Sanções e Penas analisa os limites da independência entre instâncias julgadoras
2 de abril de 2023, 8h00
A independência entre as instâncias administrativas e judiciais penais é um mantra do Direito Público que assusta e desorienta. Legatário de uma tradição autoritária e punitivista, o postulado da independência dos julgamentos revela um Estado multifacetário, o que apenas comprova competição entre as várias agências de adjudicação de tensões da vida pública, com consequente prejuízo para a administração da justiça, para o erário e para a cidadania. Todos perdemos.
Do ponto de vista da legística, isto é, do estudo da qualidade das leis, essa regra enfrenta situação caótica e aflitiva, que faz do medo uma pedagogia permanente, a exemplo de processos inquisitoriais dos tempos de Tomás de Torquemada (1420-1498), de triste memória, ainda que não possamos julgar os tempos antigos com os olhos de nosso tempo, que são, de fato, os únicos olhos que possuímos. O anacronismo é um problema historiográfico intransponível. Torquemada era o confessor da Rainha Isabel, a Católica.
No caso de multiplicidade de julgamentos, o denunciado/acusado/réu é constrangido por um "bis-in-idem" permanente. Há casos concretos de sindicâncias simultâneas e concomitantes do Tribunal de Contas, do Ministério Público, da Controladoria-Geral da União, de comissões de ética, de comissões de sindicância, de corregedorias e também de ações judiciais nas quais, na essência, o suposto ato lesivo ou omissão também lesiva é predicado em conduta ou omissão ubíqua. Há necessidade de que se fixe com firmeza a unificação punitiva do Estado, inclusive como imperativo deontológico para a ação estatal.
Esses temas são explorados pelo advogado e professor Antonio Rodrigo Machado em Sanções e Penas, publicado pela Lumen Juris. A capa, que reproduz gravura de Honoré Daumier (1808-1879) o "Michelangelo da caricatura", já é indicativa da panaceia das instâncias julgadoras, múltiplas e as vezes conflitantes.
O autor trata inicialmente dos limites da independência entre instâncias julgadoras em face da unidade punitiva do Estado. O livro tem como pano de fundo a responsabilidade do servidor público como fundamento das esferas punitivas. Antonio Rodrigo reconhece a superioridade da instância penal sobre a decisão administrativa, situação que reputa como "da mais evidenciada clareza".
O argumento tem substrato constitucional no contraditório, pois, como define o autor, "no processo administrativo não existem as figuras do acusador e do magistrado imparcial, além do fato de servidores e autoridades decisórias estarem ocupando funções atípicas de julgamento, sem possuir, em regra, a especialização profissional desejável para o exercício da análise de provas e aplicação da sanção".
Há exceções, certamente, porém a fórmula decisória inquisitorial é freudianamente marcada pela impossibilidade de se acusar e julgar ao mesmo tempo, ainda que que eventual comissão processante se revele ao fim como meramente opinativa. Em caso de discordância há dever de fundamentação, o que suscita tensão interna que na prática pode se resolver com a manutenção das conclusões levadas à autoridade julgadora.
De qualquer modo, o autor insiste na "tormentosa dificuldade em garantir um julgamento imparcial nos processos administrativos sancionadores". É um fato, e somente um romantismo jurídico desprovido de qualquer relação com a vida real seria capaz de impugná-lo. Coisa de delirantes.
Para complicar, institutos novos, a exemplo do Acordo de Não Persecução Penal, disposto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, incluído pela Lei nº 13.964, de 2019 (Pacote Anticrime). Trata-se de arranjo institucional que se insere num contexto de justiça consensual, cujos resultados, penso, podem otimizar composição de conflitos em esfera penal. Há vantagens. Porém, "modus in rebus", em todas as coisas há uma medida.
Suposta confissão em esfera penal pode em tese significar prova emprestada em instância outra, substancializando eventual condenação administrativa. Há, muitas vezes, uma impossibilidade moral na aceitação do acordo, inclusive porque o acusado está firme na convicção de que a prova administrativa é insuficiente, deficitária, enviesada e por isso mesmo írrita, para efeitos de persecução penal. E o princípio constitucional da inocência?
É com fundamento na otimização de princípios constitucionais que Antonio Rodrigo sugere uma releitura da independência entre as instâncias. O autor problematiza a Súmula 18 do Supremo Tribunal Federal que fixou que "pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público". A Súmula 18 é de 13 de dezembro de 1963, ano em que os Beatles lançavam seu segundo álbum. Faz tempo.
O autor aponta a posição divergente do então ministro Victor Nunes Leal, para quem uma vez imputado ao funcionário público um fato único, definido em tese como crime, não funcional, a absolvição criminal definitiva excluiria a punição administrativa.
É essa mesma rationale que justificaria a concepção de uma fórmula unificadora de instâncias, bem entendido, quando em litígio um mesmo fato, imputado a uma mesma pessoa, em condições e circunstâncias idênticas. Não há lógica que sustente que uma mesma ação ou omissão seja irrelevante em uma esfera judicante e substancialmente relevante em outra. Parece-me essa a grande lição que se extrai desse livro que marca um divisor de águas.
O livro de Antonio Rodrigo é referencial para quem julga, essencial para quem acusa, instrumental para quem defende, fundamental para quem leciona, imprescindível para quem estuda.
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