O que fazer quase 18 anos depois? A história de uma cautelar!
22 de setembro de 2022, 8h00
Recentemente, ao assumir a presidência do Supremo, a ministra Rosa Weber retomou o julgamento de diversos processos que estavam pendentes. Dentre eles, os embargos declaratórios na ADI 2.332.
Gosto desses desafios. O Direito é um fenômeno complexo. Há muito venho denunciando que as tentativas de simplificação esvaziam algo que é — ou deveria ser — inerente a qualquer controvérsia jurídica: a construção de respostas adequadas aos casos concretos, à luz da legalidade democrática e da Constituição. Pois bem. O julgamento da ADI 2.332/DF é mais um exemplo disso.
Tão importante é esse tema que está incluído, como capítulo novo, em versão estendida, na sétima edição do meu Jurisdição Constitucional, editado pela Gen-Forense (item 4.5.2, pp. 443 e segs), que deve estar nas bancas nos próximos dias.
Aparentemente se trata de um hard case. Mas pode ser um easy case. Ou se transformar em um tragic case.
Para situar o leitor e os estudantes-pesquisadores, porque o caso merece: a ADI 2.332/DF discutiu a constitucionalidade de medida provisória que, dentre outros temas, alterou para 6% o percentual máximo de juros compensatórios nas desapropriações por utilidade pública e interesse social, bem como criou condições para sua incidência. Editada em 1997 (com posteriores reedições), a MP é o primeiro ato legislativo a regulamentar a matéria. Antes disso, a fixação do índice era jurisprudencial, por meio da Súmula 618 do Supremo Tribunal Federal, determinando a aplicação de até 12%.
A particularidade do ato impugnado (medidas provisórias reeditadas antes da EC 32/01), o transcurso do tempo (17 anos de tramitação) e a reversão da medida cautelar concedida (da inconstitucionalidade à constitucionalidade), aliados à omissão do acórdão sobre os efeitos da decisão, tornam o julgamento dessa ADI um caso sui generis.
Em 2001, o plenário do STF concedeu medida cautelar, dizendo que a MP era inconstitucional e mantendo a aplicação do parâmetro anterior, a Súmula 618 (12%).
Depois dessa decisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a aplicar o entendimento e a própria Suprema Corte continuou aplicando a referida Súmula em sede de controle difuso.
Eis, então, a peculiaridade do caso: em 2018 — ou seja, 17 anos depois e com outra composição —, o STF decide de modo radicalmente oposto ao que fora decidido na medida cautelar, julgando, no mérito, constitucional a medida provisória.
Não se pode esquecer que estamos diante de situações jurídicas que se consolidaram a partir do entendimento do Supremo no próprio julgamento da ADI. Isto é, ao conceder a liminar, o tribunal produziu norma jurídica — como já, corretamente, dizia Hans Kelsen, assunto ao qual voltarei um pouquinho mais adiante.
Sendo mais claro: na medida em que (um)a liminar é uma norma, ela está apta a produzir efeitos. Afinal, cautelar é adiantamento de sentido. E, de fato, essa norma (decorrente da medida cautelar) produziu, por longos 17 anos, efeitos. Portanto, afetar as relações jurídicas constituídas de boa-fé sob os efeitos da liminar colocaria em xeque a própria autoridade do tribunal.
Agregue-se à complexidade do caso o fato de que a medida provisória e as suas reedições nunca foram convertidas em lei. Isso significa que, caso o STF determine a retroatividade da decisão de constitucionalidade, seus efeitos serão equivalentes ao de conversão da medida provisória em lei, tendo em vista o longo período de trâmite da ADI.
Será a MP mais longeva da história. Ou seja, por mais que as MPs anteriores à limitação constitucional para reedições estejam protegidas pela regra da perpetuidade (EC 32/2001), a atribuição de efeitos ex tunc produzirá a imposição judicial de um parâmetro cuja deliberação política foi suprimida da esfera pública pela própria demora no julgamento da ADI.
Por que essa temática é tão importante? Porque ela transcende um caso. Trata da preservação (ou não) da segurança jurídica, do interesse social, do caráter normativo da liminar, da autoridade do Supremo, da temporalidade de medidas provisórias e do adequado manuseio do controle de constitucionalidade.
Todos esses são fundamentos jurídicos suficientes para o afastamento da regra da retroatividade. Uma ADI com provimento da cautelar produz uma declaração de inconstitucionalidade em relação ao novo parâmetro (MP— que passa a não valer) e, simultaneamente, uma declaração de constitucionalidade em relação ao que já vinha sendo aplicado (no caso, a Súmula 618).
Isto é, exemplificadamente: a lei A estava vigente e válida; veio a Lei B (por exemplo, via Medida Provisória) para invalidar a Lei A; por ADI, o STF concede cautelar para tornar válida, de novo, a Lei A (no caso, a Súmula 618). Corolário lógico: vale a antiga lei, agora sob o manto de validade advindo da decisão cautelar.
