Público & Pragmático

A participação do mercado no planejamento das contratações públicas

Autor

  • Gustavo Schiefler

    é doutor em Direito do Estado (USP) advogado (Schiefler Advocacia) e professor (Zênite e IDP) em matéria de licitações públicas e contratos administrativos.

9 de abril de 2023, 8h00

Eis um tabu das contratações públicas brasileiras: a participação de empresas durante a etapa de planejamento das licitações públicas e contratações diretas.

Poderia uma empresa interessada influenciar diretamente a decisão da administração pública sobre o que deve ser licitado para solucionar uma demanda de caráter público? Por exemplo, uma empresa pode sugerir que a administração faça exigências de especificações técnicas que somente o seu produto ou serviço dispõe, sob o argumento de que isso é essencial para o interesse público?

A experiência revela que interações entre mercado e administração, com esse tipo de conteúdo, ocorrem de maneira frequente e, na prática, são essenciais para que as autoridades públicas descubram as melhores soluções existentes e disponíveis para as suas necessidades. É um fenômeno comunicacional que, se conduzido adequadamente por agentes com boa-fé, confere qualidade à instrução processual e a toda a jornada decisória da administração.

Por outro lado, sob pena de ingenuidade, não há como ignorar os múltiplos casos de direcionamento indevido, de captura técnica ou de corrupção, que surgem justamente a partir de uma influência indevida, dolosa, do particular sobre a administração, antes da licitação ou de uma contratação direta.

O problema central é que esses diálogos público-privados, no âmbito das contratações públicas, ocorrem costumeiramente na informalidade, sem registro no respectivo processo administrativo, às vezes até de forma velada, propositalmente opaca, ainda que para o intercâmbio de conteúdos lícitos e legítimos.

Sob o receio sobre como proceder ou de que alguém interprete erroneamente a troca de informações técnicas e comerciais, entre o público e o privado, considerado o momento sensível em que ocorre, opta-se pela ausência de registros no processo administrativo, apostando-se no vácuo supostamente protetivo gerado pela informalidade.

Exemplo disso são as reuniões agendadas, com representação privada de interesses, sem maiores preocupações com registros, atas ou formalidades. São eventos presenciais ou por videoconferência que não observam regras jurídicas como aquelas dedicadas às chamadas "audiências" no Decreto Federal nº 10.889/2021 — por exemplo, o dever de identificação do assunto, local, data, horário, lista de participantes, identificação da pessoa que terá os interesses representados, a descrição dos interesses representados na audiência e publicação do conteúdo em sistema acessível, como o e-Agendas, e a diretriz de o agente público ser acompanhado por, no mínimo, outro agente público.

Desse contexto se compreende a origem e a extensão do ambiente de desconfianças em que o fenômeno se desenvolve, quase como se essa cultura dialógica, de representação privada de interesses, de interlocuções entre o público e o privado, quando relacionadas com o planejamento de contratações públicas, fosse sinônimo de ato ilícito ou imoral.

É tempo de superar este tabu.

Não há como ignorar algo que é intrínseco a qualquer planejamento contratual, seja público ou privado, e que precisa ocorrer para que a administração decida: a busca por informações diretamente com aqueles que oferecem as soluções no mercado, antes de definir qual será a escolhida. Ignorar o fenômeno, em vez de compreendê-lo e encará-lo, significa, pragmaticamente, relegá-lo à extraprocessualidade.

A boa novidade é que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) institucionalizou uma série de mecanismos aplicáveis à representação privada de interesses. São institutos jurídicos que viabilizam o legítimo diálogo público-privado, dedicados ao planejamento das contratações públicas, em reconhecimento de que este é um fenômeno legítimo, lícito e indispensável.

A Lei nº 14.133/2021, inovando sobre a Lei nº 8.666/1993, reconheceu expressamente que a administração pode empreender um levantamento de mercado durante a etapa preparatória da licitação pública (artigo 18, §1º, V), na confecção do seu estudo técnico preliminar (ETP).

Perceba-se que o levantamento de mercado é algo significativamente mais amplo do que a simples e tradicional solicitação de orçamento para compor o preço estimado da licitação pública. O levantamento de mercado consiste no recebimento de informações técnicas e econômicas, sobre produtos e serviços, espontaneamente ou após solicitação da administração, para que se possa realizar a análise das alternativas possíveis para uma demanda pública.

