Opinião

A opinião sobre o Arquipélago de Chagos e o Brasil na Corte da Haia

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

24 de dezembro de 2018, 16h16

Há algumas semanas ocorreram perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ) as audiências públicas relativas à opinião consultiva sobre as Consequências jurídicas da Separação do Arquipélago de Chagos da República de Maurício. O Brasil não apenas enviou uma declaração escrita, mas também participou dos procedimentos orais. Neste breve ensaio abordo os principais pontos que estão em jogo em relação à opinião consultiva da Corte Internacional de Justiça e analiso a posição brasileira sustentada perante a Corte — em defesa da descolonização e do princípio da autodeterminação dos povos. De um ponto de vista de política jurídica exterior, parece existir uma sutil porém interessante mudança na participação brasileira em relação a opiniões consultivas perante a Corte Internacional de Justiça. Após analisar os principais aspectos da opinião, focarei sobre esse argumento.

Tempos recentes evidenciam a crescente importância de decisões de organismos judiciais e quase-judiciais internacionais. Tais decisões influenciam não somente o caso concreto sob apreciação: possuem impacto em políticas estatais, no debate público e sobretudo no direito atual e futuro[1]. Ao elaborarem respostas jurídicas sobre questões gerais abstratas submetidas por um órgão internacional, Cortes emitem opiniões consultivas. Ainda que não sejam formalmente obrigatórias, as opiniões consultivas de tribunais internacionais são dotadas de grande autoridade e influenciam sobremaneira um ordenamento jurídico de produção normativa descentralizada como o ordenamento internacional. Exemplos recentes são as opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre as obrigações ambientais internacionais dos Estados bem como a opinião que tratou da identidade de gênero e não discriminação de casais do mesmo sexo[2].

A opinião consultiva requerida pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) à Corte Internacional de Justiça em relação à situação do arquipélago de Chagos insere-se no rol de emblemáticas questões trazidas à barra da Corte da Haia por ser uma das remanescentes questões abertas relativa ao processo de descolonização. A opinião foi solicitada pela Assembleia Geral numa votação de 94 votos favoráveis a 15 votos contrários — uma reputada derrota para o Reino Unido.

Em síntese, o território relativo a República de Maurício e o arquipélago de Chagos compunham uma unidade administrativa colonial do Território Britânico no Oceano Índico. Em 1965, antes da independência de Maurício em 1968, o Reino Unido separou a zona do arquipélago de Chagos da colônia de Maurício e sistematicamente retirou o povo chagossiano de algumas ilhas, como a ilha de Diego García, onde foi construída uma base militar britânico-americana.

A Assembleia Geral realizou dois questionamentos à CIJ. O primeiro, se a descolonização de Maurício foi completamente legal quando o Estado obteve sua independência. O segundo, sobre as consequências jurídicas de tal ato e a habilidade de Mauricio de realocar seus nacionais, que foram originalmente deportados do arquipélago, de volta às Ilhas. Como observado por alguns autores[3], a Assembleia Geral foi particularmente cautelosa em formular as questões de maneira a evitar configurar a consulta como uma controvérsia bilateral entre Reino Unido e Maurício sobre o território de Chagos. Estados e Organizações Internacionais apresentaram suas visões jurídicas em relação aos questionamentos perante a Corte.

A principal linha de argumentação do Reino Unido foi que a Corte, ao decidir responder ao questionamento da Assembleia Geral, estaria extrapolando sua competência consultiva. Porque necessário o consenso dos Estados soberanos envolvidos para que uma corte internacional possa adjudicar uma controvérsia entre Estados, na ausência desse consenso a República de Maurício estaria contornando o requisito jurisdicional essencial para decidir uma controvérsia territorial. Parece contar de maneira relevante para esta teoria o fato de que Maurício tentou discutir a questão em processo arbitral constituído sob a Convenção de Direito do Mar. Nas palavras de um dos advogados do Reino Unido, Samuel Wordsworth, “aquilo que Mauricio considerou em 2012 como uma questão para controvérsia bilateral adequada para um procedimento contencioso não é absolutamente uma controvérsia bilateral”[4].

No mérito, o Reino Unido defende que a separação do arquipélago de Chagos da República de Maurício foi plenamente legal e contou com o consentimento dos representantes de Maurício bem como houve justa indenização pela retirada e desapropriação dos chagossianos do arquipélago.

