Fábrica de Leis

Parlamento Amazônico: clima, desenvolvimento sustentável e soberania

Autor

11 de abril de 2023, 8h00

Desde 2019, acompanho o movimento de diplomacia parlamentar pela oficialização do Parlamento Amazônico no contexto do Tratado de Cooperação Amazônica, firmado em Brasília, em 3 de julho de 1978, por Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.[1]

Coube ao Brasil dar o passo inicial, por meio do Projeto de Resolução do Senado 12/2020, de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD/MS), cujo relatório do senador Eduardo Braga (MDB/AM) adotou uma sugestão da Consultoria Legislativa para superar o obstáculo representado pelo fato de que o Parlamento Amazônico, associação parlamentar informal criada em Lima, Peru, em 1989, não possuía (e ainda não possui) personalidade jurídica de qualquer espécie, seja privada, pública, nacional ou internacional, o que impossibilitava que o Senado estabelecesse relações formais com ele.

A fórmula encontrada foi a de incorporar a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), braço executivo do Tratado, com sede em Brasília, dotada de personalidade jurídica de direito internacional público —, como sustentáculo institucional do movimento de diplomacia parlamentar pela oficialização o Parlamento Amazônico.[2] Daí que proposta original do PRS 12/2020, de criação do Grupo Parlamentar do Parlamento Amazônico, tenha resultado na Resolução do Senado 13/2021, instituidora do Grupo Parlamentar da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (GPOTCA).

As ações do grupo, previstas em modo não exaustivo nos incisos e no §1º do artigo 3º da resolução[3], tem como objetivo maior, expressamente declarado no relatório do senador Eduardo Braga, criar as condições políticas para que os presidentes dos países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica celebrem um Protocolo Adicional constitutivo do Parlamento Amazônico como assembleia parlamentar representativa dos povos dos países amazônicos dotada de personalidade jurídica de direito internacional público e inserida institucionalmente no processo de cooperação regional regulada pelo pacto.

O movimento nasceu em dezembro de 2019, em reunião na embaixada do Equador, quando o então presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, senador Nelsinho Trad, recebeu dos embaixadores dos países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica o pedido para que o Brasil tivesse a iniciativa de coordenar os parlamentos dos países signatários.[4] 

Sintetizo aqui os passos que se seguiram, os quais registrei com maior detalhamento em trabalho acadêmico: "O Parlamento Amazônico na geopolítica da Amazônia: uma perspectiva brasileira", no curso de Poder Legislativo e Direito Parlamentar do Instituto Legislativo do Senado.[5] 

Passado o período mais crítico da pandemia da Covid-19, reunião em 30 de novembro de 2020 decidiu pela reativação do Parlamento Amazônico, e, em 21 de dezembro daquele ano, a assembleia parlamentar foi reativada, tendo o senador Trad sido guindado à sua presidência.[6]

O pedido dos diplomatas dos países signatários do Tratado, não por acaso, veio  num momento em que o Itamaraty, sob o chanceler Ernesto Araújo, sofria uma radical deriva na tradição de zelar pelo objetivo nacional permanente de fortalecer a nossa identidade sul-americana. Daí que ação de diplomacia parlamentar iniciada pelo Senado funda sua legitimidade constitucional na independência entre os poderes (artigo 2º, CF), na preservação dos fundamentos da República (artigo 1º, I e IV, CF), na realização dos seus objetivos (artigo 3º, I, II, II e IV) e na eficácia plena dos princípios regentes das relações internacionais (artigo 4º, I, III, IV, V, VI, VII, IX), especialmente a busca a integração latino-americana visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (parágrafo único do artigo 4º).

Preferimos referir o grupo parlamentar como Grupo Parlamentar da OTCA-Parlamento Amazônico e não apenas como Grupo Parlamentar da OTCA, o nome oficial constante da Resolução nº 13, de 2021. Assim o fazemos porque é a denominação que mais fielmente reflete a realidade do funcionamento do grupo. Embora a justificativa do relatório do PRS 12/2020 tenha assentado que "o mais correto seria que o grupo parlamentar fosse atrelado à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, posto que, esta sim, possui personalidade jurídica", as necessidades do processo político impuseram uma modulação àquela objeção formal. Na prática, o grupo parlamentar vem funcionando sob dois regimes jurídicos, o do Estatuto do Parlamento Amazônico e o do Regimento Interno do Senado. Ou, se preferirmos, vem funcionando sob um regime próprio, amálgama informal e oficioso dos dois regimes, embora a Resolução nº 13/2021 preveja outras regras de funcionamento.[7]

