Opinião

Definição de área urbana e rural no âmbito da Secretaria do Patrimônio da União

Autor

  • Georges Humbert

    é advogado professor e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e pós-doutor pela Universidade de Coimbra.

4 de abril de 2023, 18h22

O patrimônio imobiliário da União tem papel essencial na estratégia de desenvolvimento do país na medida em que provê o insumo fundamental — espaço físico — para assentamento das ações e projetos de interesse público. Esse patrimônio, descrito no artigo 20 da Constituição, pertence a todos os brasileiros e é administrado pela SPU (Secretaria do Patrimônio da União), ligada ao Ministério da Gestão e Inovação.

Entre as competências da SPU incluem-se, entre outras, a incorporação e regularização do domínio dos bens; sua adequada destinação; além do controle e da fiscalização dos imóveis, conforme Constituição, leis e decretos. Entretanto, entre elas não está a de definir se uma área é urbana ou rural, para efeitos de cobrança de taxas, foro, laudêmio, como se demonstrará a seguir.

Importa, de logo, mencionar o teor da Lei 6.766/1979, em seu artigo 53, prevê que "todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação permanente". 

Em segundo lugar, se é o Incra que detém competência, no âmbito da União, para aferir a natureza jurídica de um imóvel, quanto a vocação urbana ou rural,  a competência prevalente para esta atribuição constitucional é dos municípios, através do seu Plano Diretor de Desenvolvimento urbano. Fora disso, a declaração de área urbana ou rural sem ser via Incra e lei municipal que institui o PDDU é ato inconstitucional, ilegal e abusivo, que causa prejuízo ao erário e deve ser objeto de responsabilização por quem deu causa. Isto porque, são claros os comandos dos artigos 30, inciso IX e 182 da CR/88. 

Verifica-se, outrossim, do Incra, o rito para a descaracterização para fins urbanos de imóveis cadastrados no SNCR (Sistema Nacional de Cadastro Rural) é estabelecido pela Instrução Normativa nº 82/2015, artigo 19 a 30 e, de acordo com o artigo 20, deve ser feito requerimento de atualização cadastral, em virtude de descaracterização do imóvel para fins urbanos, pelo respectivo titular ou pelo município de localização do imóvel, o que também não resta presente na hipótese dos autos. 

Ademais, em caso de descaracterização da área total do imóvel, o Incra envia notificação previa ao interessado, para que exerça o contraditório a ampla defesa, ao cartório de registro de imóveis e à prefeitura do município de localização da área, o que também não foi verificado na espécie. É vedado surpreender o titular do bem ou do uso e ocupação do mesmo, pena de ilegalidade e abuso de autoridade, além de violar princípios da administração, notadamente boa fé, moralidade, publicidade, eficiência, legalidade e transparência, a ensejar, por quem viola, possível ato de improbidade administrativa.

Essa exigência, inclusive, é requisito pacífico, expresso e reconhecido pelo STJ:

"AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1832117 AM (2019/0242060-4) RELATOR: MINISTRO OG FERNANDES AGRAVANTE: MUNICÍPIO DE MANAUS PROCURADOR : DENIEL RODRIGO BENEVIDES DE QUEIROZ E OUTRO(S) AM007391 AGRAVADO: MEMA PARTICIPAÇÕES E ADMINISTRAÇÃO LTDA ADVOGADOS: MÁRIO DA CRUZ GLÓRIA E OUTRO(S) AM004013 ANDRÉ GUIMARÃES DA CRUZ AM007549 BRUNO BARBOSA DOS REIS GLÓRIA AM009432 DOUGLAS ALEIXO SANTOS DA CRUZ AM009426 EMENTA TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PARCELAMENTO DO SOLO. ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO DO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO AO INCRA E AO CONTRIBUINTE. MODIFICAÇÃO DO ENTENDIMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. O Tribunal de origem assentou que a municipalidade recorrente deixou de cumprir o quanto determinado pelo artigo 53 da Lei nº 6.766/1979 e não comunicou ao contribuinte sobre a alteração da qualidade jurídica da área, que passou a ser urbana. 2. Alterar a conclusão a que chegou o Tribunal 'a quo' implicaria o revolvimento do contexto fá2co-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 7/STJ. 3. Agravo interno a que se nega provimento. Diante de todo o exposto, em comprimento de todas as exigências legais e formais, recomenda-se a revisão da natureza do imóvel, que no que tudo indica, este, possui natureza rural, embasando-se nas documentações e atual legislação, e jurisprudência aqui expostos. Portanto, recomenda-se que seja adotado os valores de referência da taxa de foro de natureza RURAL para o imóvel, como também a nulidade de aplicações de valores/débitos referentes a anos posteriores da Lei nº 241/2008 e Decreto Municipal nº 398 de 2008 (referente ao PDDU das zonas de Cairu/BA), na qual o princípio da anterioridade tributária não se aplica, já que o imóvel apresentou nos autos atividade econômica de cunho rural desde o princípio de sua ocupação".

