Observatório Constitucional

Reflexos dos Temas 881 e 885: o caso dos juros compensatórios

Autor

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    é procurador do Distrito Federal professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito pela New York University doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

1 de abril de 2023, 8h00

1. Temas 881 e 885 e sua ratio decidendi
Poucas decisões do STF mereceram tanta atenção da comunidade jurídica quanto as que fixaram as teses dos Temas 881 e 885 da Repercussão Geral, concernente à relativização da coisa julgada de relações jurídicas de trato continuado em razão de posterior decisão com eficácia vinculante em sentido contrário. Os casos tratavam, basicamente, de empresas que obtiveram sentenças individuais transitadas em julgado, isentando o pagamento de determinado tributo por inconstitucionalidade. Posteriormente, o STF, seja em Ação Direta de Inconstitucionalidade (Tema 881), seja em Recurso Extraordinário com Repercussão Geral (Tema 885), concluiu em sentido diverso, considerando constitucional a lei que instituiu a cobrança do tributo. A questão que exsurge em tal contexto é saber se deve prevalecer a coisa julgada individual ou a decisão do STF.

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Restou decidido que as sentenças transitadas em julgado produzem efeitos enquanto perdurarem as mesmas condições fáticas ou jurídicas (cláusula rebus sic standibus). Em se tratando de relação jurídica de trato continuado — que é aquela que se renova periodicamente, como é caso do pagamento de tributos —, ocorrendo mudança no panorama jurídico — como, por exemplo, a edição de uma nova lei —, o título judicial deve ser automaticamente revisto. No contexto, o STF concluiu que suas decisões judiciais que possuem eficácia vinculante, em controle concentrado ou difuso (nos casos das repercussões gerais), impactam do mesmo modo que uma nova lei, desconstituindo os títulos judiciais dali para frente (ex nunc). Não por outro motivo, nas relações jurídicas tributárias, a eficácia da orientação do STF deve obedecer aos princípios da anterioridade anual ou nonagesimal, a depender do tributo questionado.

Eis as teses fixadas no referido julgado: "1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo".

Uma vez fixado o precedente, sua ratio ganha vida própria. Os fundamentos que subsidiam a decisão se expandem para outros casos análogos, reinterpretando o próprio precedente à luz de considerações que surgem a partir de situações novas. Ou seja, a decisão não é estanque, produzindo reflexos em casos que, agora, são recontextualizados a partir da orientação jurisprudencial. Com as teses dos Temas 881 e 885 não pode ser diferente. A tese de que a coisa julgada de relações jurídicas de trato sucessivo é automaticamente rescindida a partir de uma decisão vinculante do STF é poderosa e deverá ser testada em casos similares no futuro, fora da seara do direito tributário. O caso dos juros compensatórios em desapropriações parece ser um terreno fértil para essa análise.

2. ADI 2.332 e os títulos judiciais já transitados em julgado
O Direito tem pretensão de correção, o que impõe dever de coerência e integridade entre julgados prolatados dentro de um mesmo sistema jurídico, notadamente pela mesma corte. O Código de Processo Civil de 2015, ao estabelecer um sistema de precedentes, buscou dar a harmonia necessária para que casos semelhantes sejam julgados com base nas mesmas premissas e princípios. Em um ordenamento que se considere justo, não se admite que os mesmos argumentos sejam utilizados para um lado, mas negados ao outro. Não por outro motivo, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em suas manifestações nos processos que ensejaram as teses dos Temas 881 e 885, deixou assente que, por uma questão de coerência, a mesma lógica se aplicaria aos contribuintes: mesmo os que possuem títulos judiciais transitados em julgado em sentido contrário serão beneficiados no caso de um tributo vir a ser julgado inconstitucional.

Pois bem. Paralelamente ao julgamento dos Temas 881 e 885, estão pendentes de apreciação no STF os embargos de declaração na ADI 2.332, que discutem exatamente os efeitos da decisão de mérito da ADI nos títulos judiciais já transitados em julgado. Em síntese, a referida ADI foi ajuizada pelo Conselho Federal da OAB contra a Medida Provisória nº 2.027-43, de 27 de setembro de 2000, que alterou dispositivos do Decreto-Lei nº 3.365/41 para 1) reduzir de 12% para 6% os juros compensatórios nas desapropriações; e 2) exigir a comprovação de perda efetiva de renda para o particular expropriado fazer jus aos juros compensatórios.

É de se notar que, em 5 de setembro de 2001, o Plenário do STF concedeu medida cautelar na referida ADI para suspender os dispositivos da norma impugnada que alteravam o cômputo dos juros. Tal decisão, como se sabe, possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. Nos anos subsequentes, inúmeros processos transitaram em julgado observando tal orientação, inclusive perante o STF [1], súmulas foram editadas pelos Tribunais[2] e precatórios foram expedidos. Ocorre que, em 17 de maio de 2018, o mesmo Plenário do STF, agora com uma composição majoritariamente alterada, chegou à conclusão diametralmente inversa, pela constitucionalidade das alterações promovidas pela referida Medida Provisória. Já nesse cenário a questão que se coloca é saber, com relação aos juros compensatórios, o que deve prevalecer, se os títulos individuais transitados em julgado, que fixaram os juros compensatórios em 12%, ou a decisão de mérito na ADI, que os reduziu para 6%.

