Direito Civil Atual

O CPC/15 não revogou o instituto do bem de família legal

Autor

  • Daniel Amaral Carnaúba

    é professor adjunto da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

10 de abril de 2023, 13h04

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Há pouco mais de um mês circulou em uma coluna desta ConJur texto que noticiava um entendimento jurisprudencial surpreendente: o TRF-2 teria, por meio de dois precedentes, encampado a tese de que o CPC/15 revogou tacitamente o instituto do bem de família legal, até então regulado pela Lei 8.009/90.

ConJur
Essa tese da revogação do bem de família legal segue uma argumentação elementar: o artigo 833 do CPC/15 teria regulado exaustivamente as hipóteses de impenhorabilidade no Direito brasileiro. Ocorre que, no extenso rol previsto nesse dispositivo, não consta a impenhorabilidade do imóvel que serve de moradia ao devedor, mas apenas dos bens "declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução" (artigo 833, I). Daí por que esse dispositivo teria revogado, tacitamente, o bem de família legal, garantindo a continuidade apenas do chamado "bem de família voluntário", previsto nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil.

A ideia provoca inevitável perplexidade: teria o CPC/15 extinguindo um dos mais usuais institutos do Direito Privado, sem que ninguém o notasse?

E a resposta a essa indagação é igualmente elementar: não; o CPC/15 não revogou o instituto do bem de família legal. Não o revogou expressamente, como fez com diversas outras leis; e tampouco o revogou de forma tácita, porquanto a Lei 8.009/90 continua compatível com atual diploma processual. A tese da revogação, em verdade, parte de dois erros de premissa: 1) que o rol de bens impenhoráveis do artigo 833 do CPC/15 seria taxativo; e 2) que, por se tratar de um instituto de natureza processual, a manutenção do bem de família legal dependeria de sua consagração no CPC/15.

Rol do artigo 833 do CPC/15 não é taxativo
A dúvida acerca da natureza do rol previsto no artigo 833 CPC/15 não é propriamente inusitada. Toda vez que a lei ou qualquer outro texto normativo inventaria uma série de hipóteses, surge o incontornável questionamento: este rol é taxativo ou exemplificativo? A recente controvérsia acerca do caráter taxativo ou exemplificativo do rol da ANS sobre as coberturas obrigatórias em planos de saúde ilustra o quanto essa discussão pode tomar proporções espantosas.

Não é, contudo, o que ocorre com relação ao rol do artigo 833 do CPC/15. Aqui, a questão foi liquidada pela própria legislação, mais precisamente, pelo art. 832 do mesmo Código:

"Artigo 832. Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis."

A palavra "lei", escolhida pelo legislador, não é acidental. Veja-se que o CPC/15 não disse "nesta lei" ou "neste Código", como fez em outros dispositivos quando está a se referir a si próprio (v.g. artigo 69, §1º; artigo 77 ou artigo 112 do CPC/15). A "lei', a que se reporta o artigo 833, é a legislação em sua acepção ampla; a legislação esparsa para além do Código. É nesse sentido, por exemplo, que o CPC/15 emprega essa expressão em seu artigo 3º. §1º ou em seu artigo 71. É também essa a razão que explica a de outra forma incompreensível redação do artigo 249, que menciona as "hipóteses previstas neste Código ou em lei".

Isso demonstra que o CPC/15 admite que as hipóteses de impenhorabilidade estarão previstas em toda a legislação, e não apenas no próprio Código. O rol do artigo 833 do CPC/15, portanto, convive perfeitamente com outros casos de impenhorabilidade; o que, aliás, é corroborado pela redação desse dispositivo que, em seu caput, afirma singelamente que "são impenhoráveis" os bens ali elencados — e não que seriam impenhoráveis apenas aqueles bens.

A estrutura do CPC/15 fica assim evidente. Em seu artigo 832, o Código explicita que estão excluídos da penhora todos os bem considerados inalienáveis ou impenhoráveis pela legislação. Ato contínuo, em seu artigo 833, o CPC/15 se aproveita de seu próprio caráter legal para instituir a impenhorabilidade uma série de bens.

