estatais) também veio incorporar em seu artigo 36 esse instituto; tratando em seu artigo 39 da publicidade obrigatória em prazos específicos; em seu artigo 47, inciso II, da possibilidade de amostras na pré-qualificação; em seu artigo 63, inciso I, da pré-qualificação permanente; em seu artigo 64, dos detalhes do procedimento, inclusive condições, realização por grupos ou segmentos de fornecedores e o modo parcial ou total (quanto a requisitos a serem verificados); e tratando, ainda, de detalhes como o prazo de validade de 1 (um) ano e a divulgação dos nomes dos pré-qualificados.

Por fim, a Lei nº 14.133/2021, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, merece destaques de trechos expressos, por aproveitar várias ideias daquelas normas e trazer o arcabouço de regras mais completo já existente:

"Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
(…)
XLIV – pré-qualificação: procedimento seletivo prévio à licitação, convocado por meio de edital, destinado à análise das condições de habilitação, total ou parcial, dos interessados ou do objeto;
(…)
Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente:
(…)
II – exigir amostra ou prova de conceito do bem no procedimento de pré-qualificação permanente…
(…)
Art. 78. São procedimentos auxiliares das licitações e das contratações regidas por esta Lei:
(…)
II – pré-qualificação;
(…)
Art. 80. A pré-qualificação é o procedimento técnico-administrativo para selecionar previamente:
I – licitantes que reúnam condições de habilitação para participar de futura licitação ou de licitação vinculada a programas de obras ou de serviços objetivamente definidos;
II – bens que atendam às exigências técnicas ou de qualidade estabelecidas pela Administração.
§ 1º Na pré-qualificação observar-se-á o seguinte:
I – quando aberta a licitantes, poderão ser dispensados os documentos que já constarem do registro cadastral;
II – quando aberta a bens, poderá ser exigida a comprovação de qualidade.
§ 2º O procedimento de pré-qualificação ficará permanentemente aberto para a inscrição de interessados.
§ 3º Quanto ao procedimento de pré-qualificação, constarão do edital:
I – as informações mínimas necessárias para definição do objeto;
II – a modalidade, a forma da futura licitação e os critérios de julgamento.
§ 4º A apresentação de documentos far-se-á perante órgão ou comissão indicada pela Administração, que deverá examiná-los no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis e determinar correção ou reapresentação de documentos, quando for o caso, com vistas à ampliação da competição.
§ 5º Os bens e os serviços pré-qualificados deverão integrar o catálogo de bens e serviços da Administração.
§ 6º A pré-qualificação poderá ser realizada em grupos ou segmentos, segundo as especialidades dos fornecedores.
§ 7º A pré-qualificação poderá ser parcial ou total, com alguns ou todos os requisitos técnicos ou de habilitação necessários à contratação, assegurada, em qualquer hipótese, a igualdade de condições entre os concorrentes.
§ 8º Quanto ao prazo, a pré-qualificação terá validade:
I – de 1 (um) ano, no máximo, e poderá ser atualizada a qualquer tempo;
II – não superior ao prazo de validade dos documentos apresentados pelos interessados.
§ 9º Os licitantes e os bens pré-qualificados serão obrigatoriamente divulgados e mantidos à disposição do público.
§ 10. A licitação que se seguir ao procedimento da pré-qualificação poderá ser restrita a licitantes ou bens pré-qualificados.
(…)
Art. 165. Dos atos da Administração decorrentes da aplicação desta Lei cabem:
(…)
I – recurso, no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da data de intimação ou de lavratura da ata, em face de:
a) ato que defira ou indefira pedido de pré-qualificação de interessado ou de inscrição em registro cadastral, sua alteração ou cancelamento;
(…)
Art. 174. É criado o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), sítio eletrônico oficial destinado à:
(…)
§ 2º O PNCP conterá, entre outras, as seguintes informações acerca das contratações:
(…)
III – editais de credenciamento e de pré-qualificação, avisos de contratação direta e editais de licitação e respectivos anexos;.”

Considerando tais premissas, cumpre partir para os alertas sobre a pré-qualificação nas licitações internacionais.

Primeiramente, deve-se lembrar que a Constituição e todos os vários regimes legais prezam por isonomia como princípio, de modo que, em uma eventual pré-qualificação internacional, além da divulgação nacional, a divulgação no exterior será essencial, para a isonomia de acesso à informação pelas empresas estrangeiras, sob pena de nulidade de procedimentos.

No caso, deve haver publicação de avisos no Portal dgMarket, o mais abrangente portal do mundo para divulgação de licitações e contratos administrativos, com informações de mais de 170 países e instituições como o Banco Mundial e outros organismos, ferramenta que dá acesso em tempo real a potenciais licitantes, globalmente, por pesquisa ou alertas por filtros pré-definidos para avisos por e-mail aos assinantes, os potenciais licitantes.

A ferramenta acima mencionada, de publicação isonômica (o que nunca ocorria com publicações em um ou outro jornal impresso no exterior) e sem custos para os entes públicos trata-se de portal que foi idealizado pelo próprio Banco Mundial em 2001 e propagado no Brasil em cursos de licitações internacionais a partir de 2009 pelo autor do presente artigo, quando nenhum ente de execução ou controle interno ou externo aqui tratava de sua existência.