Por mais que o STF tenha se furtado a decidir tal questão no julgamento dos primeiros embargos opostos pelo CFOAB, sob o fundamento genérico de que a declaração de constitucionalidade produz efeitos ex tunc, a solução constitucionalmente adequada deve guardar coerência com as teses fixadas nos Temas 881 e 885. Com efeito, se naquela oportunidade a tese da desconstituição automática da coisa julgada com eficácia prospectiva mostrava-se favorável à Fazenda Nacional — e, por isso, foi defendida com bastante afinco — nos processos de desapropriação, o ente federal defende que a decisão de mérito da ADI tem o condão de desconstituir os títulos judiciais transitados em julgado com eficácia retroativa.

Há um paralelismo entre os casos que merece atenção. Tanto na ADI 2.332 (juros compensatórios) quanto na ADI 15 (CSLL – Tema 881), houve declaração de constitucionalidade da norma impugnada, com eficácia ex tunc. Em ambos os casos, não houve modulação dos efeitos da decisão. Ou seja, do ponto de vista normativo, as situações são idênticas. O que se discute não é a eficácia de decisão da ADI propriamente dita (não há dúvida ser ex tunc), mas os seus efeitos nos casos transitados em julgado antes da decisão de mérito no controle concentrado. O que restou estabelecido pelo STF é que os títulos individuais transitados em julgado deixam de produzir efeitos prospectivamente (ex nunc), não retroagindo aos fatos anteriores à decisão da ADI.

Como a incidência dos juros compensatórios ocorre mês a mês, até o pagamento da indenização ao particular, não há dúvida de que estamos diante de uma relação jurídica de trato sucessivo, similar à relação jurídico-tributária discutida nos Temas 881 e 885. Ocorre que as consequências num e noutro caso têm sido ligeiramente distintas. Em ambos os casos, sugere-se que a decisão do STF em ADI tem o condão de desfazer sentenças transitadas em julgado anteriormente. O que difere é a extensão temporal dessa desconstituição, se com efeitos retroativos ou prospectivos. Em se tratando de situações similares, não há dúvida que a decisão deve caminhar no mesmo sentido, em ambos os casos.

3. Dever de coerência entre os dois julgados
Para os que levam os direitos à sério, os argumentos jurídicos importam em razão de sua consistência material. Os fundamentos jurídicos devem se basear em princípios que podem ser universalizados. Há um dever moral de tratar os argumentos de cada parte com igual respeito e consideração. Qualquer decisão que seja parcial, a partir de um juízo de conveniência, passa a ser encarado como um desvio (argumento de política), que deve ser rechaçada pelo Direito. A ideia de integridade exige que os juízes e tribunais se esforcem para que a jurisprudência se mantenha coerente, analisando casos semelhantes com a mesma lupa principiológica, ainda que em ramos de direitos distintos. Em outras palavras, o Direito justo não admite a adoção de dois pesos e duas medidas.

No caso da ADI 2.332, vários particulares obtiveram títulos judiciais transitados em julgado durante o período de vigência da cautelar (entre 2001 e 2018). Tais sentenças devem ser revistas à luz da decisão de mérito da ADI para rever o índice dos juros compensatórios? De acordo com a orientação firmada nos Temas 881 e 885, não há dúvida de que tais sentenças devem ser revistas em razão da alteração do parâmetro normativo e por se tratar de relação jurídica de trato continuado (rebus sic standibus). Entretanto, a eficácia da decisão de mérito da ADI, no que tange aos títulos já transitados em julgado, somente pode produzir efeitos prospectivos. Essa parece ser a resposta que melhor se coaduna os princípios da segurança jurídica, da integridade e da isonomia.

É dizer, observando-se a ratio decidendi dos Temas 881 e 885, deve-se reconhecer que o julgamento de mérito da ADI 2.332 produz apenas efeitos prospectivos (ex nunc) no que tange aos títulos judiciais já transitados em julgado, de maneira que, nesse cenário, somente a partir de maio de 2018 que devem ser aplicados os juros compensatórios de 6%.

 


[1] Confira-se, a título de exemplo, os seguintes casos: RE 612.339 AgR, relator(a): min. Dias Toffoli, 1ª Turma, julgado em 28/2/2012 e RE 472.210 AgR, relator(a): min. Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 10/9/2013.

[2] Súmula nº 408/STJ: "Nas ações de desapropriação, os juros compensatórios incidentes após a Medida Provisória nº 1.577, de 11.6.1997, devem ser fixados em 6% ao ano até 13.9.2001, e, a partir de então, em 12% ao ano, na forma da Súmula nº 618 do Supremo Tribunal Federal".

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  • é procurador do Distrito Federal, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), mestre em Direito pela New York University, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

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