Esse levantamento de mercado, conduzido pela administração a partir de interlocuções com os atores de mercado, permite a construção das justificativas técnicas e econômicas sobre o tipo e as características mínimas da solução a ser contratada.

No âmbito de um levantamento de mercado, é totalmente possível que uma empresa interessada na futura licitação pública sugira à administração alguma exigência técnica que, eventualmente, somente o seu produto ou serviço possua. A cautela é que esse sugestionamento deve ocorrer formalmente, de preferência por escrito, em documento que será anexado ao respectivo processo administrativo.

Neste sentido, algumas práticas e experiências de mercado, provenientes de suas típicas relações entre empresas privadas, vêm sendo incorporadas por órgãos e entidades públicas brasileiras, especialmente no âmbito das empresas estatais. São exemplos os institutos do Request for Information (RFI) e do Request for Proposal (RFP), além do road show. Essas práticas, que já tiveram a legalidade indiretamente reconhecida a partir de acórdãos do Tribunal de Contas da União, servem justamente para formalizar este levantamento de mercado pela administração.

Outro mecanismo que viabiliza a representação de interesses e que, agora, encontra-se expressamente nas normas gerais sobre licitação pública, é o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), previsto no artigo 81 da Lei 14.133/2021. Em palavras simples, o PMI pode ser compreendido como uma espécie de levantamento de mercado vocacionado a casos mais complexos, que ocorre a partir de um procedimento mais estruturado, formal, aberto, com regras estipuladas em edital de chamamento público. A partir do PMI, os particulares autorizados pela administração podem propor e apresentar estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras para questões de relevância pública. Um diferencial é que os particulares podem ser ressarcidos dos dispêndios com esses estudos, pelo vencedor da futura licitação, caso suas contribuições sejam utilizadas pela administração e caso o certame efetivamente aconteça.

O PMI, atualmente disciplinado em âmbito federal pelo Decreto nº 8.428/2015, é um mecanismo que, na última década, foi intensamente utilizado pela administração pública brasileira para o planejamento de concessões públicas, mas que agora pode ser utilizado de maneira ampla e com segurança jurídica, para qualquer contratação pública em que haja a sua pertinência.

O que se nota é que houve uma expansão significativa dos ambientes participativos durante a fase preparatória das contratações públicas, que extrapolam os benefícios das tradicionais audiências e consultas públicas, sobretudo porque aplicáveis a uma etapa mais prematura do planejamento – ou seja, é espécie de participação que ocorre num momento mais propício e permeável, em que a administração ainda está investigando a melhor solução, antes de sua definição.

A Nova Lei de Licitações também instituiu a modalidade licitatória do Diálogo Competitivo (artigo 32), vocacionada aos casos em que a administração pública, circunstancialmente, não tem condições de definir, com precisão suficiente, as especificações técnicas da melhor solução para sua necessidade. Como regra, são casos que envolvem inovação técnica ou tecnológica, ou seja, que envolvem a implementação de uma solução contratual incomum, inédita, não padronizada, que precisa ser adaptada ou que contenha riscos relevantes.

Esta modalidade se assemelha ao instituto do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), com a importante diferença de que o diálogo competitivo não se presta a planejar uma futura licitação pública, pois ele próprio já é uma licitação. Nesta modalidade, a administração lança a licitação apenas com a indicação de suas necessidades, mas não define qual é a solução ideal para satisfazê-la.

A solução que se transformará no objeto contratual será descoberta, aperfeiçoada e estabilizada pela administração durante o próprio certame, a partir de sessões exclusivas de diálogo com cada licitante, que se encontram em competição — daí também a explicação do nome da modalidade. Ao final da etapa de diálogo, a administração definirá uma das soluções propostas pelos licitantes; na sequência, então, receberá, dentre os participantes, propostas para executá-la e contratará a melhor delas.

Sobre o tema da participação do mercado na definição da solução a ser contratada pela administração pública, é de se notar que as regras aplicáveis ao diálogo competitivo representam bem o tom sobre como a representação de interesses deve ser percebida e organizada nas contratações públicas.

