Ambiente Jurídico

Aquecimento global e o direito humano a um clima estável

Autor

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

15 de abril de 2023, 8h00

"A evidência científica é inequívoca: as mudanças climáticas são uma ameaça ao bem estar do ser humano e à saúde do planeta." (Hans-Otto Pörtner)

 

As mudanças climáticas representam uma ameaça para a vida e ao bem-estar de indivíduos humanos e não humanos e para as comunidades em todo o mundo. O 6º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas forneceu uma imagem detalhada de como o aquecimento global afetará, e está afetando, adversamente bilhões de pessoas e os ecossistemas, recursos naturais e a infraestrutura física dos quais dependem todos os seres vivos [1].

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Essas externalidades negativas incluem eventos subreptícios que representam ameaça direta à vida em sentido amplo. No mesmo sentido, formas graduais de degradação ambiental que prejudicam o acesso à água potável, aos alimentos e a outros recursos essenciais que sustentam o equilíbrio planetário são observáveis nos dias atuais inclusive pelos olhares dos leigos e por estudos ecológicos empíricos.

Assim, a mudança climática está tendo um efeito profundo e negativo no gozo dos direitos humanos por bilhões de pessoas. Essa não é uma previsão apocalíptica, catastrófica ou fora da realidade, mas a nua e crua realidade. As mudanças climáticas estão manifestando-se implacavelmente em nossos dias pelo aumento da intensidade e da frequência das secas, das enchentes, dos furacões, dos ciclones e das tempestades em todo o mundo [2]. Algumas regiões, logicamente, são mais afetadas que as outras pelo aumento das temperaturas. A elevação do nível do mar afetou adversamente a segurança e os meios de subsistência de muitas pessoas que vivem nas zonas litorâneas, situação esta agravada pela destruição das dunas e dos mangues por empreendimentos imobiliários e pela cobiça [3]. O aumento das temperaturas, ao seu turno, está causando mudanças significativas nos ecossistemas árticos que sustentam muitas comunidades indígenas [4], como os conhecidos Inuites no Canadá.

Embora a ligação entre as mudanças climáticas, suas causas antrópicas bafejadas pelo utilitarismo e a violação dos direitos humanos seja clara, foi apenas nos últimos anos que os órgãos responsáveis da ONU e os governos nacionais começaram a desenvolver alguns consensos sobre esse fenômeno de lesa-vida. Existe quase uma unanimidade científica de que as mudanças climáticas estão afetando o pleno gozo dos referidos direitos pelos mais pobres e pelas minorias discriminadas. Não existe acordo doutrinário, no entanto, sobre a natureza das obrigações correspondentes dos governos e dos atores privados no que tange as implicações do aquecimento global sobre os direitos humanos. No entanto, existem princípios bem estabelecidos e emergentes que são aplicáveis nesta era do Antropoceno.

As obrigações se baseiam principalmente nos direitos enumerados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, pois estes constituem o núcleo do direito internacional dos direitos humanos. Os compromissos dos Estados em relação a UNFCCC e outros acordos também têm sido debatidos com profundidade no âmbito do direito internacional. As obrigações legais de um país podem diferir dependendo evidentemente de quais tratados foram ratificados e, quase sempre, da boa vontade política de cada nação. Está sendo construído um consenso bastante racional do ponto de vista científico de que a maioria, ou todos os direitos enumerados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, constituem o chamado direito internacional consuetudinário e, como tal, são vinculativos para todos os Estados, independentemente do status de ratificação do tratado [5].

As obrigações dos governos em relação aos direitos humanos internacionais são frequentemente caracterizadas por implicar em três tipos de deveres conhecidos: a) o dever de respeitar os direitos humanos, uma obrigação negativa, que exige que os Estados se abstenham de adotar ações que possam interferir ou reduzir o gozo dos direitos humanos; b) o dever de proteger os direitos humanos contra violações de terceiros; c) o dever de implementar os direitos humanos, uma obrigação positiva, que exige que os Estados adotem medidas para garantir a realização dos direitos para todos os membros da sociedade [6].

Outros diplomas também se referem a um dever, compatível com os princípios da fraternidade e da dignidade da pessoa humana, que pode ser entendido como uma obrigação relacionada, mas distinta, de "promover o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos humanos" [7]. Neste ponto os deveres do Estado podem ser divididos para fins conceituais em: a) obrigações procedimentais; b) obrigações substantivas; c) e, obrigações em relação aos indivíduos que são membros de grupos específicos(especialmente as minorias e os mais pobres).

A legislação dos direitos humanos impõe várias obrigações processuais aos governos no que tange aos impactos ambientais de suas atividades e ao cumprimento de deveres de precaução e de prevenção no âmbito internacional. Isso inclui obrigações relacionadas à boa governança climática, a coleta e a disseminação de informações verídicas e transparentes sobre os impactos ambientais e climáticos dos empreendimentos, a facilitação da participação popular no processo de tomada de decisões que envolvem riscos e ao fornecimento de soluções para a reparação dos danos ambientais. Essas obrigações são baseadas em direitos civis e políticos, mas foram definidas e estendidas para o contexto ambiental com base em toda uma gama de direitos humanos ameaçados pelos perigos dos danos climáticos [8].

Os governos também têm obrigações únicas com relação às decisões que afetam, por exemplo, os povos indígenas e suas terras, como o dever de obter o consentimento livre, prévio e informado destes povos antes de tomar decisões que afetam adversamente quaisquer terras ou recursos que eles tradicionalmente possuem ou ocupam.