Vale ressaltar que o artigo 182 da Constituição e a Lei Federal 10.257/01, autodenominada Estatuto da Cidade, determinam que seja o município, via PDDU ou lei específica, que deve estabelecer as áreas urbanas, o que coaduna com a predominância do interesse e impacto local da matéria, ínsitos as competências cooperadas, comuns e concorrentes, dos artigo 23, 24 e 30 da Constituição em matéria urbanística.

Dessa forma, cabe à lei municipal descrever o perímetro urbano, observados, no mérito e como meio de controle material de legalidade, os requisitos do §1º, do artigo 32 do CTN, que não é autoaplicável, consoante interpretação sistemática e conforme dada ao tema pela doutrina e pelos tribunais.

A única exceção a esse critério geográfico é aquela prevista por decisão vinculante do STF, que conferiu ao Decreto-lei nº 57/1966, editado sob a vigência da ordem constitucional antecedente, o caráter de lei complementar restabelecendo a harmonia entre os entes federados, bem como, resolvendo a questão interna das Municipalidades que perderam a sua competência impositiva em relação a imóveis cultivados, situados nos perímetros urbanos dos Municípios. 

Por esta razão, hoje é tranquila a jurisprudência do STJ quanto à competência da União para lançar o ITR sobre esses imóveis rurais até mesmo os incrustados no perímetro urbano do município, consoante se extrai, à guisa de exemplo, do teor dos REsp nº 492.869, REsp nº 738.628 e REsp nº 1.112.646. 

No âmbito da própria SPU, militam, em síntese, em favor desta correta tese: a) precedente do órgão central da SPU, na orientação contida na Nota Técnica da CGCAV nº 14125/2018-MP, na qual se lê que "III – Verificar junto ao plano diretor do município, se o imóvel em questão encontra-se em área denominada rural, fazendo o devido ajuste cadastral no Siapa se necessário;" b) Despacho SPU/BA-Nucip nº 7902180, nos quais prevaleceu a posição similar a ora sustentada, ao consignar que "2. A definição da natureza do imóvel nos sistemas corporativos da Secretaria do Patrimônio da União- SPU é binária, ou seja, só se pode classificar o imóvel com dois valores possíveis, sendo eles rurais ou urbanos. Sua definição é de competência municipal e é disposto no plano diretor ou plano de uso e ocupação do solo ou outro instrumento semelhante. Para a SPU, tal classificação impacta diretamente na cobrança de taxas patrimoniais diversas, quando se usa ou a Planta de Valores Genéricos (PVG) (para imóveis urbanos) ou a Planilha de Preços Referenciais (PPR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a definição do valor do imóvel". 

Ainda no sentido ora sustentado, há orientação da CJU/AGU, em situação análoga ao Parecer nº 00084/2020/Nucjur/E-CJU/Patrimônio/CGU/AGU: 

"'Diante de todo o exposto, em comprimento de todas as exigências legais e formais, recomenda-se a revisão da natureza do imóvel, que no que tudo indica, este, possui natureza rural, embasando-se nas documentações e atual legislação, e jurisprudência aqui expostos. Portanto, recomenda-se que seja adotado os valores de referência da taxa de foro de natureza Rural para o imóvel, como também a nulidade de aplicações de valores/débitos referentes a anos posteriores da Lei nº 241/2008 e Decreto Municipal nº 398 de 2008 (referente ao PDDU das zonas de Cairu/BA), na qual o princípio da anterioridade tributária não se aplica, já que o imóvel apresentou nos autos a2vidade econômica de cunho rural desde o princípio de sua ocupação' 17. Ademais, ainda em sede de precedentes, localiza-se, sobre o tema, o ofício nº 1091 (4155927) e o Despacho SPU/BA-Nucip nº7902180, nos quais prevaleceu a posição similar a que pretende ver aplicada ao caso o interessado, ora recorrente, ao consignar que: '2. A definição da natureza do imóvel nos sistemas corporativos da Secretaria do Patrimônio da União- SPU é dada como binária, ou seja, só se pode classificar o imóvel com dois valores possíveis, sendo eles rurais ou urbanos. Sua definição é de competência municipal e é disposto no plano diretor ou plano de uso e ocupação do solo ou outro instrumento semelhante. Para a SPU, tal classificação impacta diretamente na cobrança de taxas patrimoniais diversas, quando se usa ou a Planta de Valores Genéricos (PVG) (para imóveis urbanos) ou a Planilha de Preços Referenciais (PPR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a definição do valor do imóvel'."
"Tem-se, ademais, a orientação trazida pela CGCAV na Nota Técnica nº 14125/2018-MP (doc. 6550852), quando da análise de um pedido de revisão de valor de um imóvel rural: '5.4 Assim sendo, à principio entendemos como vinculante a alteração do valor de domínio pleno, caso o mesmo comprove-se como rural, devendo ser adotado o valor da terra nua fornecido pelo Incra, no entanto, destaca-se que não raro, nossos sistemas corporativos, dentre eles o Siapa, apresentam não conformidades cadastrais, na medida em que os dados cadastrados não são atualizados à luz da real situação dos imóveis. Isto posto, torna-se imperioso destacar que a denominação de 'urbano ou rural' não será um dado absoluto e perene a ser informado pela SPU. Em verdade, quem define se tal região, área, trecho, etc., denomina-se como rural ou urbano é o poder municipal por meio de seu plano diretor, devendo a SPU acompanhar as transformações das cidades a atualizar devidamente em seus sistemas corporativos. (…) 6. Considerando a supracitada exposição, eis a orientação desta CGCAV: III – Verificar junto ao plano diretor do município, se o imóvel em questão encontra-se em área denominada rural, fazendo o devido ajuste cadastral no Siapa se necessário'."