O êxito da estratégia pode ser medido pelos avanços obtidos. Depois de diversas reuniões, no Brasil e fora dele, é firmada em Brasília, em 18 de maio de 2022, a "Declaração Conjunta sobre a Institucionalização do Parlamento Amazônico no marco da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica", na qual os parlamentares dos países signatários exortam os governos a negociar rapidamente um Protocolo Adicional para institucionalizar o Parlamento Amazônico, manifestam o interesse de serem consultados por suas chancelarias durante o processo negociador e comprometem-se a dar celeridade à aprovação do instrumento.[8] Isso vindo a ocorrer, a experiência não será nova: o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul foi elaborado pela Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul, organismo que foi o embrião daquele parlamento regional.[9]

A herança política do Parlamento Amazônico
A história do Parlamento Amazônico se confunde com a luta dos países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica para afastar o risco de absorção e perda de soberania para potências extra-amazônicas. Na perspectiva brasileira, o Tratado e o Parlamento Amazônico são tributários de uma série de ações estratégicas do Estado nacional — ora do governo, ora do Congresso —  que conformaram uma geopolítica da Amazônia.

Os generosos contornos atuais do território nacional na sua porção setentrional são o resultado da determinação desbravadora portuguesa de homens como Pedro Teixeira e do engenho diplomático de Bartolomeu de Gusmão. O legado foi honrado e desenvolvido com tenacidade e boa técnica depois da Independência pela inteligência diplomática brasileira simbolizada pelo Barão do Rio Branco. Uma abordagem compreensiva do período republicano recomenda olhar para o histórico discurso "O destino brasileiro do Amazonas", do presidente Getulio Vargas, em 9 de outubro de 1940, em Manaus.

Proferido pelo primeiro presidente a ver a importância estratégica da Amazônia e primeiro a visitá-la, o épico discurso insere-se num período histórico em que o Estado estabelece a política de ocupação de "espaços vazios" e sua incorporação à sociedade nacional pela "Marcha para o Oeste", inspirada pelo nascente pensamento geopolítico brasileiro, na década de 1930, cuja maior expressão era o então capitão Mário Travassos.[10]

A primeira atuação parlamentar posterior deu-se quando, sob a liderança do deputado e ex-presidente Arthur Bernardes, o Congresso recusou-se a referendar a Convenção de Iquitos, que, em 10 de maio de 1948, criou o Instituto Internacional da Hileia Amazônica, uma entidade supranacional com poderes de gestão sobre a Amazônia. Tal a força da objeção congressual que o acordo foi simplesmente abandonado.[11]

As raízes do que se entende hoje por diplomacia parlamentar localizam-se no século 19, quando os representantes dos governos nas organizações de caráter permanente eram denominados "parlamentares".[12] Neste sentido, a atuação "parlamentar" de representantes nacionais não eleitos teve um momento notável durante da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, 1972, quando o Brasil, liderando setenta e sete países, lançou mão de "manobras parlamentares" para evitar que os países desenvolvidos impusessem um freio "ecológico" aos processos de desenvolvimento dos países pobres e emergentes.[13]

Na mesma linha, no final dos anos 1970, quando vicejava novamente a ideia de que pairavam ameaças de destruição da Amazônia, "patrimônio comum da humanidade", o Brasil coordenou um ingente esforço diplomático que resultou no Tratado de Cooperação Amazônica, acordo-quadro constitutivo de uma institucionalidade pan-amazônica garantidora da "preservação do meio ambiente e a conservação e utilização racional dos recursos naturais" para o "desenvolvimento integral" e a "conservação ecológica da Amazônia". [14]

O vigor diplomático que impulsionou as negociações e a celebração do Tratado dissipou-se na década seguinte em decorrência da crise financeira que atingiu as economias de periferia. A letargia diplomática cedeu vez à ação decidida quando os países signatários tiveram que se levantar contra a tese da soberania restrita sobre a Amazônia levantada na Cúpula de Haia (1989) e para resistir às pressões internacionais decorrentes da morte de Chico Mendes.

Naquele contexto político, marcado pelo signo da resistência às ameaças de perda de soberania, a convite do Congresso do Peru[15], representantes de sete parlamentos dos países signatários do Tratado reuniram-se em Lima nos dias 16, 17 e 18 de abril de 1989, para incorporar os legislativos e os parlamentares da Amazônia à realização dos objetivos do Pacto.

Perspectivas da oficialização do Parlamento Amazônico
A Cúpula do Tratado de Cooperação Amazônica

Ainda não empossado, o presidente eleito Lula participou 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 27), no Egito, onde  assumiu o compromisso de que, quando na presidência do G20, em 2024, o Brasil, colocará a agenda climática como prioridade. Também anunciou a futura candidatura do país para sediar a COP 30, em 2025. Na mesma ocasião, o presidente anunciou que acionará brevemente a Cúpula dos Países Membros do Tratado de Cooperação Amazônica.

Já empossado, em participação da reunião Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), na Argentina, o presidente matizou o universalismo climatológico professado no Egito e, na linha da posição brasileira expressada na Conferência de Estocolmo (1972), introduziu o tema das riquezas naturais da região e da soberania dos países amazônicos na definição das iniciativas a serem levadas à frente com recursos da cooperação internacional.