Num primeiro momento o argumento da impossibilidade de resolver controvérsia bilateral por via consultiva parece eloquente. Contudo, um exame da jurisprudência da Corte em matéria de opiniões consultivas permite verificar que, em regra, existe uma específica situação entre dois ou mais Estados quando a Assembleia é compelida a questionar a Corte sobre os efeitos jurídicos em questão. Há quem possa argumentar que a maneira pela qual as perguntas da Assembleia Geral foram formuladas à Corte ensejariam necessariamente uma resposta sobre a controvérsia pendente entre os Estados e influenciaram a questão territorial do arquipélago. Em última análise, a fim de levar a efeito sua função jurisdicional e o mandato que lhe foi atribuído pela ONU, a Corte pode adaptar a pergunta que lhe foi feita. Não seria inusitado: a CIJ valeu-se desta técnica no passado para decidir sobre a legalidade da declaração de independência do Kosovo.

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Nas duas últimas vezes que participou de procedimentos consultivos perante a Corte Internacional de Justiça (o caso da Declaração de Independência do Kosovo e sobre a Construção do Muro na Palestina), o Brasil elaborou relativamente curtas declarações escritas e participou das audiências públicas em somente numa das ocasiões, muito pontualmente para sumarizar os posicionamentos brasileiros. No Arquipélago de Chagos, a atuação brasileira é digna de nota.

Alguns aspectos das atuações são distintivos. A atual peça escrita brasileira é consideravelmente mais longa, e não se limita a indicar os entendimentos brasileiros sobre a questão, mas igualmente interpreta o direito internacional existente bem como a jurisprudência da Corte. Diversas passagens são interessantes porque demonstram a posição brasileira em aspectos do direito internacional como regras costumeiras, o valor jurídico das resoluções da assembleia geral, bem como a questão de normas imperativas de direito internacional. Ademais, a sustentação oral da Embaixadora Cordeiro Dunlop, representante do Brasil na Holanda, trouxe argumentos adicionais àqueles elaborados na peça escrita o que parece demonstrar uma atenta preocupação brasileira em contribuir para a formulação da opinião.

No que se refere às questões de admissibilidade, o Brasil assumiu uma posição liberal de que a Corte não estaria se imiscuindo numa controvérsia bilateral, mas sim pronunciando-se sobre questões de amplo interesse da comunidade internacional. Nas palavras da declaração brasileira

“as questões solevadas pela Assembleia Geral refletem uma ampla preocupação da comunidade internacional sobre a necessidade de clareza jurídica em relação ao escopo e a aplicação de um conjunto de normas do direito internacional como integridade territorial e o direito à autodeterminação dos povos – no contexto de descolonização”[5].

Embora se possa questionar se é ainda atual o problema da aplicação de normas relativas à descolonização na atualidade, o argumento brasileiro é percuciente. É necessário entender de que maneira o amplo corpo de prática estatal, declarações de organizações internacionais e posições dos Estados se relacionam na atualidade com a secessão em contextos de não descolonização. Essa possível pronúncia da CIJ pode eventualmente elucidar a nem sempre clara relação entre o princípio da autodeterminação dos povos, o princípio da integridade territorial e o direito à secessão.

No mérito, a posição brasileira é de que o desmembramento do arquipélago de Chagos não ocorreu de maneira juridicamente lídima e, portanto, que a descolonização da República de Maurício não foi legalmente realizada — permanecendo incompleta até o presente. Elaborando sobre o argumento de que o direito à autodeterminação dos povos coloniais é uma norma imperativa de direito internacional (e já o era no momento da independência), o Brasil aduziu que qualquer modificação de fronteiras de um território que não se governa só poderia ocorrer com um consentimento livre e genuíno do povo envolvido. O Brasil entendeu que

“O arquipélago de Chagos foi parte de Maurício ao menos desde o século XVIII, quando Maurício estava sob o domínio colonial francês. No momento do processo de descolonização, portanto, os habitantes do arquipélago (…) eram uma parte integral do povo Mauriciano, constituindo um único titular do direito à autodeterminação”.[6]

Por consequência, o povo Mauriciano, por não ter expressado seu consentimento livremente no momento da separação do arquipélago, estaria intitulado ao exercício do direito ao território em sua titularidade. O Brasil desse modo pontuou que não deve haver qualquer impedimento para o reassentamento de chagossianos que foram removidos à força para outros países. Tal remoção ocorreu em violação aos seus direitos humanos, segundo o Brasil. Ao expandir suas conclusões em relação à peça escrita e a sustentação oral, a embaixadora Cordeiro Dunlop também sublinhou que a Potência administradora deve perseguir negociações em boa fé para concluir o processo de descolonização da República de Maurício. Este último ponto (provavelmente inspirado em outros memoriais que o destacaram) é particularmente importante. Não apenas evidencia a emergência das obrigações de negociar no âmbito do direito internacional, mas parece oferecer uma potencial saída efetiva para o Reino Unido, caso a Corte entenda de maneira similar a posição brasileira.

