Embargos Culturais

O romance histórico Um Mapa Todo Seu, de Ana Maria Machado

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

16 de abril de 2023, 8h00

Ana Maria Machado (da Academia Brasileira de Letras) publicou pela Editora Alfaguara o romance histórico Um Mapa Todo Seu. Trata do romance (real) entre Joaquim Nabuco e Eufrásia Teixeira Leite. Nabuco, notabilizou-se como diplomata, escritor e político. Foi um campeão do abolicionismo. Eufrásia foi uma mulher notável. Investidora, habilíssima em negócios, multiplicou a fortuna que herdou do pai. Não deixou herdeiros. Seu testamento é um exemplo de filantropia.

Spacca
Esse rumoroso romance também foi explorado por Cláudia Lage (Mundos de Eufrásia, Editora Record) e por Eneida Queiroz (A Mulher e a Casa, Editora Baraúna). A vida de Nabuco é contada em várias biografias, tanto as laudatórias (Luiz Viana Filho), quanto as críticas (Angela Alonso), bem como nos registros da própria filha de Nabuco, Carolina.

Sugiro que o leitor comece pelo posfácio, que a autora simplesmente designa "aos leitores". Deixa claro que se trata de uma obra de ficção, inspirada nas vidas de Nabuco e de Eufrásia, a quem se refere como Quincas (e Nabuco era de fato apelidado de Quincas, o Belo) e Zizinha. Ana Maria nos explica os porquês desses diminutivos tão familiares no século 19. Evitava-se, segundo a autora, que meninas fossem chamadas "Domitila, Deodorina, Erotildes ou Eufrásia, como mandava a pia batismal".

O pano de fundo dessa ficção histórica nos coloca algumas questões atualíssimas, especialmente quanto ao padrão de relação entre um homem e uma mulher. Porque Eufrásia era rica, muito rica, e porque Nabuco era tido pela irmã de Eufrásia (e por muitas outras pessoas) como um dândi caçador de dotes, fica evidente, na narrativa de Ana Maria, a luta de Eufrásia para manter o domínio de seu patrimônio. Ao que consta, a situação constrangia e humilhava Nabuco. Ana Maria relata o juízo que a sociedade fazia do jovem Nabuco, reputado como um "dândi tropical". Lê-se em Um Mapa Todo Seu que "o belo Quincas [era], modelo de elegância em sua casaca bem talhada, flor na lapela, bigodes impecáveis, ombros largos e porte altaneiro".

Ao longo do livro há muitos registros históricos que sustentam a narrativa. A exposição universal de Paris, a luta de Vítor Hugo pelo reconhecimento da propriedade intelectual de escritores, o processo da abolição da escravidão no Brasil, o problema da substituição da mão-de-obra, a atividade política e diplomática de Nabuco. Há um pequeno lapso, que não desqualifica o livro, relativa à citação do pai de Nabuco, e sua relação com o Código Civil, cujo projeto fora contratado para redigir. Na segunda referência, a autora menciona Código Penal. À época, havia Código Criminal em plena vigência. A definição do narrador de algum modo fica problematizada, à luz, por exemplo do uso de expressões como "monetizar", que me parece ainda não utilizada à época.

A narrativa é intrigante. O leitor (meu caso) fica o tempo todo dividido. Não se sabe se Nabuco era um dândi interesseiro ou um abnegado defensor da escravidão. A biografia de Angela Alonso dá muitas pistas nesse sentido.

Deve-se reconhecer que Nabuco notabilizou-se pela extraordinária capacidade de argumentador, aglutinador e de líder pela inteligência. Mas era também contraditório, porque revolucionário e ao mesmo tempo conservador. Nabuco viveu as ambiguidades de um tempo de escolhas inconciliáveis. Na organização do Estado, Império ou República? Na formulação econômica, agricultura ou indústria? Na literatura, romantismo ou realismo? Na filosofia, o positivismo francês ou o idealismo alemão? Na política, conservadorismo ou liberalismo? Na fixação do regime de trabalho, escravos ou proletários? Na parceria, Inglaterra ou Estados Unidos?

Monarquista que lutou contra a escravidão, instituição que era um dos esteios da Monarquia; revolucionário cuja medida da rebeldia era o gesto sublime da conciliação; admirador de uma Inglaterra ordeira que teimava em se reproduzir em algumas fórmulas norte-americanas; jornalista na Inglaterra e embaixador nos Estados Unidos; é a síntese das tensões que marcaram a passagem da Monarquia para a República. Na narrativa de Ana Clara, Nabuco era refratário ao casamento, na medida em que o casamento resultava na criação de raízes, "e aquilo que tem raízes, como toda árvore, vegeta".

Eufrásia era uma mulher segura, absolutamente consciente da extensão de seu poder econômico, que não poderia se curvar aos ditames de um casamento, tal como a instituição se desenhava à época. Entende-se nesse romance que a irmão de Eufrásia opôs veementemente ao casamento. Insistia que Nabuco era um interesseiro, e que gastaria a fortuna da família. É fato que Nabuco perdeu parte do dote que recebera no casamento que contraiu com Evelina, ao investir erroneamente na bolsa de valores da Argentina.

Personalidades conflitantes e complementares. É um exemplo de caso de amor bem-sucedido, o que parece paradoxal, justamente porque nunca se casaram. O modo independente de Eufrásia fica patente na imaginária (ou real) aproximação que teve com Paul Gauguin, o pintor pós-impressionista francês, que havia, de fato, trabalhado como corretor de valores em Paris. Não seria de todo improvável que se conhecessem.

São intrigantes essas conjecturas, que desafiam as fronteiras entre a realidade e a ficção. Em Um Mapa Todo Seu há passagens de algum exagero estilístico, a exemplo da descrição da dança entre Quincas e Zizinha: "Girando em perfeita sintonia sob os candelabros de cristal, refletidos em inumeráveis espelhos, como se mais nada existisse no mundo além dos olhos um do outro, que mutuamente os sugavam para o fundo de si mesmos".

Não há em Um Mapa Todo Seu uma tensão que prenda o leitor. Especialmente para quem conheça a vida de Nabuco só uma solução para o romance. E não há como a autora alterar o desate. O romance histórico, acredito, é sempre menos romance e mais história. Não se pode negar os fatos ocorridos. Um desate diferente para a história justificaria que não se proclamasse a República, ou que a autora redefinisse nossa trajetória política. É esse o limite da ficção histórica. Sua camisa de força. Mas, ao mesmo tempo, sua magia inconteste. Como diria um crítico que muito admiro, "nada mais perigoso para a moral do que os moralistas". Esse história de amor foi protagonizada por dois moralistas.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!