É que com a decisão liminar na ADI 2.332, o direito vigente e válido passou a ser outro, não o previsto na MP. Isto é, o direito previsto na medida provisória, objeto da liminar, foi tornado, cautelarmente, nulo, írrito, nenhum.
O que aconteceu é que foi posto (a palavra "posto" aqui é no sentido de "direito posto por uma autoridade legitima" — lembrando o sentido de autorictas non veritas facit legis) um direito novo pela medida provisória. Porém, com a cautelar, o STF pôs outro direito, "ressuscitando aquele direito que havia sido anulado". Em filosofia, dir-se-ia: a MP nadificou uma norma; veio a cautelar que nadificou a nadificação, exsurgindo aquilo que fora nadificado. Nadificar o nada faz surgir o que já existia.
Assim, posto o direito de volta por meio da cautelar, esse vale até o dia em que é revogado. Se, no mérito, 17 anos depois, o STF disser que a medida provisória é que estava escorreita e a cautelar fora indevida, parece-me evidente que esse vácuo não pode ser preenchido por uma repristinação de efeitos [1]. É disso que se trata. Esse é o ponto fulcral.
Aqui vem um ponto que trata de algo novo: caberia modulação de efeitos em declaração de constitucionalidade? A resposta rápida é negativa, visto que se presume a constitucionalidade das normas.
No entanto — eis, então, a novidade —, existe neste caso uma exceção que me parece justificar a atribuição de efeitos ex nunc: nas hipóteses em que a declaração de constitucionalidade for precedida de juízo de cognição sumária no sentido da inconstitucionalidade da norma, o corolário lógico é que se possa atribuir tal efeito (ex nunc). O sistema jurídico deve ter uma lógica e uma razoabilidade.
Por já ter sido escrito muito sobre o tema, permito-me atacar o problema com a melhor teoria do direito já feita — e reconhecida por toda a comunidade jurídica — visando a agregar um ganho epistemológico.
Diz a melhor teoria: decisão judicial é também norma jurídica. É dever ser. Desde Kelsen sabemos que norma jurídica é o sentido objetivo de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem. Assim, parece lógico poder afirmar que, se o Supremo Tribunal decidiu — ainda que por cautelar — que a MP era inconstitucional, essa decisão é norma jurídica "como sentido objetivo de um ato de vontade dirigida à conduta de todos os brasileiros".
Em termos de teoria do direito e da Constituição, o Supremo, ao conceder a cautelar, imputou (autorictas!). É como se tivesse legislado. Se o direito, ao fim e ao cabo, em uma democracia constitucional, é aquilo que o Tribunal Constitucional diz que é, então a decisão liminar vale até o dia em que for revogada.
E, à toda evidência, exatamente por ter valido até a decisão de mérito, a nova decisão jamais pode produzir efeitos ex tunc (retroativo). Seria o Supremo Tribunal decidindo contra si mesmo. Portanto, como referido acima, dê-se o nome que se der (modulação de efeitos ou simples atribuição de efeitos), o caso é que a única coisa que parece ser contraditória ao Direito é que a decisão de mérito tenha efeito ex tunc.
Por zelo epistêmico, repito-me: o STF produz(iu) uma norma jurídica. Essa norma dizia: a Medida Provisória que anulava norma jurídica X não é norma válida. Logo, essa decisão é uma norma válida, vigente e eficaz. É novo direito posto.
É possível afirmar, nesse ponto, com base na mais abalizada doutrina jus-filosófica-constitucional (de Kelsen a Canotilho, passando pela melhor doutrina brasileira), que a decisão liminar do STF produziu norma vigente, válida e eficaz.
As perguntas que surgem são: nesses 17 anos, como fica a segurança jurídica? E a boa-fé? E a proibição de repristinação?
Mas vou mais longe, para não ficar apenas com a doutrina acima esposada. Como ponto de partida, penso a questão a partir da moralidade do Direito. Na década de 1960, o grande jusfilófoso Lon Fuller desenvolveu condições específicas que o ato legal e, no geral, o próprio ordenamento legal, precisam cumprir para que sejam considerados como Direito.