Há quem possa discordar de alguns argumentos específicos do posicionamento do Brasil. Existe um ponto particularmente nebuloso na declaração brasileira que é a invocação do princípio do uti possidetis na situação de autodeterminação de povos coloniais. Esse princípio, afirmado na jurisprudência da Corte, estabelece que no momento em que um Estado acede a sua independência, as antigas fronteiras coloniais serão utilizadas como as novas fronteiras do Estado nascente[7]. Sem explicar exatamente a incidência, os efeitos e — principalmente — o seu entendimento em relação ao princípio, o Brasil talvez tenha perdido uma oportunidade de esclarecer a sua posição em relação a incidência ou não do princípio em determinados contextos. Segundo as Ilhas Maurício, o princípio pouco dialoga com a presente questão[8]. Na sustentação oral, o Brasil não esclareceu o argumento.

Certamente Estados adotam estratégias diferentes quando aparecem perante a antiga Corte da Haia. Uma situação que talvez pudesse ter acrescentado à delegação brasileira seria a inserção do elemento acadêmico da delegação — composta essencialmente por diplomatas. A Alemanha trouxe o professor Andreas Zimmermann para o procedimento, bem como o fizeram uma série de outros Estados. Nossa vizinha Argentina prestigiou a antiga tradição da Corte da Haia e levou à Corte o professor Marcelo Kohen. Certamente a questão das Ilhas Malvinas/Falkland é um fator que contribuiu a essa decisão.

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À guisa de conclusão, pode-se indagar qual é a importância da participação brasileira na ocasião dos procedimentos desta opinião consultiva. Sob um viés político, é uma importante sinalização de liderança. Da América do Sul, somente Brasil e Argentina participaram dos procedimentos. Do ponto de vista jurídico, a tentativa brasileira de influenciar a interpretação de normas e jurisprudência da Corte de maneira elaborada é igualmente uma demonstração da capacidade brasileira de dialogar com Estados que comumente protagonizavam estes procedimentos. Basta rememorar que nas primeiras opiniões consultivas emitidas pela CIJ (e que influenciaram profundamente determinados ramos do direito das gentes) era incomum ver Estados outros além dos membros permanentes do Conselho de Segurança enviar interpretações para guiar o posicionamento da Corte.

Não é clara qual será a linha que a Corte Internacional de Justiça poderá adotar em sua opinião, que é esperada em alguns meses — tampouco é clara quais argumentações dos Estados ela eventualmente privilegiará. Seria surpreendente se a Corte enveredasse para uma não manifestação. Embora recentemente a Corte tenha demonstrado certa inclinação a um exacerbado formalismo, como no caso da negociação nuclear invocado pelas Ilhas Marshall contra Índia, Reino Unido e Paquistão[9], numa opinião consultiva dessa monta seria curioso que o principal órgão da ONU replicasse o posicionamento. A participação do Brasil não sugere apenas uma sutil mudança no posicionamento global do Estado, ele sugere também que, independente do resultado da Corte, a diplomacia brasileira parece alinhar-se, por diversas razões, do lado coerente da História.


[1] Existe ampla literatura no campo jurídico e das relações internacionais sobre a crescente autoridade das cortes internacionais. Para uma visão geral, ver BOGDNADY; VENZKE. In whose name?: a public law theory of international adjudication. OUP: 2014.

[2] The Environment and Human Rights. Advisory Opinion OC-23/17, 2017. Series A No. 23 e Gender identity, and equality and non-discrimination with regard to same-sex couples. Advisory Opinion OC-24/17 of November 24, 2017. Series A No. 24. Disponíveis online.

[4] ICJ. Legal consequences of the separation of the Chagos Archipelago from Mauritius in 1965 (Request for Advisory Opinion). Verbatim record 2018/21, p. 27.

[5] Written Statement of the Federative Republic of Brazil, 2018, p. 4, para 11. Tradução do autor.

[6] Written Statement of the Federative Republic of Brazil, 2018, p. 5, para 19. Tradução do autor.

[7] Sobre o princípio na jurisprudência da Corte ver NESI, L'uti possidetis iuris nel diritto internazionale. Cedam: 1996., sobre a posição brasileira ver GOES FILHO, As Fronteiras do Brasil. Brasília: FUNAG, 2013, pp. 26-32.

[8] Written Statement of the Republic of Mauritius, p. 225, para. 227.

[9] Sobre a questão ver GALINDO, On form, substance and equality between States, AJIL Unbound, Vol. 111, pp. 75-80.

Autores

  • Brave

    é professor adjunto de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito Internacional pela Università degli Studi di Macerata.

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