Opinião

Lei Anticorrupção e sua adequada composição com a LIA

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8 de setembro de 2022, 17h05

A Lei nº 12.846/13, então nominada de Lei Anticorrupção, foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro com o escopo de se orientar para o enfrentamento da corrupção no âmbito corporativo, possibilitando-se a persecução administrativa e judicial de pessoas jurídicas envolvidas em tais práticas.

Não há dúvidas de que a referida legislação trouxe importantes inovações no chamado microssistema de combate à corrupção, em especial por instituir os chamados programas de compliance, além de admitir a possibilidade de acordos de leniência e até mesmo de dissolução de pessoas jurídicas envolvidas em tais práticas ilícitas.

A legislação foi assim apontada por alguns como complementar ao disposto na Lei de Improbidade Administrativa, eis que essa foi originalmente concebida para a persecução de atos perpetrados por agentes públicos, enquanto aquela tinha em mira o enquadramento de atos praticados por empresas corruptoras.

A despeito da novidade que então representou, o fato é que suas disposições truncadas e a falta de clareza em alguns dos critérios compositivos com outras legislações tornou a sua aplicabilidade escassa.

Propõe-se no presente exercício, portanto, avaliar o cabimento da conjugação das sanções previstas na Lei Anticorrupção com o disposto em outros diplomas normativos, em especial no concernente com a Lei de Improbidade Administrativa.

É dizer, seria cabível a aplicação complementar, em virtude de um mesmo fato, das sanções previstas na Lei nº 8.429/92 e Lei nº 12.846/13, ou tal constituiria um bis in idem vedado pela legislação?

A esse propósito, importa notar que a aplicação isolada ou cumulativa das sanções pela prática de atos corruptivos vinha expressa tanto no artigo 19 da Lei Anticorrupção, quanto no artigo 12 da então vigente Lei de Improbidade Administrativa.

Na mesma toada, o artigo 30 da Lei Anticorrupção era claro ao dispor que aplicação de suas sanções não afetava os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes da Lei de Improbidade Administrativa e da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

No entanto, a recente aprovação das alterações na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230/21 estabeleceu aparente vedação normativa expressa de incidência complementar entre os referidos diplomas.

Com efeito, o artigo 3º, alterado pela Lei nº 12.846/13, agora dispõe expressamente, no §2º, que as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa não se aplicarão à pessoa jurídica, acaso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.

Uma análise açodada indicaria que houve revogação tácita do disposto no artigo 30, inciso I, da Lei nº 12.846/13, pelo disposto no artigo 3º, §2º, da Lei nº 8.429/92 a partir das alterações inseridas pela Lei nº 14.230/21, consagrando-se um cenário de aplicação mutuamente excludente entre as Leis de Improbidade Administrativa e Anticorrupção, reservando-se a primeira para casos em que há a participação de agente público e a última para os casos em que tal não ocorre [1].

No entanto, forçoso é reconhecer que as próprias disposições inseridas pela Lei nº 14.230/21, infirmam tal conclusão, haja vista o consagrado no artigo 12, § 7º, da Lei nº 8.429/92, que indica que as sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base nesta lei e na Lei nº 12.846/13 deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem.

Disso resulta, tomando por pressuposto que a lei não consagra disposições inúteis [2], que ainda se faz juridicamente possível uma adequada composição entre o artigo 3º, §2º, e artigo 12, §7º, da Lei nº 8.429/92, ressalvando-se somente a impossibilidade de dupla punição pelo mesmo fato.

Impõe-se ao aplicador da norma, portanto, em atenção a funcionalidade das sanções, levar a efeito as adequações para que se viabilize a incidência complementar das punições, considerando a logicidade e especialmente a proporcionalidade quando da composição entre os diplomas.

Com efeito, nos parece evidente que algumas punições são mutuamente excludentes pela própria lógica a elas inerentes, tais como a de suspensão ou interdição parcial das atividades da pessoa jurídica e ou a total dissolução da pessoa jurídica; ou a dissolução da pessoa jurídica com a proibição de recebimento de benefícios financeiros ou tributários do Poder Público. Em casos tais, a inviabilidade lógica de aplicação simultânea, indica a impossibilidade de cumulação.

