JUSTIÇA EM NÚMEROS

Número de ações judiciais ligadas a direitos humanos no Brasil segue em alta

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24 de setembro de 2022, 8h46

O tema dos direitos humanos está na moda. É bem verdade que a preocupação global com as condições básicas para uma vida digna não são recentes — basta lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948 —, mas o assunto ganhou importância enorme nos últimos anos, o que também se reflete no Poder Judiciário brasileiro. É o que mostra o relatório "Justiça em Números 2022", do Conselho Nacional de Justiça, publicado no começo deste mês e referente a dados do ano passado. 

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Agência Brasil    Populações desfavorecidas são mais
sujeitas a violações de direitos humanos

De acordo com o levantamento, em 2021 houve um aumento no número geral de casos ligados a direitos humanos, seguindo uma tendência já registrada no ano anterior, desconsiderando-se a retração das ações ligadas à assistência social. Esta, explica o documento, foi muito exigida durante a epidemia da Covid-19, motivo pelo qual, à medida em que a crise ia arrefecendo, foi sendo menos demandada.

"A pandemia gerou uma confusão muito grande, e várias pessoas passaram por violações de seus direitos. O isolamento social agravou a situação, gerando ainda mais miséria. Consequentemente, diversos grupos recorreram ao Judiciário para reaver essas garantias", explica Rildo Marques de Oliveira, coordenador do Núcleo de Movimentos Sociais e População de Rua da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. "Quando esse cenário melhorou um pouco, também se retraíram os pedidos de assistência social."

O relatório anual do CNJ aponta que continua crescendo a demanda relacionada a casos de direitos humanos no Judiciário. Entre 2018 e 2019, o aumento foi de 90%; entre 2019 e 2020, mais 33%; entre 2020 e 2021, o crescimento foi pequeno, mas ainda assim foi um crescimento: 2,5%.

"Apenas com base nesses dados, não se pode concluir se houve mais ou menos violações aos direitos humanos no ano passado", opina Breno Cavalcante, sócio do escritório Cezar Britto & Advogados Associados. "Estudos como o Relatório Conflitos no Campo Brasil 2021, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sugerem uma tendência de crescimento de conflitos, criminalização de lideranças sociais, entre outras problemáticas socioambientais que configuram, efetivamente, violações a esses direitos."

Os assuntos mais frequentemente ajuizados quanto a esse tema foram, além da assistência social, direitos das pessoas com deficiência, da pessoa idosa, de moradia, de alimentação, de anistia política, de proteção da intimidade e de sigilo de dados.

De forma geral, as demandas relativas a direitos humanos se concentraram em primeiro grau (59%) e em segundo grau (28%). Em terceiro lugar, estão os Juizados Especiais, com 9%.

Os tribunais mais demandados nesse quesito, em números absolutos, foram os Tribunais de Justiça de São Paulo, Alagoas e Pará. Levando-se em consideração a demanda a cada cem mil habitantes, o primeiro colocado, com larga diferença em relação aos demais, é o TJ-AL.

No entanto, a judicialização dos direitos humanos não implica, necessariamente, o correto tratamento dessas demandas por parte do poder público. "Considerando que o Poder Judiciário é caracteristicamente conservador e que o Direito opera em uma lógica da igualdade formal, nem sempre trazer demandas de direitos humanos, cujas violações mais frequentes afetam grupos marginalizados socialmente, pode ser o melhor caminho para sua efetivação", opina Fernanda Frizzo Bragato, professora de pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos. "O Poder Judiciário pode ser um lugar hostil para a garantia de direitos humanos, muito embora seja o seu último guardião."

Para Marques de Oliveira, exercer esse papel de sentinela de garantias humanitárias é uma ideia que, em certo grau, desvinculou-se dos tribunais. "O Judiciário não recepciona a ideia de direitos humanos como algo a ser protegido pelo poder público. Consequentemente, muitos dispositivos constitucionais não são colocados em prática. É uma avaliação triste, mas realista."

"Em São Paulo, a Guarda Municipal continua batendo em pessoas na rua. A Polícia Militar, nem se fala. A Polícia Civil, na Luz, implantou um estado de exceção. Autoridades não fazem nada sobre isso, e o orçamento é muito curto. A Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP tem recebido muitas reclamações de abandono por parte de grupos marginalizados que se sentem isolados e desamparados. A pessoa que incomoda a cidade é vista como persona non grata", diz Marques de Oliveira.

Segundo Fernanda Bragato, há formas de mudar a situação. Quando agentes estratégicos, a exemplo da Defensoria Pública, do Ministério Público Federal ou de ONGs, propõem uma demanda judicial visando a reconhecer uma situação que envolva a violação de direitos humanos e requerem formas de reparação que abranjam todo um grupo, sendo essa ação acolhida pelo Judiciário, a judicialização dos direitos humanos assume sua forma mais eficaz.

Como exemplo, ela cita as diversas ADPFs que, no STF, obtiveram sucesso na garantia de direitos como o reconhecimento de união estável entre homossexuais, de cotas para pessoas negras em universidades públicas, entre outros. "A isso dá-se o nome de litigância estratégica em direitos humanos." O objetivo, segundo ela, é promover mudanças estruturais em legislações e políticas públicas que revertam quadros de violação de direitos em garantias e proteções a grupos vulnerabilizados.

Consequentemente, é preciso notar que a omissão do Judiciário em intervir em nome dos direitos humanos não configura uma circunstância inabalável. Possíveis soluções mencionadas pelos especialistas incluem uma maior pressão, por parte da sociedade civil, por mais engajamento e conhecimento da matéria, tanto por parte da magistratura quanto do Ministério Público; melhor treinamento de advogados para atuarem em casos de direitos humanos; e avanços nas pesquisas e na difusão de conhecimentos ligados aos direitos humanos internacionais.

"O desafio, no século XXI, é criar as condições materiais para a realização desses direitos que, em que pese constarem de diversas convenções e declarações, ainda estão longe de serem efetivados plenamente, em especial nos países do chamado sul global", acrescenta Breno Cavalcante.

"O sistema de Justiça não é suficiente para garantir o cumprimento e realização dos direitos humanos. É necessário que os demais poderes, Legislativo e Executivo, se engajem na elaboração e execução de políticas públicas voltadas à realização desses direitos, as quais devem ser subsidiadas por dados acerca das violações, como faz o CNJ com o 'Justiça em Números'."

Clique aqui para ler o relatório "Justiça em Números 2022"

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