Opinião

Paixão e ressurreição de Jesus Cristo à luz da jurisprudência defensiva do STJ

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7 de abril de 2023, 6h07

Na semana da Páscoa é sempre interessante rememorar a "paixão de Jesus Cristo", que mesmo para os ateus pode ser encarado como um fato histórico representado por um flagrante erro de julgamento. Assim, este texto não pretende fazer reflexões de cunho religioso ou teológico, mas apenas imaginar um possível desfecho para esse fato à luz da jurisprudência dos tribunais superiores.

Mihály Munkácsy/Reprodução
Mihály Munkácsy/Reprodução

Os registros bíblicos dão conta de que Jesus foi torturado, crucificado e morto pelos executores de sua sentença. O contexto do julgamento é bastante peculiar, primeiramente em face da prisão do nazareno, fruto do incentivo pecuniário do Estado direcionado a um dos apóstolos — conduta que assemelha à justiça penal negociada contemporânea, em que há beneplácitos estatais em troca de informações provenientes de quem, outrora, figurava como criminoso.

Em "Mateus 26:59-60", há a busca e encontro de testemunhas falsas para embasar a acusação. Já em Mateus "26:62-68", o silêncio de Cristo acarreta questionamentos por parte do sacerdote e, após a obtenção de uma resposta, agressões por partes dos homens que o vigiavam.

Por certo, inúmeras outras questões poderiam ser levantadas, mas imagine-se que um advogado da Galileia, inconformado com a injustiça aviltante, propusesse hoje uma revisão criminal, batendo às portas do Superior Tribunal de Justiça para obter o restabelecimento da justiça no caso, qual seria a orientação da Corte?

O combativo advogado galileu, primeiramente, encontraria dificuldade de rescindir a sentença condenatória fundada em falsos testemunhos, na medida em que, perante o STJ, poderia esbarrar na Súmula 7, pois "a revisão criminal não deve ser adotada como um segundo recurso de apelação, pois o acolhimento da pretensão revisional reveste-se de excepcionalidade, cingindo-se às hipóteses em que a contradição à evidência dos autos seja manifesta, induvidosa, dispensando a interpretação ou análise subjetiva das provas produzidas (…) Assim, inviável sua desconstituição pela via do recurso especial, ante a incidência da Súmula nº 7/STJ". (AgRg no AREsp 1807887/RJ, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, julgado em 28/9/2021, DJe 4/10/2021). O defensor, apesar de pleitear não o reexame do conjunto fático, e sim sua revaloração (permitida pelo STJ [1]), estaria à mercê da interpretação casuística do tribunal.

Além disso, a Corte se deparou em diversos casos com a postulação de nulidade ou ilicitude de processos nos quais não se respeitou o direito ao silêncio do imputado. No RHC 61.754/MS, por exemplo, entendeu-se que "eventual irregularidade na informação acerca do direito de permanecer em silêncio é causa de nulidade relativa, cujo reconhecimento depende da comprovação do prejuízo" (RHC 61.754/MS, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 25/10/2016, DJe 07/11/2016). Esta mesma orientação é extraída do agravo regimental no HC 549.109/PR (Rel. ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 17/12/2019, DJe de 19/12/2019).

A regra do prejuízo, atinente ao sistema de nulidades e aplicada pelo STJ, deriva de um diálogo equivocado entre o processo civil e o processo penal [2] e é tema de fundadas críticas [3], diante da imposição de prova do prejuízo decorrente de uma violação à norma procedimental e/ou material para que se reconhecesse eventual nulidade, seja de cunho "relativo" ou "absoluto" [4].

Em verdade, a própria violação normativa (violação ao dever-ser) já se traduz em prejuízo, sob pena de se tornarem inócuas as regras disciplinadoras do poder punitivo estatal. Além do mais, soa de todo incongruente que a imposição de uma sanção criminal derive justamente do descumprimento de uma norma pelo cidadão, mas que é violada pelo próprio Estado no processo de apuração da culpa sem quaisquer consequências. A exigência de que, a partir de determinado vício, haja prova de um determinado prejuízo (como tenciona a jurisprudência do STJ), invariavelmente o nexo causal entre vício e prejuízo torna-se o único ponto relevante, ainda que esteja cristalino o vício (descumprimento da norma) e o prejuízo (privação de liberdade).

Imaginemos um indivíduo multado em decorrência de trafegar seu veículo na contramão. Em sua defesa, alega que não haveria necessidade de sanção administrativa, pois, apesar de trafegar em contramão, não causou nenhum acidente, assim, estaria ausente o prejuízo. Notório que a tese do condutor imprudente não seria acatada, a segurança viária exige o cumprimento das regras, independentemente de qualquer resultado lesivo à terceiros ou a si próprio: assim, a violação da própria norma acarreta em prejuízo de forma intrínseca. Por que, tratando-se de liberdade, a interpretação é diversa?

Desse contexto, pode-se inferir o resultado da demanda do advogado galileu, que, apesar de seu esforço, esbarraria no entendimento consolidado da corte. Embora preso, torturado e crucificado, não havia dano advindo das ilegalidades cometidas em face de Jesus: a Corte concluiu que o imputado ressuscitou no terceiro dia, logo, nenhuma irregularidade subsistiria no procedimento por ausência de prejuízo. Afinal, quantos erros ainda serão cometidos e perpetuados com a regra do prejuízo?

 


[1] Conforme AgRg no AREsp 1786455/RJ, relator ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), SEXTA TURMA, julgado em 08/06/2021, DJe 11/06/2021.

[2] Para crítica a esse diálogo equivocado cf. LOPES JR. Aury, Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 8ª. ed. São Paulo: Saraivajur, 2022.

[3] "É antijurídico exigir, em desfavor do imputado, prova de prejuízo. Seja porque tem o potencial de lhe atribuir um dever, seja porque ofende o postulado de que, na dúvida, a decisão deve favorecer a liberdade, seja ainda porque não há prejuízo maior do que uma decisão que cerceie um direito fundamental seu". ROSA, Alexandre Morais da. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. No processo penal, a instrumentalidade é do direito material. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-ago-23/nulidade-prejuizo-processo-penal-instrumentalidade-direito-material / . Acesso em 12/04/2022.

[4] Quanto a obrigatoriedade de demonstração de prejuízo no tocante a nulidades absolutas: 466STF, HC 81.510/PR, ministro relator Sepúlveda Pertence, 1ª T., j. 11.12.2001. HC 85.155/SP, ministro relator Ellen Gracie, j. 22.3.2005; HC 84.197, ministro relator Joaquim Barbosa, j. 19.4.2005; HC 116.713/MG, ministro relator Ricardo Lewandowski, j. 11.6.2013. in ZACLIS, Daniel. A regra do prejuízo e as nulidades processuais: construção de um modelo racional de aplicação do "pas de nullité sans grief" no âmbito do processo penal brasileiro  São Paulo: USP / Faculdade de Direito, 2015. P.117.

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