Opinião

Compliance no licenciamento ambiental

Autores

  • Bruno Teixeira Peixoto

    é advogado do “Cabanellos Advocacia”. Mestre na área de Direito Internacional e Sustentabilidade pela UFSC e especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Cesuc-SC. Possui formação Executiva em Compliance e Governança no Setor Público pelo Insper e em Compliance Ambiental Social de Governança e de Proteção de Dados pela PUC-RJ. Autor de “Compliance no Direito Ambiental: Licenciamento ESG e regulação” (Fórum 2023).

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  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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25 de setembro de 2022, 6h06

Com cada vez mais espaço no ambiente regulatório de Direito Público brasileiro, os programas de integridade e compliance recentemente foram consagrados pela nova Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/2021), confirmando a sua relevância na busca por um contexto de relações público-privadas éticas, íntegras e eficientes nos atos e processos de interesse público em todos os Poderes da República. Esses instrumentos são concebidos, segundo o artigo 56 do recente Decreto 11.129/2022, que trouxe nova regulamentação à Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), como o conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de: 1) prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira; e 2) fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.

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Considerando-se as suas principais funções e seus parâmetros mínimos [1], referidos programas passam a representar um oportuno mecanismo para o acompanhamento, monitoramento e controle da gestão ligada à conformidade ou compliance das grandes atividades econômicas, obras ou empreendimentos. Isso porque, na realidade vivenciada pela Administração Pública brasileira, em todos os níveis federativos, não apenas deficiências estruturais (déficit de pessoal e recursos materiais e financeiros) permanecem sendo grandes problemas, como também a falta de transparência, acesso à informação ambiental, participação, e, em alguns casos, questões sensíveis como riscos de práticas de atos de corrupção, fraude, improbidade administrativa, entre outros dilemas que enfraquecem os objetivos de qualquer política pública, inclusive, obviamente, na área ambiental.

Para além das suas importantes funções de prevenir, detectar e reparar atos de corrupção, fraude e demais irregularidades, os programas de integridade e compliance são instrumentos de monitoramento e controle que detêm potencial de incrementar a gestão de riscos e antecipação de condutas lesivas ao meio ambiente, se desenvolvidos e implementados no âmbito do processo de licenciamento ambiental, que é considerado como o mais importante mecanismo de proteção ambiental no país [2]. Previsto na Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) (Lei 6.938/1981), o licenciamento ambiental é o instrumento mediante o qual o Poder Público procura controlar as atividades econômicas que degradam ou podem degradar o meio ambiente, pois o que interfere nas condições ambientais fica sujeito ao controle estatal [3].

O caput do artigo 225 da Constituição determina que o Poder Público e a coletividade têm a obrigação de atuar na defesa e na preservação do meio ambiente tendo em vista o direito das gerações presentes e futuras. A função de controlar tais atividades está expressamente estabelecida pelo inciso V do §1º do artigo 225 da Constituição, que reza que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, incumbe ao Poder Público "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente".

O sistema de licenciamento ambiental tem por finalidade assegurar que o meio ambiente seja respeitado quando do planejamento, da instalação ou do funcionamento dos empreendimentos e obras referidos. Isso implica dizer que nas suas diversas fases (licença prévia, de instalação e de operação [4]), bem como no chamado pós-licenciamento, são fundamentais os planos e programas voltados ao monitoramento e controle ambiental da gestão da atividade licenciada, uma vez que os riscos e impactos causados exigem uma contínua avaliação, análise e tratamento, incumbência que deve ser compartilhada entre Estado e coletividade.

Nesse panorama, cogitar um cenário seguro quanto ao monitoramento e controle da gestão e de compliance no licenciamento ambiental parece uma tarefa incerta e complexa, especialmente porque o paradigma de regulação ambiental no país permanece vinculado à abordagem tradicional de comando e controle estatal, em sua maioria dependente da ação de órgãos e entidades ambientais pelo poder de polícia administrativa ambiental. Por essas circunstâncias, é momento de serem revistas as estratégias regulatórias em curso, especialmente no que diz respeito às formas e aos instrumentos utilizados para o acompanhamento, monitoramento e controle de gestão e compliance no âmbito dos processos administrativos de licenciamentos ambientais, o que se dá sobretudo pelas duas seguintes razões sistêmicas:

"1ª) o modelo de comando e controle regulatório em licenciamentos  centralizador, unilateral e pautado pelo binômio prescrição-sanção  não parece demonstrar êxito em proporcionar níveis de compliance com regras e padrões ambientais, tampouco segurança institucional e jurídica, tanto aos órgãos e entidades licenciadoras como para os particulares e empreendedores licenciados;
2ª) problemas como falta de transparência, acesso à informação ambiental, proteção a denunciantes e comunidades afetadas, exposição a riscos de corrupção, fraude, conflito de interesses, improbidade administrativa e outras ilicitudes não vêm sendo minimamente tratados ou controlados com rigor no ambiente regulatório ambiental."