Não há, portanto, fundamento para se afirmar que o CPC/15 teria derrogado a Lei 8.009/90. Como estabelece o conhecido artigo 2º, §1º da Lindb, a lei posterior revoga a anterior em três hipóteses: quando expressamente o declarar, quando for incompatível com a lei antiga, ou quando tiver regulado inteiramente a matéria desta. Nenhuma dessas hipóteses está presente no caso em comento.

O lugar do bem de família não é o CPC/15
Outro desacerto da tese da revogação da Lei 8.009/90 é que ela parte do pressuposto que a manutenção do instituto do bem de família legal dependeria de sua consagração no CPC/15. Afinal, a impenhorabilidade seria um tema eminentemente processual, a ser acomodado no Código respectivo. Se o CPC/15 silenciou sobre o tema, é porque pretendeu extingui-lo.

Essa ideia, contudo, não resiste a uma segunda análise. Ao deixar de mencionar o bem de família legal, o CPC/15 apenas seguiu uma tradição, bastante arraigada no Direito brasileiro, de que essa matéria não deve ser tratada em um Código de Processo. Note-se que, em nosso país, o bem de família sempre foi regulado à margem da legislação processual, mais precisamente, nos Códigos Civis de 1916 e 2002, e na Lei 8.009/90.

Por certo, com muita frequência a legislação de direito material acaba adentrando os domínios do Direito Processual sem ser convidada. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil, por motivos históricos: quando da elaboração de nosso primeiro Código Civil, o de 1916, não havia um Código brasileiro de Processo Civil, tendo em conta que, à época, essa matéria era de competência dos estados (CF/1891 artigo 34, 23º). Por essa razão, o Código Civil de 1916 arrogou para si a missão de uniformizar minimamente o Direito Processual em âmbito nacional, e dispôs sobre uma série de questões que eram evidentemente estranhas ao Direito Civil.

Contudo, mesmo que nos apeguemos ao mais severo rigor científico, é preciso reconhecer que existem figuras jurídicas que podem pertencer indistintamente a esses dois ramos do Direito. Isso ocorre, entre outras hipóteses, com os institutos de direito material cujo principal efeito é de ordem processual. É o caso da classificação das obrigações em "de meios" ou "de resultado". A única utilidade dessa classificação reside na repartição do ônus da prova: em se tratando de obrigações de resultado, presume-se relativamente a culpa do devedor caso esse resultado esperado não seja atingido; ao passo que, nas obrigações de meios, o ônus de provar a culpa compete, em qualquer caso, ao credor. Por que, então, essa classificação pertence ao Direito Civil e não ao Direito Processual? Por uma razão de fulcral importância: ela foi criada por René Demogue (1872-1932), autor que, por motivos insondáveis, o Destino quis que fosse civilista…

É exatamente o que ocorre com o bem de família. Por contingências históricas de nosso país, a tônica do conceito sempre esteve na proteção da família e da moradia. A impenhorabilidade no curso do processo é vista como mera consequência, e não como a essência, desse instituto. Daí por que nosso primeiro Código de Processo, o de 1939, não mencionava o bem de família voluntário em seu rol de bens impenhoráveis (artigo 942 CPC/39) [1] — e, ao que se saiba, jamais se aventou seriamente a hipótese de que esse diploma teria revogado os artigos 70 a 73 do CC/16, onde o tema era regulado. Eis também a razão pela qual o CPC/73 declaradamente optou por não tratar da matéria do bem de família, delegando-a às "leis especiais" (CPC/73 artigo 1.218, VI).

A omissão do CPC/15 quanto ao bem de família legal não decorre, portanto, da decisão de expulsá-lo do ordenamento brasileiro. Trata-se, isso sim, de uma salutar deferência às nossas próprias tradições.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2  Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).


[1] Em verdade, o CPC/36 regulava, em seus artigos 647 a 649, o procedimento de registro do bem de família voluntário. Isso se deve ao fato de que esse diploma também cumpria, em parte, as vezes de legislação registral, que só seria sistematizada e unificada mais tarde em nosso ordenamento.

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    é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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