Tudo isso, somado à leitura do Requerimento nº 292, de 2023, de criação da CPI das ONGs[16] no Senado, aponta para a centralidade da Amazônia na pauta do Congresso em 2023 e, logo, para a possibilidade de que a oficialização do Parlamento Amazônico avance na anunciada Cúpula do Tratado de Cooperação Amazônica.


[1] Reativação do Parlamento Amazônico: é chegada a hora da diplomacia parlamentar pan-amazônica: aqui

[3] Art. 3º A cooperação interparlamentar dar-se-á por meio de:
I – visitas parlamentares;
II – congressos, seminários, simpósios, debates, conferências, estudos e encontros de natureza política, jurídica, social, tecnológica, científica, ambiental, cultural, educacional, econômica e financeira;
III – permuta periódica de publicações e trabalhos sobre matéria legislativa;
IV – intercâmbio de experiências parlamentares;
V – outras atividades compatíveis com os objetivos do Grupo Parlamentar.

§ 1º O Grupo Parlamentar poderá manter relações culturais e de intercâmbio, bem como de cooperação técnica, com entidades nacionais e estrangeiras.

[4] Senador Nelsinho Trad, 1ª Reunião. 21/12/2020 – 1ª – Grupo Parlamentar da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica https://legis.senado.leg.br/escriba-servicosweb/reuniao/pdf/9881

[6]  https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/9881

[7] Art. 4º O Grupo Parlamentar reger-se-á por seu regulamento interno ou, na falta deste, por decisão da maioria absoluta de seus membros fundadores, respeitadas as disposições legais e regimentais em vigor.

Parágrafo único. Em caso de omissão desta Resolução ou do regulamento interno do Grupo Parlamentar, aplicar-se-ão subsidiariamente as disposições do Regimento Interno do Senado Federal, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do Regimento Comum do Congresso Nacional, nessa ordem.

[8] Ata da reunião do Parlamento Amazônico realizada em 18 de maio de 2022, em Brasília. Mimeo.

[9] PARLAMENTO do Mercosul. História. Disponível em

https://www.parlamentomercosur.org/innovaportal/v/4495/2/parlasur/historia.html  Acesso em 29.11.2022.

[10] O pensamento de Mário Travassos, sintetizado na obra “A projeção continental do Brasil”, é tido, sem comprovação documental, como influenciador tanto do Plano Nacional de Viação de 1934, como da política externa, nos Eixos de Desenvolvimento da Integração da Integração Regional Sul-Americana – IIRSA, criada em 2000.  BITENCOURT, Jackson. A relação entre a obra “A Projeção Continental do Brasil” e os desafios geopolíticos do país. 2022. https://relacoesexteriores.com.br/desafios-geopoliticos-brasil/, acessado em 13.janeiro.2023.

[11] Décadas depois, em novembro de 1984, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, por meio do deputado Pedro Colin solicitou que o tratado fosse submetido à apreciação do parlamento brasileiro. Requereu-se, então, um parecer do Ministro de Relações Exteriores. O ministro Ramiro Saraiva Guerreiro lembrou que as relações entre os países da Hileia já estavam sob o amparo do Tratado de Cooperação Amazônica, firmado em julho de 1978, e que não havia razão uma nova discussão sobre o assunto. O tratado foi arquivado definitivamente em maio de 1985. NUNES, Paulo Faria. O Instituto Internacional da Hileia Amazônica: moinho combatido por um quixotesco Brasil. Estudos Jurídicos Ano II Número 1, 2009/ ISSN 1806-227X. Acessível em http://revista.universo.edu.br/index.php?journal=4pesquisa3&page=article&op=view&path%5B%5D=31&path%5B%5D=24. Acessado em 21.01.2023.

[12] MAIA, Clarita Costa, A diplomacia congressual: análise comparativa do papel dos legislativos brasileiro e norte-americano na formulação da política exterior, Revista de informação Legislativa, v. 41, n. 163, p. 363-388, jul./set. 2004, p. 363.

[13] BRASIL. Relatório da Delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente. v. I, Estocolmo, 1972a. Disponível aqui. Acesso em: 30.jan.2023.

[14]  Ricupero, Rubens. O Tratado de Cooperação Amazônica. Revista de informação legislativa, v. 21, n. 81, p. 177-196, jan./mar. 1984. Suplemento. http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/186318

 

[15] A integração dos parlamentos nacionais parece constituir uma tradição do Congresso Peruano, que já em 1964, fora o promotor da criação do Parlamento Latino Americano. SOUZA, Sully A. Parlamento Latino Americano: sua natureza, composição, atividades, assuntos tratados nas reuniões e assembleias. Brasília, Senado Federal, Revista de informação legislativa, v. 5, n. 20, p. 23-42, out./dez. 1968 Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/180767

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!