Observatório Constitucional

O pseudoproblema sobre o regime de aprovação das medidas provisórias

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

8 de abril de 2023, 8h00

O entrave político relativo às Medidas Provisórias (MPs) a que se tem assistido nas últimas semanas tem suscitado debates jurídicos interessantes sobre seu regime de aprovação, previsto na Constituição Federal de 1988 (CF/88), e ainda sobre eventual mudança constitucional e/ou infraconstitucional desse procedimento. Embora ideias de aperfeiçoamento do regime jurídico das MPs sejam bem vindas e necessárias, o fato é que sua solução está mais além do que a capacidade de respostas que o sistema constitucional pode oferecer.

Não sem críticas, a MP entrou na ordem constitucional brasileira vigente. Como muitos outros institutos, a previsão das MPs na Constituição de 1988 trouxe à mentalidade democrática receio de regresso do espólio autoritário de duas Constituições brasileiras anteriores: a Carta de 1937 e a de 1967-69, quando seu primo distante foi aqui introduzido, nas duas ocasiões conhecido pelo nome de "decreto-lei".

Foi na Carta outorgada por Getúlio Vargas que se fez a primeira referência ao decreto-lei. É verdade que tinha um regime constitucional bastante distinto daquele de 1967 e do atual regime das MPs. A "Polaca" previa, em seus artigos 12 a 14 [1], a faculdade de o presidente editar condicionadamente decretos-leis, ressalvando ainda matérias que sequer poderiam ser objeto de regulamentação por tais atos do Executivo.

A história, porém, mostra-nos que a disposição constitucional foi completamente afastada em face da aplicação da regra constitucional de exceção, prevista no artigo 180 [2] das "Disposições Transitórias e Finais", que conferia ao presidente a competência de editar decretos-leis sobre todas as matérias da competência da União, enquanto não estivesse reunido o Parlamento, que de fato esteve de recesso durante o período de 1937 a 1945.

A produção legislativa do Estado Novo se deu por decretos-leis, incluídas normas importantíssimas ainda hoje vigentes, a exemplo do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943).

Como tantos outros na Carta de 1937, o decreto-lei foi mais um exemplo de instituto usado, abusado e subvertido pelo autoritarismo constitucional que tomou conta no período, oferecendo aparência de legalidade ao exercício ilegítimo de poder pelo presidente. Não foi mantido na Constituição de 1946, a primeira da redemocratização.

Antes, porém de sua previsão na Constituição de 1967-69, os decretos-leis voltaram à ordem jurídica brasileira por intermédio do Ato Institucional nº 2 (AI-2), de 1965, que em seu artigo 30, autorizou o presidente da República a editá-los "sobre matéria de segurança nacional". E, em redação que remete à Carta de 1937, no parágrafo único do artigo 31 do AI-2 [3], autorizou-se o Poder Executivo a legislar, em caso de recesso parlamentar, sobre todas as matérias previstas na Constituição através de decretos-leis.

Condizente com o regime político de exceção então vigente, conferiu-se "carta em branco" ao Executivo, cuja hipertrofia em detrimento dos demais poderes era inegável, para legislar sobre quaisquer matérias sem limitação.

Promulgada a Constituição de 1967, previu-se no artigo 58 [4] novo regime jurídico para edição dos decretos-leis, dessa vez inspirado nos decreti-leggi da Constituição da Itália [5]. A novidade aqui seria a introdução de novo pressuposto material para sua válida edição, qual seja a existência de "urgência ou de interesse público relevante". Os decretos-leis, segundo a redação original da Constituição de 1967, teriam força de lei e vigência imediata, devendo ser apreciados pelo Congresso Nacional no prazo de sessenta dias, findo o qual seriam considerados aprovados.

Depois, a Emenda Constitucional nº 1 [6], de 1969, à CF/67 manteve e ampliou seu âmbito normativo, permitindo-se sua edição para dispor explicitamente sobre "normas tributárias" e para criação de cargos públicos e fixação de vencimentos dos servidores públicos. Posteriormente, seu regime sofreu mais uma alteração, levada a cabo pela Emenda nº 22, de 1982 [7], que introduziu o regime de urgência para sua aprovação (ou rejeição), na hipótese de os decretos-leis não serem apreciados no prazo de sessenta dias, determinando que sua votação entraria na ordem do dia por dez sessões sucessivamente, após o que seriam considerados definitivamente aprovados.

