Imunidade absoluta

EUA se esforçam para reparar más condutas do Ministério Público

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25 de setembro de 2022, 7h47

A anulação do julgamento de Adnan Syed no início da semana — um caso celebrizado pelo podcast "Serial" e pelo documentário da HBO "The case Against Adnan Syed" — se deveu ao trabalho perseverante da defensora pública Erica Suter e, sobretudo, da persistência de duas promotoras de Maryland, Marylyn Mosby, chefe da Promotoria de Baltimore, e Becky Feldman, que se empenharam em uma investigação de quase um ano para corrigir erros cometidos por colegas no passado.

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A libertação de Adnan Sayed
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No final das contas, as promotoras assinaram uma petição destinada à juíza Melissa Phinn, em que pediram a ela para anular a condenação de Syed, que ocorreu em fevereiro de 2000, quando ele foi duvidosamente acusado de matar a ex-namorada, a estudante Hae Min Lee.

Na petição, as promotoras afirmaram que o estado não pode, por enquanto, declarar que o réu é inocente. Mas que não mais tem confiança na integridade da condenação, diante de novos fatos e provas apurados. E, por isso, é interesse da justiça libertar o réu.

O fato decisivo foi a descoberta de que os promotores que atuaram no caso em 2020 esconderam da defesa informações que poderiam tê-lo exonerado. Por exemplo, os promotores e os detetives da polícia sabiam que havia dois outros suspeitos com motivos para matar a estudante e um deles teria dito a ela, em frente de uma testemunha, que iria fazê-la desaparecer, que iria matá-la.

Segundo as promotoras, isso foi uma violação da "Brady rule", uma doutrina criada pela Suprema Corte em 1963, no caso Brady v. Maryland, 373 U.S. 83, que, basicamente, requer que os promotores disponibilizem à defesa provas exculpatórias em posse do estado ou qualquer prova relevante favorável ao réu, mesmo que isso resulte em absolvição ou redução da sentença.

Além disso, exames de DNA de toque de material colhido da vítima e de coisas encontradas na cena do crime, que só foram realizados neste ano porque eram indisponíveis na época do julgamento, também contribuem para sugerir a inocência de Syed.

A juíza concordou que a libertação de Syed é do interesse da justiça e o colocou temporariamente em prisão domiciliar, monitorado por GPS. E deu 30 dias à Promotoria de Baltimore para apresentar acusações contra ele para novo julgamento ou retirar as acusações e deixá-lo livre definitivamente.

Caso surpreendentemente comum
O caso de má conduta de promotores no julgamento de Adnan Syed teve grande repercussão no país porque se tornou célebre. Porém, más-condutas de promotores são surpreendentemente comuns e generalizadas nos EUA, disse à NPR (National Public Radio) a diretora do Innocence Project Vanessa Potkin.

De acordo com um relatório de 2020 do Registro Nacional de Exonerações (National Registry of Exonerations), no período de 1989 a 2019 foram exonerados cerca de 2.400 presos inocentes, dos quais 44% (1.056) foram libertados depois de descoberto que promotores e policiais esconderam provas exculpatórias da defesa.

"Má conduta de promotores e detetives da polícia é o fator mais comum de exonerações de presos inocentes", disse à NPR o diretor do Registro Nacional de Exonerações Simon Cole. "Consideramos que a ocultação de provas é o subtipo mais comum de má conduta oficial."

Promotores (e procuradores) têm grande liberdade de ação. "Em muitas jurisdições, os promotores podem manter seus arquivos secretos e a decisão de passar os dados para a defesa pertence apenas a eles mesmos", disse à NPR a codiretora do Center on Wrongful Convictions da Northwestern University, Laura Nirider.

De acordo com o Independent Institute, a origem de tantos casos de má conduta são os incentivos criados por um sistema judicial altamente politizado, que premia promotores, procuradores e policiais pelas altas taxas de condenações, não pelo bom trabalho dessas autoridades na busca da justiça.

Altas taxas de condenações resultam em promoções, novas oportunidades na carreira (como a de ser nomeado juiz federal), reeleição onde os promotores são eleitos e eleição para cargos políticos, como para deputado ou senador, estadual ou federa, prefeito ou governador.

De uma maneira geral, a classe condena os atos dos maus promotores e faz o que pode para corrigir erros judiciais provocados pela má conduta de suas "ovelhas negras".

Por exemplo, Promotorias estaduais de diversos pontos do país criaram "Unidades de Integração da Condenação" para libertar inocentes. E a Promotoria Federal criou o "Comitê de Integridade da Condenação", que inclui a contratação de advogados criminalistas, para, entre outras coisas, corrigir condenações sustentadas por provas forenses incorretas.

Imunidade absoluta
Além desses incentivos à autopromoção, promotores (e procuradores) dos EUA gozam de imunidade absoluta, que lhes garante proteção total contra denúncias de má conduta.

Segundo a National Psychological Association for Psychoanalysis (NPAP), em 1976, a Suprema Corte decidiu que promotores (e procuradores) têm imunidade absoluta e, portanto, não podem ser processados por má conduta relacionada a seu trabalho. Caso contrário, irão se autocensurar.

"É melhor não buscar reparação dos erros cometidos por autoridades desonestas, do que sujeitar aqueles que tentam cumprir seu dever a receio constante de retaliação", escreveram os ministros na decisão.

Isso significa que promotores não podem ser processados por danos causados por sua própria má conduta, como, por exemplo, coagir testemunhas para mentir, ocultar provas exculpatórias, fabricar ou falsificar provas condenatórias, apresentar, no julgamento, provas obtidas ilegalmente, apresentar denúncia de má-fé, como por razões pessoais ou sabendo que o réu não cometeu qualquer crime.

A imunidade absoluta dos promotores foi criada por decisões judiciais. Não aparece na Constituição, nem em qualquer lei aprovada pelo Congresso.

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