Trata de condições necessárias para a existência do próprio Direito, inerente a qualquer processo jurídico, de criação e de aplicação de leis. Vejam os leitores como são interessantes esses oito princípios (ver aqui) que envolvem não somente a criação das regras, mas também as tomadas de decisões das autoridades:
1) as regras precisam ter um caráter de generalidade, ou seja, devem ser aplicadas e direcionadas a todos, contrapondo-se às decisões ad hoc;
2) as regras devem ser revestidas de publicidade, ou seja, devem estar sob conhecimento dos cidadãos, para que se tenham condições de cumprimento;
3) é inadmissível a retroatividade, para que as pessoas possam confiar nas normas vigentes, de forma que elas devem possuir prospectividade;
4) deve haver clareza, ou seja, as regras produzidas precisam estar linguisticamente dispostas de maneira compreensível, para que possam ser inteligíveis pelo cidadão;
5) precisam possuir consistência, não sendo contraditórias entre si;
6) a perfectibilidade também é importante, para que não sejam emitidas regras que exijam dos cidadãos ações impossíveis de concretizar, ou ações as quais eles não possuam poder para concretizar;
7) deve haver uma relativa durabilidade, estando as regras estáveis através do tempo; e, por fim,
8) precisa haver congruência, ou seja, uma harmonia entre as regras que são criadas e publicadas e a sua aplicação por parte das instituições.
Aqui, os "postulados" 1, 3, 5, 6, 7 e 8 parecem ausentes nessa discussão do STF.
Todavia, ainda por zelo epistêmico, permito-me ir mais longe ainda, agora para lembrar que essas questões estavam presentes em clássicos da filosofia e do Direito, como, por exemplo, São Tomás de Aquino. Quando o frade escreve sobre as características para algo ser compreendido como Direito, ele encontra elementos básicos muito próximos aos propostos por Fuller. Questões como prospectividade, não contradição e estabilidade estão expostas na Suma Teológica.
Apesar dos mais de 700 anos que separam os dois autores, percebe-se que eles encontram requisitos comuns para algo ser considerado como autêntico Direito. Dentre esses, está a prospectividade, que é consubstanciada na vedação da retroatividade, a coerência, forte na não contradição, e a estabilidade, compreendida como o poder-dever das regras perdurarem no tempo de forma estável.
Esses três princípios da moralidade interna do Direito — para abordarmos o conceito proposto por Fuller — iluminam o significado da segurança jurídica. Afinal, como construir segurança jurídica se as decisões políticas e jurídicas retroagem no tempo como se esse não existisse, impossibilitando preparação, ação ou previsão dos sujeitos a elas? De novo: norma jurídica é o sentido objetivo de um ato de vontade dirigido a todos os brasileiros (que acreditaram que nesses dezessete anos havia um determinado permissivo legal).
Como concretizar segurança jurídica se as decisões são incoerentes, impossibilitando o planejamento dos cidadãos que a ela estão submetidos? Como possibilitar segurança jurídica se o Direito é instável?
A resposta já nos foi dada por Vaughan no caso Thomas v. Sorrell em 1677, recordada por Fuller no capítulo que trata sobre as oito formas de errar na construção jurídica, qual seja: "law which a man cannot obey, nor act according to it, is void and no law: and it is impossible to obey contradictions, or act according to them" (A lei que o homem não pode obedecer ou agir de acordo com ele é nula e não é Direito, e é impossível obedecer contradições ou agir conforme elas).
Para algo ser, efetivamente, Direito, ele precisa cumprir certos requisitos. Dentre esses, está, de forma inarredável, a coerência, a estabilidade e a prospectividade.
No caso, os três requisitos serão violados pelo STF na decisão de mérito da ADI 2.332, acaso não existir o afastamento da retroatividade. Eis a pergunta: de que modo a decisão — que entende pela constitucionalidade da MP com aplicação dos efeitos da constitucionalidade de forma ex tunc — convive coerentemente com a decisão cautelar, que entendeu pela inconstitucionalidade da MP e suspendeu os seus efeitos por 17 anos? Nesse período existiu o quê? A resposta é de Kelsen: existiu uma norma com eficácia duradoira (para ser fiel à tradução de João Baptista Machado da Teoria Pura do Direito).
Há uma evidente necessidade de se compreender a exigência jurídica de atribuição de efeito ex nunc à decisão pela constitucionalidade, mantendo-se hígidos os efeitos e as decisões tomadas sob a égide da decisão cautelar.
Desse modo, com todos esses elementos complexos, a referida ADI é um caso exemplar para discussão do conceito de segurança jurídica e da própria boa-fé de que fala o CPC nas decisões judiciais. Deveria ser, inclusive, tema para desenvolver em dissertações e teses.
De fato, Direito é, efetivamente, um fenômeno complexo. É um hard case? Sim e não. Se o compreendermos à luz de Kelsen, por exemplo (só para falar desse autor), a questão se torna simples em face dos conceitos de vigência, validade e eficácia.
Com isso, poder-se-ia dizer que a declaração de constitucionalidade da norma liminarmente considerada inconstitucional torna obrigatória a atribuição de efeitos ex nunc. Se forem atribuídos efeitos ex tunc, estaremos longe da resposta adequada à Constituição.
[1] Aqui vale referir o belo texto de Jorge Galvão nesta ConJur.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!