A Assembleia Geral da OEA, neste sentido, aprovou a Resolução Direitos Humanos e Mudança Climática nas Américas, em sessão plenária, realizada em 3 de junho de 2008 (AG/Res. 2.429 (XXXVIIIO/08). E a Corte Interamericana de Direitos Humanos(CIDH) consagrou o direito ao meio ambiente como um direito humano, na Opinião Consultiva (OC) 23/2017 . Na referida OC, a CIDH reconheceu ao direito à alimentação adequada e ao direito à água potável a definição de direitos humanos autônomos e passíveis de serem pleiteados em juízo em caso de violação [9]. Colômbia e Chile, em 9 de janeiro deste ano (2023), por sua vez, apresentaram solicitação de Parecer Consultivo à CIDH com o propósito de esclarecer o alcance das obrigações estatais, em suas dimensões individual e coletiva, para responder à emergência climática no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos [10].

Na seara de competência da Organização das Nações Unidas, o Conselho de Direitos Humanos, por meio da Resolução 7/23 (2008), reconheceu que as mudanças climáticas representam uma ameaça imediata e de longo alcance para as pessoas e comunidades em todo o mundo e têm um impacto no pleno gozo dos direitos humanos. O mesmo Conselho emitiu, faz pouco, no ano de 2021, a Resolução A/HRC/48/L.23/Rev.1, na qual consta o expresso reconhecimento ao direito ao meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável como um direito humano.

A relação entre o aquecimento global e as respostas às mudanças climáticas está tendo, e terá cada vez mais, efeitos profundos e diretos no exercício e no gozo dos direitos humanos para bilhões de pessoas. Isso ocorre, não apenas, pelos impactos diretos dos desastres e das catástrofes que atingem os seres humanos que vivem em zonas urbanas e rurais, mas também pela degradação dos ecossistemas e dos recursos ambientais dos quais muitas vidas — também não humanas — dependem integralmente. Os Estados têm obrigações de respeitar, de proteger e de implementar os direitos humanos, e isso inclui deveres de corte imediato das emissões domésticas dos gases de efeito estufa, de proteção aos cidadãos contra os efeitos nocivos das mudanças climáticas e a firme garantia que as respostas às mudanças climáticas não resultem em violações dos próprios direitos humanos. As nações precisam avançar no sentido da adoção de políticas de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas, atendendo assim, também, ao ODS 13 da Agenda 2030 para O Desenvolvimento Sustentável , que exige uma ação climática. Para isso, contudo, é preciso trabalhar em cooperação, com solidariedade e, especialmente, altruísmo para garantir a proteção dos direitos humanos de todos os cidadãos do mundo [11].

 


[1] IPCC, CLIMATE CHANGE 2022: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. Disponível em: https://www.unep.org/pt-br/resources/relatorios/sexto-relatorio-de-avaliacao-do-ipcc-mudanca-climatica-2022. Acesso em: 10.04.2023.

[2] OXFAM INTERNATIONAL. Entering uncharted waters: El Niño and the threat to food security. Disponível em: https://www.oxfam.org/en/research/entering-uncharted-waters-el-nino-and-threat-food-security. Acesso em: 10.04.2023.

[3] OLIVER-SMITH, Anthony. Sea Level Rise and the Vulnerability of Coastal Peoples: Responding to the Local Challenges of Global Climate Change in the 21st Century, UNU-EHS Publication No.7/2009 (July 2009).

[4] UNITED NATIONS. The Core International Human Treaties. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Publications/CoreInternationalHumanRightsTreaties_en.pdf. Acesso em: 10.04.2023.

[5] Sobre a relação entre meio ambiente, mudanças climaticas e violação dos direitos humanos, ver: HENKIN, Louis. Human Rights and State Sovereignty, 25 Georgia Journal of International Law 37(1995-1996); BOYD, David R. The environmental rights revolution: a global study of constitutions, human rights, and the environment. Vancouver: University of British Columbia Press, 2012; VOIGT, Christina. UNHRC is turning up the heat: human rights violations due to inadequate adaptation action to climate change. Blog of the European Journal of International Law, Set. 26, 2022. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/unhrc-is-turning-up-the-heat-human-rights-violations-due-to-inadequate-adaptation-action-to-climate-change/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_campaign=ejil-talk-newsletter-post-title_2. Acesso em: 20.03.2023; SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago; WEDY, Gabriel. A equiparação dos tratados de direitos ambientais aos tratados de direitos humanos. In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-15/direitos-fundamentais-equiparacao-tratados-ambientais-aos-direitos-humanos. Acesso em: 10.04.2023.

[6] UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. International Human Rights Law. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/internationallaw.aspx. Acesso em: 20.03.2023.

[7] UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. Vienna Declaration and Programme of Action. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/vienna.aspx. Acesso em: 20.03.2023.

[8] CENTER FOR INTERNATIONAL ENVIRONMENTAL LAW. Male’ Declaration on the Human Dimension of Global Climate Change

Disponível em: http://www.ciel.org/Publications/Male_Declaration_Nov07.pdf. Acesso em: 10.04.2023.

[9] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em: 10.04.2023.

[10] CEJIL. Chile e Colombia unem forças para pedir a CIDH diretrizes para responder a emergência climática. Disponível em: https://cejil.org/pt-br/blog/chile-e-colombia-unem-forcas-para-pedir-a-corte-interamericana-de-direitos-humanos-diretrizes-para-responder-a-emergencia-climatica/. Acesso em: 10.04.2023.

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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