Como sustentamos em nossa obra em coautoria com o procurador do município de São Paulo e chefe da procuradoria de habitação e urbanismo, professor dr. Alexandre Levin (HUMBERT, Georges Louis Hage; LEVIN, Alexandre. Curso de direito urbanístico e das cidades: incluindo novo marco do saneamento, estatuto das metrópoles, regularização fundiária, estatuto da cidade· 2. ed., atual., rev. e ampl. · Rio de Janeiro: GZ, 2021, p. 63):

"É que, considerando-se a determinação de competência própria para edição de normas de Direito Urbanístico, insculpida no artigo 23, I da Constituição, bem como a existência do princípio vetorial do planejamento urbano insertos no artigo 182 da Constituição da República e no artigo 2º do Estatuto da Cidade, não se pode olvidar que a definição das áreas municipais em urbana e rural deve ser oriunda dos instrumentos e estudos determinados enquanto deveres ínsitos à materialização da política urbana, levando-se em consideração a vocação atual e futura de determinada área.
Ademais, deve ser levada a efeito mediante edição de lei municipal, com destaque para o plano diretor, constitucionalmente obrigatório para os Municípios com mais de 20.000 habitantes, considerando-se o seu território como um todo,  as peculiaridades  de cada localidade e em face mesmo da eminente preponderância do interesse local nesta matéria, da própria competência constitucional que é conferida ao Município pelo artigo 30 da Constituição, e do quanto prescreve o artigo 40 e seguintes do Estatuto da Cidade.
Numa sentença: a qualificação jurídica pertinente à propriedade urbana e rural é de suma importância, pois estabelece o regime jurídico ao qual estará submetida determinada propriedade e qual a política — se urbana ou rural — deve ser implementada em determinada área do Município, pelo que deverá, sempre, levar em consideração a vocação da área, suas reais necessidades, enfim, os seus fins precípuos, sem olvidar a ordenação planejada, melhor instrumento para compatibilizar a evolução e transformações inerentes à própria natureza do homem e seus reflexos no usar, gozar e dispor das propriedades."

Diante do exposto, não é o servidor da SPU, nem mesmo a AGU ou lei federal, muito menos um termo de conclusão de obra, um alvará ou uma certidão ou declaração que altera ou não a natureza jurídica do bem de rural para urbano, mas sim o quanto consta do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Municipal, acompanhado ou não do devido processo legal de declaração situacional da área pelo município e Incra, respeitado o contraditório e a ampla defesa, sendo o município, jamais a SPU ou outro órgão da União, o protagonista nesta delimitação, no comprovar, por lei, certidão, fiscalização ou cooperação com o Incra, a natureza do bem, sem deixar de ser verificável a sua realidade concreta, inclusive mediante controle de legalidade, probidade e razoabilidade do ato do Poder Público Municipal, frente aos parâmetros do CTN, do Estatuto da Cidade e mesmo de prova técnica em contrário, sabendo-se, por óbvio, que os atos jurídicos, sejam públicos ou privados, se presumem verdadeiros, válidos, legítimos, legais e de boa-fé, a teor da Lindb e da Declaração de Liberdade Econômica, bem como da disciplina jurídica do Código Civil e do princípio basilar da boa fé objetiva. 

Decisão da SPU diversa desta viola a Constituição e a lei, além do princípio da igualdade, impessoalidade e a garantia da segurança jurídica, podendo gerar responsabilidade por abuso de autoridade, improbidade e dano ao erário por aquele que desrespeitar o PDDU Municipal ou alterar a natureza jurídica do imóvel sem o devido processo legal, a previsão em lei municipal e o ato cooperado do Incra, gerando, inclusive, para o particular prejudicado o direito líquido de certo de reverter tal decisão junto ao Poder Judiciário, bem como ser ressarcido por eventuais perdas e danos, junto à União e seus agentes públicos.

Autores

  • é pós-doutor em democracia e direitos humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal), doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, professor universitário, advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade (IbradeS)

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