Opinião

Análise diferenciada do AREsp pelo STJ a partir da natureza criminal da causa

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24 de setembro de 2022, 6h33

Para fins introdutórios, consoante a sistemática processual vigente, interposto o recurso especial, o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem fará o juízo provisório de admissibilidade, na forma do artigo 1.030, V, do CPC. Sendo o juízo negativo, cabe agravo (artigo 1.042 do CPC), o qual será encaminhado ao tribunal superior, se não houver retratação.

A finalidade principal do AREsp é, portanto, permitir a apreciação do apelo obstado pela 2ª instância. Para isso deve ultrapassar o filtro da dialeticidade, isto é, superar os óbices aplicados na origem, mediante o rebatimento individualizado.

Oportuno destacar que tal espécie recursal consiste na principal classe de feitos objeto da atividade jurisdicional do STJ. Na esteira dos anos anteriores, em 2021 foram julgados 223.335 AREsps. Desse total, 4,2% foram providos, 34,4% desprovidos e 57,7% não foram conhecidos, segundo o Boletim Estatístico Processual do STJ, divulgado em dezembro de 2021 [1].

É expressiva a quantidade de agravos que sequer são conhecidos em razão da ausência ou insuficiência do rebatimento promovido nas razões recursais. E é justamente este o tema central deste texto.

Considerando a técnica decisória adotada pelo STJ no juízo de prelibação do AREsp, não se verifica qualquer distinção relativa à natureza da ação no âmbito da qual foi interposto o recurso.

Ou seja: independentemente de o AREsp ser cível ou criminal, o juízo de admissibilidade é realizado de uma só maneira, com aplicação dos mesmos óbices, sem qualquer diferenciação baseada no objeto da causa. Daí surge a questão: está o STJ agindo de forma adequada ao submeter recursos de natureza diversa a uma mesma teoria geral?

A resposta me parece negativa, considerando as diferenças essenciais entre a teoria geral do processo Penal e do processo civil, tratadas detalhadamente na obra Crítica à teoria geral do processo [2], escrita por Rômulo de Andrade Moreira, para quem não é possível conceber a ideia de uma teoria unitária para o processo civil e o processo Penal, em razão da flagrante falta de identidade entre ambas.

Muitas são as diferenças entre processos cíveis e penais, de modo que abordá-las detidamente aqui acabaria por retirar a pretendida objetividade deste texto, além de não ser o seu foco. Contudo, faz-se necessário estabelecer, ao menos, o núcleo da referida distinção.

No processo Penal, há uma relação de Direito Público, que envolve o Direito Penal. Juntos, representam um poder de grande impacto frente aos indivíduos que alcançam, com repercussões pessoais, jurídicas e sociais, além de outras.

Seguindo as precisas lições de Aury Lopes Jr., o Direito Penal e Processual Penal são unidos pelo princípio da necessidade — nulla poena sine iudicio. O Direito Civil é autônomo e autoexecutável, pois se realiza sem o Processo Civil, através, por exemplo, dos negócios jurídicos, da atividade notarial, etc. O Direito Civil só atrai o Processo Civil quando há um conflito de interesses ou quando for o caso de jurisdição voluntária.

O Direito Penal não é autoexecutável e não tem realidade concreta fora do processo. Se alguém for vítima de um crime, a pena não atinge imediatamente o agressor, de modo que o processo é um caminho necessário e inafastável para chegar à pena [3].

É principalmente pela possibilidade da aplicação de uma pena que o processo Penal exige uma teoria geral própria, embora essa autonomia lhe seja reiteradamente negada em razão da inadequada aplicação de uma teoria geral do processo.

E isso nasce na academia, com a famigerada disciplina Teoria Geral do Processo (TGP), tradicionalmente ministrada por… processualistas civis! Estes, pouco sabem e pouco falam do Processo Penal e, quando o fazem, é com um olhar e discurso influenciado pela teoria que dominam [4]. O resultado é o que a doutrina chama de "processualização civil do Processo Penal".

A propósito, cabe destaque à Emenda Constitucional 125/22, que inseriu no artigo 105 da Constituição Federal o §2º, que estabelece mais um elemento a ser observado na ocasião do juízo de admissibilidade dos Recursos Especiais, qual seja, a relevância da questão de direito federal infraconstitucional discutida no caso.

A despeito de todas discussões que a inovação vem provocando, nos interessa aqui a exceção estabelecida no próprio texto constitucional (artigo 105, §3º, I), atinente às ações penais que, por expressa disposição, possuem relevância presumida, escapando à supracitada análise.