Comentando a atividade legislativa do Executivo, Manoel Gonçalves Ferreira Filho foi afirmativo: "Na prática, enquanto em vigor a Constituição de 1967, o decreto-lei se tornou a forma 'normal' de legiferação. O Presidente da República obviamente preferia essa fórmula do que aquela mais onerosa politicamente de apresentar projeto de lei à apreciação do Congresso Nacional" [8].

Em apertada síntese, podemos dizer, que os decretos-leis, assim como o seu antecessor de 1937, representaram uma alternativa ao processo legislativo ordinário extremamente influente e importante no regime de governo anterior, embora se ressentissem dos contornos democráticos próprios de uma democracia. A recepção por parte de governos autoritários de normas e procedimentos comparados é uma estratégia habitual na retórica legalista de legitimação do exercício do poder de exceção, do que o regime político pós-1964 se valeu com desvelo e evidente descompasso com o princípio da separação dos poderes.

Superado o regime autoritário de 1964, os Constituintes decidiram por extirpar os "decretos-leis" do novo texto constitucional. E o fizeram. Não queriam o "entulho autoritário" que deu ensejo a tantos abusos normativos por parte do Executivo, e determinaram a revogação dos decretos-leis e/ou sua conversão em MP, conforme previsão do artigo 25 do ADCT. No entanto, as demandas múltiplas a cargo do Estado contemporâneo, especialmente pelo alto de grau de deveres e responsabilidades estabelecidos pela CF/88, associadas à dificuldade renitente do Parlamento de oferecer respostas céleres aos desafios que lhe são postos, à semelhança de outros países, conduziram os Constituintes à atribuição de maior participação do Executivo no poder legislativo; e a "inovação" constitucional das MPs foi uma das formas.

Extintos os decretos-leis, em seu lugar entraram as MPs no sistema constitucional de 1988, sob o olhar cerrado da doutrina, por conta em particular da comum fonte de inspiração, qual seja os decreti-leggi da Constituição da Itália. O receio, mais uma vez, era que o Parlamento se tornasse refém do Executivo como em 1937 e pós-1964, haja vista nossa memória constitucional segundo a qual decretos-leis foram instrumentos do autoritarismo constitucional num contexto de hipertrofia do Executivo.

Em relação ao texto constitucional anterior, tentou-se uma melhor regulamentação das MPs. Seus pressupostos materiais se tornaram mais rigorosos ("relevância e urgência", antes bastava ou a relevância, ou a urgência); o prazo de vigência das MPs, mais curto (trinta em vez de sessenta dias); e o "silêncio" congressual passou a implicar a rejeição das MPs, enquanto no sistema anterior redundava em sua aprovação. Por outro lado, as MPs, segundo a redação original da CF/88, poderiam veicular normas sobre qualquer matéria, o que gerou uma série de debates na doutrina e jurisprudência.

O abuso das MPs pelo Poder Executivo foi tamanho e objeto de diversos estudos, não sendo nosso objetivo analisá-lo agora. Ao desequilíbrio institucional no âmbito do processo legislativo, para não dizer "inversão" do poder legislativo, por força da excessiva atividade legislativa realizada pelo Executivo via MPs reduzindo o papel institucional do Congresso Nacional à condição de homologador de MPs, foram propostas as Emendas Constitucionais nº 5 e nº 6, de 1995, e, sobretudo, a Emenda nº 32, que trouxe uma série de restrições à edição de MPs pelo presidente da república, relativas ao prazo de vigência, ao procedimento de aprovação, ao objeto de regulação e à possibilidade de reedição. Afora, as inúmeras decisões do Supremo que ajudaram a construir o sistema constitucional das MPs.

A questão central hoje observada na obstrução do procedimento de aprovação das MPs não se dá por deficiência dos balizamentos constitucionais, tampouco por eventuais excessos do Executivo que estaria à espreita de abusar de suas prerrogativas constitucionais, o que, diga-se, é preciso estar vigilante para que não volte a acontecer. O travamento do processo de discussão das MPs insere-se num âmbito mais amplo, em que se evidencia uma já longeva crise política na qual as Casas do Congresso têm buscado sua autoafirmação em face do Poder Executivo como modus operandi para a construção de acordos políticos.