Pela mesma lógica, tampouco há como se cogitar da aplicação das sanções da perda do cargo ou função pública e suspensão dos direitos políticos previstas na Lei de Improbidade Administrativa para pessoas jurídicas, tendo em conta a inviabilidade prática de incidência de tais punições.

Sem embargo, não há dúvidas que algumas punições admitem aplicação simultânea e a respectiva incidência complementar, o que deverá ser modulado em consonância com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Tome-se, por exemplo, a sanção pecuniária de multa civil. Ainda que de natureza pecuniária na Lei Anticorrupção e Lei de Improbidade, se apresentam de forma diversa no tocante à origem e base de cálculo. De fato, enquanto na Lei Anticorrupção a base de cálculo se relaciona ao faturamento bruto da pessoa jurídica ou a patamares prefixados, na Lei de Improbidade Administrativa se vincula ao valor do acréscimo patrimonial, do dano ao erário ou da remuneração do agente público envolvido, tudo a depender do tipo ímprobo ou ilícito perpetrado.

Daí porque, ainda que aplicada a multa civil no âmbito administrativo, entendemos cabível se cogitar da multa civil prevista na Lei nº 8.429/92 complementarmente, desde que verificada a insuficiência do montante outrora aplicado.

De outra banda, na hipótese de aplicação judicial da sanção de multa civil em virtude de omissão da autoridade administrativa com fulcro na Lei Anticorrupção, parece-nos inviável a aplicação cumulativa da multa prevista na Lei de Improbidade Administrativa em um mesmo feito. Isso porque, dados os termos já excessivamente abertos da Lei Anticorrupção para a aplicação e dosimetria da multa, torna-se desnecessária e inócua a cumulação com a multa prevista na Lei de Improbidade Administrativa, donde inclusive se poderia extrair o famigerado bis in idem.

Outros exemplos de interação entre as sanções na Lei de Improbidade Administrativa e Lei Anticorrupção podem tornar mais facilitada a compreensão do quanto aqui se sustenta.

Veja-se, a propósito, que a sanção que impõe a suspensão da possibilidade de se firmar contratos com o Poder Público é penalidade somente previstas na Lei de Improbidade Administrativa, não estando contemplada na Lei Anticorrupção.

Nesse contexto, imagine-se o caso de pessoa jurídica corruptora que se engaje em cartéis destinados a fraudar licitações, em hipóteses em que excluída a participação de agente público. Em casos tais, uma interpretação recortada indicaria que a pessoa jurídica não poderia ser sancionada com a suspensão da possibilidade de participação em licitações, haja vista que tal sanção não se encontra capitulada na Lei nº 12.846/13, mas somente na Lei nº 8.429/92. No entanto, não se tratando de bis in idem, ou seja, de imposição da mesma sanção pelo mesmo fato, a aplicação complementar das sanções previstas entre esses diplomas se faz naturalmente possível.

De igual modo, a pessoa jurídica que se engaje em sistemáticos atos de corrupção contra o Poder Público, em concurso com agentes públicos, não estaria eventualmente sujeita à sanção que prevê sua própria dissolução, uma vez que tal pena está unicamente prevista na Lei Anticorrupção, não estando prevista na Lei de Improbidade Administrativa. Por identidade de razões, aqui tampouco se trataria de bis in idem, o que possibilita a aplicação complementar das referidas sanções.

Tal conclusão ainda se reforça pelo previsto no art. 12, §8º, da Lei nº 8.429/92, também inserido pela Lei nº 14.230/21, o qual indica a interação entre os diplomas ao consignar que a sanção de proibição de contratação com o poder público deverá constar do Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (Ceis) de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, observadas as limitações territoriais contidas em decisão judicial, conforme disposto no § 4º deste artigo.

Nesse contexto, o importe é enfatizar que a aplicação conjugada de sanções administrativas e judiciais em diferentes esferas e por diferentes atores deve ter por paradigma uma adequada base principiológica que reflita a proporcionalidade e razoabilidade das sanções a cada caso concreto, tudo sob o prisma do devido processo legal em sua vertente substancial.

Por identidade de razões, a dosagem sancionatória há de ter atenção aos paradigmas da função social da empresa e correlata necessidade de conservação de sua atividade em razão dos inúmeros interesses que gravitam em seu torno.


[1] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Comentários ao art. 30. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago, Op.cit. p.339-350.

[2] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.204.

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