Opinião

Instrumento da Convenção do Genocídio no caso da invasão da Ucrânia

Autores

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

  • Ana Luísa de Oliveira Rocha

    é mestranda em Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora-sênior do Stylus Curiarum — Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG.

26 de setembro de 2022, 21h33

No dia 16 de setembro de 2022, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu comunicados à imprensa informando que a Polônia, a Itália e a Dinamarca haviam apresentado declarações de intervenção no caso das Alegações de Genocídio (Ucrânia v. Rússia). As declarações desses países se somam a outras nove iniciativas de intervenção apresentadas à corte desde julho deste ano por diversos estados, incluindo os Estados Unidos, o Reino Unido e a França. Utilizar o instrumento processual da intervenção na prática da corte é um ato solenemente raro; apenas em ocasiões singulares isso ocorreu. Este artigo explora os fundamentos para a intervenção de estados terceiros, verificando as razões pelas quais o caso Alegações de Genocídio tem ganhado especial atenção e, por fim, analisa a possibilidade e a utilidade de uma intervenção por parte do Estado brasileiro.

A controvérsia [1], instituída pela Ucrânia em fevereiro de 2022, poucos dias após a invasão russa nas regiões de Luhansk e Donetsk, é centrada na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 ("Convenção contra o Genocídio" ou "Convenção"), a qual estabelece definições e obrigações para os Estados relacionadas ao não cometimento de genocídio, além de, em seu artigo IX, conferir à Corte Internacional de Justiça jurisdição para decidir quaisquer questões sobre a interpretação, aplicação ou execução daquele tratado.

A Ucrânia, o Estado demandante, contudo, não construiu o caso argumentando a realização de atos genocidas por parte da Rússia, como é o caso na maioria das demandas apresentadas perante a corte sobre a convenção. A tese ucraniana é negativa, e busca demonstrar que nenhum genocídio ocorria em seu território, refutando um dos principais fundamentos jurídicos trazidos pelo Estado russo ao justificar suas operações militares na região de Donbass. A Ucrânia argumenta que tais alegações não poderiam legitimar o uso de força armada em seu território pela Rússia, nem ensejar o reconhecimento de novos estados, buscando qualificar o uso da Convenção contra o Genocídio como de má-fé, em violação ao tratado, de modo que os atos cometidos sob essa alegação seriam igualmente ilegais e, portanto, deveriam cessar.

A interpretação do escopo e das obrigações derivadas da Convenção do Genocídio de 1948 é, portanto, um ponto central do caso em tela, razão pela qual, até então, 12 estados partes do tratado apresentaram à Corte suas declarações de intervenção, de acordo com o Artigo 63 do Estatuto da Corte, que dispõe:

Artigo 63
1. Quando se tratar da interpretação de uma convenção, da qual forem partes outros Estados, além dos litigantes, o Escrivão notificará imediatamente todos os Estados interessados.
2. Cada Estado assim notificado terá o direito de intervir no processo; mas, se usar desse direito, a interpretação dada na sentença será igualmente obrigatória para ele.

Este dispositivo estabelece a modalidade de "intervenção por direito", uma das duas formas de intervenção possíveis em procedimentos contenciosos perante a Corte Internacional de Justiça. Por meio deste instituto, quando a interpretação de um tratado multilateral estiver em disputa perante a corte, todos os Estados partes deverão ser notificados e terão o direito de intervir no procedimento em questão. Em contrapartida, serão igualmente vinculados pela decisão da CIJ no caso.

O objetivo desse instituto é permitir um desenvolvimento harmônico e consistente da interpretação dada a determinada convenção, ou seja, que todos os Estados que dela façam parte possam eventualmente se manifestar sobre a maneira como ele será interpretado na quaestio em tela. Considera-se que, embora não exista uma doutrina de precedente obrigatório no direito internacional, a interpretação dada pela corte a um tratado pode influenciar tomadores de decisões, bem como ser aplicada por outros tribunais ou pela própria CIJ em procedimentos futuros [2]. É adequado, nesse sentido, que as partes do tratado em questão possam se posicionar quanto à preferível interpretação de suas disposições.

Antes do caso das Alegações de Genocídio, a iniciativa mais recente de intervenção conforme o artigo 63 havia sido apresentada no caso da Caça às Baleias (Austrália v. Japão), que envolvia obrigações derivadas da Convenção Internacional para a Regulação da Atividade Baleeira. Ao considerar a intervenção da Nova Zelândia no caso, a CIJ reforçou o entendimento de que o artigo 63 do Estatuto estabelecia um direito de intervenção, o qual, contudo, não seria absoluto, de modo que a Corte teria alguma discricionariedade para interpretar se as condições estabelecidas em seu estatuto e em seu regulamento haviam sido atendidas [3]. Além disso, a corte apontou que a intervenção em questão não poderia afetar a igualdade das partes na disputa, uma vez que o instituto do artigo 63 seria limitado a apresentar observações sobre a interpretação da convenção objeto da controvérsia, de forma que não conferiria ao interveniente o direito de tratar de qualquer outro aspecto do caso [4].