Tal autoafirmação, por sua vez, não parece fundamentar-se na experiência constitucional erguida sobre a memória antidemocrática dos usos abusivos dos decretos-leis sob a vigência da Carta de 1937, do AI-2 ou da CF/67-69, tampouco por uma forma republicana e institucional de entrincheirar-se a atividade legislativa pelo Executivo em respeito à separação dos poderes e ao Estado Democrático de Direito, fragilidades essas que estiveram no cerne dos questionamentos à legitimidade/validade dos decretos-leis no Brasil.

O impasse é fruto de novo código de funcionamento e de organização da política brasileira, a que o cientista político Sergio Abranches denominou "coalizão líquida", em que, com a fragmentação dos grandes partidos políticos e das bases políticas de apoio governamental, o governo não mais consegue formar uma plataforma duradoura e confiável que garanta a aprovação das matérias de seu interesse. Deve, nesse contexto, contentar-se com a pactuação de acordos para cada uma das matérias relevantes que pretenda aprovar no Congresso, tornando a governabilidade muito mais delicada e difícil. E custosa.

No atual cenário político, a construção do consenso necessário à volta da tramitação das MPs reside muito mais no campo da negociação política do que na alteração da moldura constitucional ou infraconstitucional das MPs. Significa, portanto, que é o Congresso Nacional, mais precisamente a presidência da Câmara dos Deputados, que tem se mostrado incapaz de oferecer respostas constitucionalmente adequadas para um instrumento normativo que, bem utilizado, pode prestar grande favor à sociedade e à democracia brasileiras.

A novidade, portanto, não está na dimensão antidemocrática historicamente associada ao instituto das MPs, graças à sua história genealógica de raízes autoritárias. Mas, nas caraterísticas pouco republicanas, da feição com que o presidencialismo de coalizões líquidas vem tomando em nosso país, o que impõe a cada passo governamental uma delicada questão política, ainda que talhada sob o marco do arcabouço constitucional, para ser negociado e resolvido mediante desgaste institucional.

E com isso sofre a política democrática que deveria estar integralmente voltada ao atendimento das relevantes e urgentes necessidades da população.

 


[2] "Art. 180. Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União."

[3] "Art. 30. O Presidente da República poderá baixar atos complementares do presente, bem como decretos-leis sobre matéria de segurança nacional.

Art. 31. A decretação do recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores pode ser objeto de ato complementar do Presidente da República, em estado de sítio ou fora dele.

Parágrafo único. Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente, fica autorizado a legislar mediante decretos-leis em todas as matérias previstas na Constituição e na Lei Orgânica."

[4] "Art. 58. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:

I – segurança nacional;

II – finanças públicas.

Parágrafo único – Publicado, o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação o texto será tido como aprovado."

[5] Il Governo non può, senza delegazione delle Camere, emanare decreti che abbiano valore di legge ordinaria.

Quando, in casi straordinari di necessità e d'urgenza, il Governo adotta, sotto la sua responsabilità, provvedimenti provvisori con forza di legge, deve il giorno stesso presentarli per la conversione alle Camere che, anche se sciolte, sono appositamente convocate e si riuniscono entro cinque giorni.

I decreti perdono efficacia sin dall'inizio, se non sono convertiti in legge entro sessanta giorni dalla loro pubblicazione. Le Camere possono tuttavia regolare con legge i rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti non convertiti.

[6] "Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interêsse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sôbre as seguintes matérias:

I – segurança nacional;

II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e

III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.

§ 1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.

§ 2º A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência".

[7] "Art. 51 – …………………………………………………………………………………

§ 3º – Na falta de deliberação dentro dos prazos estabelecidos neste artigo e no parágrafo anterior, cada projeto será incluído automaticamente na ordem do dia, em regime de urgência, nas dez sessões subseqüentes em dias sucessivos, se, ao final dessas, não for apreciado, considerar-se-á definitivamente aprovado.

§ 4º – A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos Deputados far-se-á, nos casos previstos neste artigo e no § 1º, no prazo de dez dias; findo este, se não tiver havido deliberação, aplicar-se-á o disposto no parágrafo anterior.

……………………………………………………………………………………………..

Art. 55 – …………………………………………………………………………………..

§ 1º – Publicado o texto, que terá vigência imediata, o decreto-lei será submetido pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, que o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento, não podendo emendá-lo, se, nesse prazo, não houver deliberação, aplicar-se-á o disposto no § 3º do art. 51."

[8] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 259.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e do programa de pós-graduação em Direito da Ufersa, procurador do estado de Pernambuco, advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

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