Com esse cenário em vista, necessária é a discussão acerca de novas estratégias e mecanismos regulatórios pautados pela melhoria e monitoramento contínuos e que sejam capazes de diagnosticar e enfrentar as raízes para esses dilemas que o licenciamento ambiental permanece enfrentando, afetando o Direito Ambiental como um todo.

Assim é que os programas de integridade e compliance, observadas as suas funções primordiais de prevenção, detecção e reparação de irregularidades, atos de corrupção, fraude e atos lesivos contra a Administração Pública, bem como considerados os seus requisitos e elementos mínimos, se desenvolvidos e implementados no licenciamento ambiental sob a forma de medida de monitoramento e controle, poderão gerar maiores níveis de integridade nas relações público-privadas na área ambiental, incrementando a gestão de riscos e a antecipação a condutas, infrações e atos lesivos à Administração Pública ambiental e ao meio ambiente [5].

Trata-se de uma perspectiva contemporânea, especialmente em um momento em que a agenda de gestão e governança ESG (Environmental, Social and Governance) invade as pautas dos setores público e privado, trazendo uma nova forma de abordar iniciativas de autorregulação regulada e responsabilidade corporativa, como é o caso dos programas de integridade e compliance. Cabe destacar que essa perspectiva nos licenciamentos ambientais já está de alguma forma prevista no §3º do art. 12 da Resolução 237/1997 do Conama:

"Artigo 12 – O órgão ambiental competente definirá, se necessário, procedimentos específicos para as licenças ambientais, observadas a natureza, características e peculiaridades da atividade ou empreendimento e, ainda, a compatibilização do processo de licenciamento com as etapas de planejamento, implantação e operação. (…)
§3º – Deverão ser estabelecidos critérios para agilizar e simplificar os procedimentos de licenciamento ambiental das atividades e empreendimentos que implementem planos e programas voluntários de gestão ambiental, visando a melhoria contínua e o aprimoramento do desempenho ambiental."

Ademais, na proposta do PL 2.159/2021, relativa à "Lei Geral do Licenciamento Ambiental", que foi aprovada pela Câmara dos Deputados e que agora se encontra em tramitação no Senado, importante se torna o previsto no artigo 14, pelo qual está disposto o seguinte:

"Artigo 14. Caso sejam adotadas, pelo empreendedor, novas tecnologias, programas voluntários de gestão ambiental ou outras medidas que comprovadamente permitam alcançar resultados mais rigorosos do que os padrões e os critérios estabelecidos pela legislação ambiental, a autoridade licenciadora pode, mediante decisão motivada, estabelecer condições especiais no processo de licenciamento ambiental, incluídas:
I – priorização das análises, com a finalidade de reduzir prazos;
II – dilação de prazos de renovação da LO, da LI/LO ou da LAU em até 100% (cem por cento); ou
III – outras condições cabíveis, a critério da autoridade licenciadora."

Na Câmara dos Deputados, há também o PL 5.442/2019, que busca a regulamentação dos programas de conformidade ambiental, cuja estrutura é baseada nos programas de integridade e compliance da Lei 12.846/2013. Inclusive, padrões de reporte de gestão e governança de impactos ESG, como Relatórios de Sustentabilidade GRI e similares, são medidas que podem ser estruturadas, potencializadas e abarcadas por meio da implementação de programas de integridade e compliance, aplicados ao licenciamento ambiental.

Esse tipo de iniciativa é especialmente importante quando se trata de atividades ou empreendimentos significativamente poluidores, que são aqueles consideradas como de maior porte degradador, estando, por isso, sujeitos à exigência de EIA, consoante dispõe o artigo 225, §1º, IV da Constituição e a Resolução 01/1986 do Conama. É evidente que o maior grau de poluição justifica e requer esse cuidado a mais, o que guarda fundamento no artigo 170, VI, segundo o qual a defesa do meio ambiente é um dos princípios da ordem econômica "inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação".

Dessa forma, a eventual implementação de programa de integridade e compliance, aplicado e concebido com o escopo na área de gestão e compliance em licenciamento ambiental, bem como o reconhecimento público e premiação aos melhores programas, pode ser utilizado por órgãos ambientais como um dos inúmeros exemplos possíveis de critério de priorização ou agilização dos processos administrativos. Isso decerto representaria um modo de incentivo aos particulares e empreendedores, assim como expressaria uma pertinente estratégia regulatória com potencial de fomentar transparência, acesso à informação ambiental, participação e cooperação por melhores níveis de desempenho de padrões de qualidade ambiental por regulados, além de incutir melhorias na cultura de integridade e compliance na regulação ambiental.