No caso entre Ucrânia e Rússia, o escopo das intervenções apresentadas tem sido, primeiramente, a construção da cláusula jurisdicional prevista no artigo IX da Convenção contra o Genocídio. Tendo em vista que os argumentos da parte demandante baseiam-se em fatos negativos, a corte deverá decidir se o referido dispositivo pode ser invocado como base jurisdicional em casos envolvendo alegações de não-violação da Convenção. Assim, é relevante para os estados partes manifestarem-se quanto à amplitude da cláusula jurisdicional e se ela confere ou não à corte competência material para adjudicar sobre a ausência de um genocídio e sobre o dever de execução de boa-fé das obrigações da convenção.

De outro lado, no que tange ao mérito da disputa, também estão em jogo as obrigações decorrentes do artigo I da Convenção, dentre outros dispositivos, que dispõem sobre o dever dos Estados partes de prevenir e punir o crime de genocídio. Particularmente, os intervenientes têm contribuído com os seus respectivos entendimentos acerca da legalidade ou não do uso da força sob o alegado fim de prevenção ou punição de atos genocidas, bem como sobre a existência de deveres implícitos a serem observados pelas partes que venham a alegar o cometimento de genocídio por outro Estado. A eloquente frase da corte na ordem de medidas provisórias de 16 de março de que "a Corte considera que a Ucrânia tem um direito plausível de não ser submetida a operações militares da Federação Russa com o objetivo de prevenir e punir um suposto genocídio no território da Ucrânia" é uma interpretação oriunda da convenção que, certamente, os estados têm não apenas o direito, mas o dever de refletir a respeito — vez que constitui um dos pilares jurídicos da ordem internacional.

Não cabe aos estados terceiros manifestarem-se diretamente sobre a existência ou não de atos genocidas no território ucraniano ou sobre a qualificação jurídica dos atos militares russos, mas meramente informarem à corte sobre a construção que consideram mais adequada das obrigações e definições derivadas do texto convencional. Ou seja, sobre as possíveis interpretações da corte no que concerne a um dos tratados mais antigos e importantes do sistema internacional: a convenção que em 1948 aglutinou consciências em virtude das atrocidades da guerra.

Isso leva à resposta do primeiro questionamento. O significativo número de pedidos de intervenção sob o artigo 63 não é apenas um sinal geopolítico dos estados utilizando a corte para alinhar-se aos lados da disputa. Trata-se de uma oportunidade significativa dos estados avançarem suas visões jurídicas sobre o importante instrumento da Convenção de Genocídio e seu uso e interpretação no caso Ucrânia v. Rússia. Diversos são os nós górdios que a controvérsia encerra.

Deveria o Estado brasileiro intervir na Corte Internacional de Justiça para expressar suas visões de política externa jurídica em relação à Convenção? É verdade que tudo o que diz respeito a esse conflito é conduzido pelo Brasil com uma equidistância pragmática e uma bem meditada cautela.

É também verdade que são poucas as ocasiões que se apresentam aos estados de influenciar significativa e juridicamente a interpretação de um tratado que versa sobre uso da força, direitos humanos e talvez o principal conflito geopolítico dos tempos atuais.

Se o Brasil foi particularmente eficaz em sua participação na corte em virtude da Opinião Consultiva do Arquipélago de Chagos, como argumentado nesta ConJur, talvez fosse o caso de ponderar qual papel quererá ter enquanto liderança latino-americana também no judiciário internacional.


[1] Sobre o tema ver, LIMA, Lucas Carlos. As medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça no caso Ucrânia e Federação Russa. Revista de Direito Internacional, vol. 10, nº 1, 2022.

[2] CHINKIN, Christine. Article 63. In: ZIMMERMAN, Andreas et al (eds.). The Statute of The International Court of Justice: A Commentary. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 1771.

[3] CIJ. Whaling in the Antarctic (Australia v. Japan). Declaration of Intervention by New Zealand, Order of 6 February 2013, I. C. J. Reports 2013, p. 5-6, para. 7-8.

[4] Ibid, p. 9, para. 18.

Autores

  • é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador-visitante na Université de Paris I/Pantheón Sorbonne e membro da diretoria do ramo brasileiro da International Law Association.

  • é mestranda em Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora-sênior do Stylus Curiarum — Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG.

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