Enfatize-se, por exemplo, que durante a licitação na modalidade diálogo competitivo podem existir reuniões individuais e restritas com cada participante, para que as soluções por eles apresentadas sejam evoluídas, de modo a se tornarem o mais aderente possível às necessidades públicas. Contudo, como medida de formalidade e controle, "as reuniões com os licitantes pré-selecionados serão registradas em ata e gravadas mediante utilização de recursos tecnológicos de áudio e vídeo" (artigo 32, §1º, VI). Essas atas e gravações devem ser, posteriormente, publicizadas, ou seja, são inicialmente sigilosas, mas posteriormente reveladas ao público. Como existem registros formais, eventuais desvios de conduta ou atos ilícitos praticados durante esses diálogos público-privados tornam-se rastreáveis e, portanto, controláveis.

Esse é um bom exemplo, também, de como o avanço tecnológico é capaz de fomentar a manutenção da integridade das relações público-privadas. Há uma década, dado o alto custo financeiro, ainda pairavam desconfianças sobre a viabilidade tecnológica de a administração pública armazenar arquivos audiovisuais em grande volumetria.

Destaca-se também a regra da Lei nº 14.133/2021, aplicável ao Diálogo Competitivo, de que "a divulgação de informações de modo discriminatório que possa implicar vantagem para algum licitante será vedada" (artigo 32, §1º, III). Isto materializa a noção de que a representação privada de interesses precisa ser conjugada com a observância da isonomia entre os particulares. Transbordando-a para os demais institutos de diálogo público-privado, isto significa que, como regra, se a administração for realizar um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) ou um levantamento de mercado, por exemplo, a prática recomendada é a de que um número plural de empresas deverá ser consultado, em igualdade de condições.

Ainda sobre o tema, há que se destacar a aprovação do Projeto de Lei nº 1202/2007 pela Câmara dos Deputados, em dezembro de 2022, e sua subsequente remessa ao Senado Federal, autuado como Projeto de Lei nº 2914/2022. Esse Projeto de Lei disciplina a atividade de representação de interesses, popularmente conhecida como lobby, com aplicabilidade explícita e projetada sobre as licitações e contratos. Regras de quarentena, regime de responsabilização e o estabelecimento de direitos e deveres dos atores envolvidos encontram-se neste projeto de lei, que, se aprovado, deve trazer maior juridicidade ao fenômeno.

Em síntese, a influência direta do mercado no planejamento das contratações públicas é atualmente reconhecida como válida, desde que — e este é o ponto central — seja realizada a partir de comunicações oficiais, formais, registradas, rastreáveis, transparentes (se não forem excepcionalmente sigilosas), e que carreguem as cautelas inerentes à tradicional atividade de representação de interesses.

Empreendedores com soluções tecnicamente adequadas e inovadoras não deveriam ter receio, insegurança ou dúvida sobre como apresentá-las à administração pública, tampouco deveriam buscar contatos privilegiados para romper a barreira da impessoalidade e, assim, receber a atenção da administração. Este ambiente de desconfiança e medo costuma gerar comunicações marcadas pela informalidade, que, durante o planejamento das contratações públicas, é elemento que arrisca a legalidade.

Por fim, resgato aqui o enunciado que tive a boa sorte de formular, como contribuição, durante a 1ª Jornada de Direito Administrativo, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em 2020, e que acabou por ser aprovado na sessão plenária daquele evento:

"Enunciado nº 29

A Administração Pública pode promover comunicações formais com potenciais interessados durante a fase de planejamento das contratações públicas para a obtenção de informações técnicas e comerciais relevantes à definição do objeto e elaboração do projeto básico ou termo de referência, sendo que este diálogo público-privado deve ser registrado no processo administrativo e não impede o particular colaborador de participar em eventual licitação pública, ou mesmo de celebrar o respectivo contrato, tampouco lhe confere a autoria do projeto básico ou termo de referência."

Ainda que construído sob a égide da Lei nº 8.666/1993, este enunciado segue plenamente aplicável à Lei nº 14.133/2021, que incorporou o seu espírito. O destaque maior se deve à obrigação de registro no processo administrativo, que confere o toque de legalidade ao fenômeno da participação do mercado no planejamento das contratações públicas.

Processo administrativo, afinal, é sinônimo de memória e controle sobre a jornada decisória da administração pública. E isso, para quem age de boa-fé, representa uma importante garantia contra interpretações equivocadas de um fenômeno inerente à atividade administrativa.

Autores

  • é sócio do escritório Schiefler Advocacia, doutor em Direito do Estado (USP) e professor em cursos de capacitação e pós-graduação na área de licitações públicas e contratos administrativos (Zênite e IDP).

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