Considerando que a pré-qualificação antecederá a licitação internacional, deve-se também publicizar o aviso, especialmente em inglês (idioma padrão global de negócios, inclusive, padrão no www.dgmarket.com), com envio para a lista de e-mails dos Setores de Promoção Comercial/Secoms) do Brasil no exterior, ou seja, da lista dos contatos comerciais de embaixadas e consulados do Brasil em outros países, conforme a lista sempre atualizada no site do Ministério das Relações Exteriores.

Depois, deve-se considerar que, ainda que dos 16 (dezesseis) anuentes de comércio exterior, que dão a palavra final nas importações via Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Exército brasileiro e outros que tratam de produtos com regulação específica, uma pré-qualificação tem foco um diferente, não de tudo que é permitido entrar no Brasil, mas algo com pertinência ligada à qualidade e/ou aspectos técnicos necessários para a demanda específica.

Por tal razão, mesmo uma luva registrada perante a Anvisa pode não ser aceita em certas licitações pelos hospitais, o mesmo ocorrendo com dispositivos de imagens para diagnóstico, que possuem determinado grau de precisão e certeza maior ou menor (isso faz muita diferença, na prática, com um sério risco de erro para o procedimento a ser adotado pelo médico). Não se trata, portanto, apenas de observância do compliance regulatório, mas condição a atender à demanda concreta, que justifica um filtro prévio a igualar a competição para certos padrões específicos.

Do mesmo modo, nem todo tipo de fuzil certificado por organismo de certificação designado pelo Exército serve para o emprego em determinadas operações de segurança pública e defesa nacional, dependendo do espaço no qual será utilizado, do nível de precisão exigido para certas operações táticas, das condições de uso, do tipo de mecanismo que aceite diferentes munições e tantos outros fatores técnicos. Aliás, nisso o Brasil "se prejudica" quando fecha mercado exigindo, sem amparo em lei específica, mas meras normas administrativas, certificação realizada dentro do território brasileiro e, em parte considerável, com base em padrões ("standards") de anos atrás, prejudicando muito as compras públicas.

Igualmente, nem todo equipamento de tecnologia da informação e telecomunicação homologado pela Anatel serve para certos projetos que dependem de interação entre dispositivos de diferentes redes e dispositivos antigos com novos, além de dispositivos para os quais se exige níveis de proteção para missões críticas, inclusive, quanto à proteção de dados.

Em outro nicho, nem toda aeronave com certificado de aeronavegabilidade perante a Anac serve para uso em certas missões de resgate pela defesa civil ou para uso em determinadas missões de órgãos de proteção ambiental e operações de segurança pública e defesa nacional.

Nem todo tipo de embarcação aprovada pela Autoridade Marítima no Brasil serve para patrulha de rios e lagos, porque o grau de inclinação ("deadrise") de casco em "v profundo" (20° a 24°) pode fazer a diferença em preservar vida dos policiais que dependem de manobras em extremas e de alto risco de serem atingidos.

Para concluir, nem todos os tipos de produtos com LED que possuem certificação para uso em iluminação pública pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia) servem para determinados padrões de ciclo de vida e de tipo de aplicação (entes federais, estaduais, municipais e também concessionárias já perderam milhões de dólares com importações de produtos que, embora certificados, não possuem determinados padrões específicos para aplicações demandadas).

Assim, em se tratando de pré-qualificação, que continua como não utilizável para todo e qualquer caso, e não obstante a necessária e obrigatória abertura de mercado, em especial quando o Brasil tem mercado tão limitado em certos objetos, e embora seja importante respeitar o compliance regulatório, para ampliar competitividade ao tempo em que se preserva respeito às regulações de produtos e serviços, que balizam qualidade e segurança de contratações públicas, há muito mais a ser considerado.

Isso porque o Brasil chega ao extremo de ter em suas licitações produtos de empresas que praticam "dumping" no exterior, mas aqui estão livres, praticando concorrência desleal, predatória, em parte incentivada por alguns governos que não prezam por uma economia de mercado livre e justa, o que se evidencia por produtos que, ainda que passem por validações regulatórias mínimas, não possuem qualidade e aspectos técnicos necessários ao que se conhece como "best value" (melhor valor) para uma contratação pública.

Por fim, observe-se que a pré-qualificação de empresas estrangeiras, que deve ser concretizada em mesmo procedimento de convocação aberto às brasileiras, com uma divulgação no Brasil e no exterior em simultaneidade de oportunidades, precisa considerar, ainda, tempo maior de antecedência, até porque as empresas estrangeiras precisam de tempo adicional para obtenção de documentos equivalentes ou aferição de inexistência de certos documentos equivalentes em seus países, além de tempo para procedimentos adicionais de compliance e de observância de regras de combate à corrupção a serem consideradas na decisão de participação em potencial contrato com ente governamental estrangeiro.

Há ainda outra questão prática: pré-qualificação internacional também deve ficar aberta a novos interessados até o ponto mais próximo possível da potencial licitação a ser realizada, para que não se tenha perda de competitividade.

Em conclusão, a pré-qualificação internacional é possível, como um instrumento de filtrar qualidade e técnica, de modo a agilizar as licitações em seguida e manter padrões aceitáveis mínimos para o contrato, mas há necessidade de mais tempo e de um ajuste de regras para preservar pertinência para o objeto da contratação sem ir ao extremo de prejudicar o acesso aos estrangeiros. E lembrando que nem sempre será o caso de usar esse instrumento, porque isso dependerá também do objeto.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

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