Opinião

A retroatividade do dolo específico na Lei de Improbidade

Autores

13 de abril de 2023, 9h18

Em setembro de 2022, nos autos do ARE nº 843.989/PR, decidiu o STF (Supremo Tribunal Federal) pela retroatividade da exigência de dolo para a configuração de ato de improbidade, mas apenas para os processos em curso e os fatos não processados. Isto é, a decisão não alcança nem os casos já transitados em julgado nem aqueles em fase de execução (o processo de conhecimento já se encerrou e o feito está na fase de cumprimento de sentença).

O objetivo aqui, contudo, não é revisitar essa decisão, que já foi objeto de extensa análise em artigo publicado aqui mesmo nesta ConJur. O foco é endereçar um desdobramento desse entendimento que não foi objeto de análise específica pela STF. Para tanto, importante dar alguns passos para trás e realizar alguns esclarecimentos.

Já não é novidade que com a Lei nº 14.230/21, que provocou profundas reformas na Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), passou a exigir o elemento subjetivo dolo como indispensável para a configuração de ato de improbidade, seja ele previsto nos artigos 9, 10 ou 11. Ocorre que, e esse é o ponto relevante aqui, enquanto a lei anterior falava em dolo genérico, após a Lei de Reforma passou a se exigir a presença de dolo específico [1], no sentido de que o agente deve praticar o ato com a finalidade específica de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (§§ 1º e 2º do artigo 11).

Nesse contexto: o STF definiu que a exigência de dolo retroage aos processos em curso, de modo que agentes e terceiros não podem ser condenados por atos culposos. Mas e a exigência de que o dolo seja específico? Ela também retroage? Em nosso entender, sim.

Embora esse desdobramento específico não tenha sido objeto de decisão no ARE nº 843.989/PR, a sua ratio decidendi de admitir a aplicabilidade das novas disposições aos atos culposos praticados na vigência do texto anterior da lei atinge também os atos dolosos praticados nessa mesma condição. Com efeito, se é admitida a retroação da nova disposição quanto aos atos culposos, há de se admitir também a retroação com relação aos atos praticados com dolo genérico. Inclusive, não podemos deixar de observar que a primeira das teses firmadas pelo STF estabelece que é necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade, exigindo-se a presença de dolo. E dolo, na nova Lei, é aquele específico.

Consequência desse entendimento é que, em ações ajuizadas antes da vigência da Lei nº 14.230/21, caso o Ministério Público ou a pessoa jurídica interessada impute ao acusado a prática de ato doloso (genérico), a ele deve ser garantida a oportunidade de se manifestar quanto ao enquadramento da conduta na exigência de dolo específico prevista nos §§ 1º e 2º do artigo 11. Não é hipótese de extinção imediata do processo, pois não se pode exigir do órgão acusador o cumprimento de uma exigência (demonstração de dolo específico) não prevista na lei em vigor no momento do ajuizamento da ação.

Dizendo de outro modo, nas ações em curso em que imputado ao acusado ato de improbidade praticado com dolo genérico, antes de extinguir a ação o juiz deve oportunizar a manifestação do acusador, que pode ou se manifestar pela presença de dolo específico na conduta, inclusive com a produção de provas complementares aptas a comprovar suas alegações, ou desistir da ação caso entenda que o acusado não praticou o ato com o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (ausência de dolo específico).

Em uma palavra final, tanto atos culposos quanto atos dolosos praticados sem a intenção de se auferir proveito ou benefício indevido são atingidos pelas novas disposições da Lei nº 14.230/21. Isso significa que, na linha da decisão do STF, não há mais o que se falar nem em ato culposo de improbidade nem em ato de improbidade praticado com dolo genérico, lembrando, contudo, da necessidade de o juiz abrir prazo para o acusador se manifestar quanto ao enquadramento da conduta nos requisitos previstos na Lei nº 14.230/21 antes de extinguir a ação.

 


[1] O traço que diferencia o dolo geral do específico é a presença ou não de uma finalidade específica na conduta do agente, para além da simples vontade de praticá-la.

Autores

  • é graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (Unicuritiba), especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Positivo e advogada controller.

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), árbitro e advogado.

  • é doutor em filosofia e Teoria do Direito pela Uerj, mestre em Direito Público pela Unisinos, vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!