Não bastasse isso, haveria duas outras perspectivas de implementação a serem exploradas pelos órgãos competentes no licenciamento ambiental de significativos impactos: 1) integrados aos mecanismos do EIA e do PCA ou outros programas de controle ambientais; e 2) alocados como um dos mecanismos de controle do rol das condicionantes das licenças. Na primeira perspectiva, a exigência para a implementação de programas de integridade e compliance reforçaria o cumprimento à diretriz geral do EIA, prevista pelo inciso II do artigo 5º da Resolução 001/1986 do Conama, voltada a "identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gerados nas fases de implantação e operação da atividade". Quanto à segunda, a implementação de programas de integridade e compliance poderia agregar no conjunto de "medidas de controle ambiental", requisitadas expressamente para a concessão das licenças prévia, de instalação e de operação, conforme preveem os incisos I, II e III do artigo 8º da Resolução 237/1997 do Conama.

Não obstante a sua importante e potencial aplicação, a eventual exigência da implementação de programas de integridade e compliance, sob forma de uma das medidas de controle nos licenciamentos ambientais, deverá observar a proporcionalidade e razoabilidade com o porte, potencial poluidor e o grau de significância dos impactos ambientais, devendo os órgãos ambientais licenciadores lançarem mão de parâmetros e boas práticas reconhecidas, como as normas ISO 14.001, 37.001 e 37.301, entre outros padrões e frameworks. Cumpre repisar que, segundo o artigo 9º, XIII da Lei 6.938/1981, a aplicação da PNMA deve ocorrer também por meio de "instrumentos econômicos, como concessão florestal, servidão ambiental, seguro ambiental e outros", ressaltando ser um rol exemplificativo, abrindo espaço, portanto, para a discussão e desenvolvimento de novos instrumentos de regulação ambiental (ou da aplicação diferenciada dos já existentes, como o licenciamento).

Por todas as leituras possíveis, em tempos de agenda ESG os programas de integridade e compliance, dadas suas funções de prevenção, detecção e reparação de irregularidades e atos ilícitos, poderão representar um instrumento de importante e oportuna aplicação no âmbito do licenciamento ambiental, notadamente daquelas atividades tidas como significativamente poluidoras, possibilitando a discussão por novas estratégias regulatórias para a implementação das políticas e normas de Direito Ambiental. Não obstante se trate de um instrumento de comando e controle, é necessário que o licenciamento interaja com os instrumentos econômicos de política ambiental, como o pagamento por serviços ambientais, os programas de integridade e compliance e o seguro ambiental, dentre outros, incentivando a adoção de comportamentos ecologicamente adequados, inclusive às vezes podendo ir além daquilo que a legislação exige, garantindo uma proteção ambiental ainda maior.


[1] Os elementos ou parâmetros mínimos dos programas de integridade e compliance estão previstos pelo artigo 57, do Decreto11.129/2022, dentre os quais, destacam-se: I – comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa, bem como pela destinação de recursos adequados;  II – padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os empregados e administradores, independentemente do cargo ou da função exercida; III – padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados; IV – treinamentos e ações de comunicação periódicos sobre o programa de integridade; V – gestão adequada de riscos, incluindo sua análise e reavaliação periódica, para a realização de adaptações necessárias ao programa de integridade e a alocação eficiente de recursos; (…).

[2] OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 367 e RIBEIRO, José Cláudio Junqueira. O que é licenciamento ambiental. RIBEIRO, José Cláudio Junqueira (org). Licenciamento ambiental: herói, vilão ou vítima? Belo Horizonte: Arraes, 2015, p. 10.

[3] Artigo 9º – São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente: (…) IV – o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras; (…) e Artigo 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.

[4] O artigo 19 do Decreto 99.274/1990 dispõe sobre o chamado licenciamento ambiental trifásico da seguinte maneira: I – Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo; II – Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado; e III – Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévia e de Instalação.

[5] PEIXOTO, Bruno Teixeira. Compliance no Licenciamento Ambiental: perspectivas de implementação no Direito Ambiental brasileiro. Dissertação (mestrado). Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 529. 2022.

Autores

  • é advogado do “Cabanellos Advocacia”. Mestre na área de Direito Internacional e Sustentabilidade pela UFSC e especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Cesuc-SC. Possui formação Executiva em Compliance e Governança no Setor Público pelo Insper e em Compliance Ambiental, Social, de Governança e de Proteção de Dados pela PUC-RJ. Autor de “Compliance no Direito Ambiental: Licenciamento, ESG e regulação” (Fórum, 2023).

  • é advogado e professor da UFPB e da UFPE, doutor em Direito da Cidade pela Uerj, com estágio de doutoramento sanduíche pela Universidade de Paris 1 – Pantheón-Sorbonne (bolsa Capes/Cofecub), autor de Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos (Fórum) e organizador de Direito ambiental brasileiro (Revista dos Tribunais).

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