Ainda que se trate de uma mudança que impacta, imediatamente, apenas o juízo de admissibilidade, é inegável que o seu advento fortalece a corrente crítica da teoria geral do processo, em razão da relativização constitucional de um requisito de admissibilidade, baseado no reconhecimento de que os processos criminais possuem relevância ínsita, que o difere dos demais, que, em regra, precisam demonstrar concretamente a importância da matéria.

Fixadas tais premissas, passarei a tratar da maneira pela qual a análise dos AREsps criminais pode ser realizada, sobretudo no tocante à flexibilização de certos óbices ordinariamente aplicados pelos Tribunais de 2ª instância e reforçados pelo STJ, buscando observar a autonomia da teoria geral do processo Penal.

1) Súmula 182 [5] do STJ — Trata-se, sem dúvidas, da mais importante e inflexível regra que pauta a análise dos AREsps. Sem prejuízo de outras relativizações, entendo pela possibilidade de o STJ admitir dois ou mais AREsps, interpostos por Réus diferentes, desde que os fundamentos de inadmissão sejam, por exemplo, devidamente rebatidos por aquele que não incorreu no óbice da súmula 182, observado o artigo 580 do CPP.

2) Ausência de afronta ao artigo 619 do CPP ou ao 1022 do CPC — óbice amplamente aplicado pelos tribunais de 2ª instância, sendo que não raras vezes ocorre o que Lênio Streck chama de "gaslighting jurídico" [6]. Mesmo diante de impactantes omissões, a autoridade encarregada do juízo de admissibilidade as ignora, alegando que "nada há a esclarecer ou que a parte deseja rediscutir o mérito ou ainda que o juiz tem livre convencimento e por isso não necessita responder aos argumentos da parte, se já está convencido do resultado". Caberia ao STJ avaliar a fundo a real ocorrência de omissão.

3) Súmula 283 do STF, aplicada por analogia [7] — poderia haver o afastamento do óbice pelo STJ na análise do AREsp, independentemente de impugnação específica do Recorrente, nos casos em que for possível verificar, através da simples leitura, que as razões do Recurso Especial abrangem todos os fundamentos do Acórdão recorrido, sendo a inadmissão decorrente de erro da autoridade encarregada de realizar o juízo de admissibilidade na segunda instância, o que acontece com relativa frequência em razão da utilização de decisões padronizadas. Tal situação não ocorre na sistemática atual, que exige impugnação específica e expressa no AREsp interposto contra a decisão de inadmitiu o Recurso Especial, a teor da Súmula 182 do STJ, mesmo que haja flagrante equívoco da autoridade encarregada de realizar o juízo de admissibilidade;

4) Súmula 83 [8] — a aplicação de tal enunciado deve ser restringida, limitando-se às matérias que não sejam objeto de divergência entre a 5ª e 6ª turma ou que sejam tratadas com alguma uniformidade, afastando-se, principalmente, o emprego de julgados isolados ou objeto de divergência no âmbito da 3ª seção, bem como matérias cujo contexto jurídico indique a possibilidade real de mudança de entendimento.

5) Súmula 7 [9] — São várias as discussões envolvendo a aplicação desta súmula, sobretudo no âmbito dos Tribunais de segunda instância no exercício do juízo de admissibilidade dos Recursos Especiais. Destaco aqui o seguinte aspecto: em determinados processos criminais, a questão jurídica exigida para a admissão do Recurso Especial é facilmente identificável nas próprias razões recursais, a despeito da técnica imprecisa do profissional com capacidade postulatória. Nesses casos, deveria o STJ desconsiderar esse óbice, promovendo uma análise mais qualificada da causa, em vez de realizar mera conferência de óbices e suas respectivas impugnações.

Esses são apenas alguns exemplos de situações em que poderia haver tratamento diferenciado entre os AREsps de natureza Penal e Civil, implicando no afastamento de certos óbices diante da natureza peculiar das causas penais. Trata-se do reconhecimento prático da existência de uma teoria geral do Processo Penal que, na maioria das vezes, não se submete aos mesmos conceitos, métodos e institutos típicos da teoria geral do processo civil.


[2] Porto Alegre, Lex Magister, 2014.

[4] LOPES JR., Aury. Quando Cinderela terá suas próprias roupas? A necessária recusa à teoria geral do processo.Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 1, nº 1, p. 230-237, 2015.

[5] É inviável o agravo do artigo 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada.

[7] É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles.

[8] Não se conhece do Recurso Especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.

[9] a pretensão de simples reexame de prova não enseja Recurso Especial.

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