Opinião

Aspectos jurídicos de sociedades com patrimônio líquido negativo (parte 4)

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22 de setembro de 2022, 6h01

Continua parte 3

Possibilidade jurídica de incorporação
Dando continuidade à abordagem sobre os "aspectos jurídicos relevantes de sociedades com o patrimônio líquido negativo no Brasil", o quarto e último artigo desta série tratará das controvérsias envolvendo a incorporação de sociedade empresária com patrimônio líquido negativo (PL Negativo) por outra sociedade.

Por décadas se discutiu se seria possível o procedimento de incorporação de sociedade com PL Negativo por outra (superavitária ou deficitária). No que se refere à dúvida em relação a tal procedimento de incorporação, sob a ótica societária, somos da opinião que não existe qualquer vedação para se efetuar essa operação.

Sobre o tema, a Lei nº 6.404/76 (LSA) dispõe que:

Art. 226. As operações de incorporação, fusão e cisão somente poderão ser efetivadas nas condições aprovadas se os peritos nomeados determinarem que o valor do patrimônio ou patrimônios líquidos a serem vertidos para a formação de capital social é, ao menos, igual ao montante do capital a realizar.
(…)

Art. 227. A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.

Tendo a lei disciplinado o aumento de capital na incorporação, mas não tendo previsto a incorporação sem aumento de capital, como se verifica do dispositivo legal supra, surge a questão se seria possível a incorporação de sociedade sem acarretar aumento de capital. Ou seja, questiona-se a possibilidade de incorporação de sociedade com PL Negativo visto que, nesse caso, por definição, não existiria aumento de capital social em decorrência dessa operação societária.

Essa questão já foi tratada na doutrina nacional, conforme os ensinamentos de VIDIGAL e MARTINS [1]:

"(..) embora ao tratar da incorporação, a lei de sempre a entender que necessariamente haverá um aumento do capital social na incorporadora, a doutrina reconhece ser esta a regra geral, porém admite hipóteses de incorporação nas quais pode ocorrer, ou um aumento de capital apenas com parte do valor do patrimônio líquido avaliado, ou então, a ausência total de aumento de capital. Tratam-se das hipóteses, respectivamente, nas quais a incorporadora detenha parte das ações ou do capital da incorporanda ou detenha a totalidade das ações da incorporanda". (g.n.)

Existem, ainda, outros doutrinadores posicionando-se a favor de tal possibilidade incorporação sem aumento de capital social, dos quais destacamos LATORRACA [2], NEVES [3] e, sobretudo, de BULHÕES PEDREIRA [4], esse último com ensinamentos claros:

(…) "9. Incorporação de Sociedade com Patrimônio Líquido Negativo – A Lei prevê o aumento de capital da incorporadora como parte do procedimento da incorporação porque, em princípio, ela compreende a atribuição de ações ou quotas aos sócios da incorporada. A incorporação implica, em regra, entre outros fenômenos jurídicos, a criação, na incorporadora, das posições jurídicas de sócios (ações, quotas ou quinhões) que substituirão as da incorporada que serão extintas. Entretanto, não pode haver essa criação de posições jurídicas na incorporadora se o valor do patrimônio líquido da incorporada é nulo ou negativo, caso em que a operação dá-se sem aumento do capital social da incorporadora. A incorporação de sociedade (ou de parcela de patrimônio líquido de sociedade cindida) sem aumento de capital da incorporadora não descaracteriza a operação por não ser de sua essência o aumento de capital da incorporadora. A LSA se refere a esse efeito porque, em regra, ele ocorre nas incorporações. Nessa matéria prevalece o princípio da liberdade de contratar das partes." (g.n.)

Assim, pode-se afirmar que há firme posicionamento da doutrina societária sustentando a possibilidade de incorporação de sociedade com PL Negativo visto que, ainda que o legislador tenha pressuposto que a incorporação envolva o aumento do capital social (sendo o caso ordinário de incorporação de sociedades com patrimônio líquido positivo que recompõe o capital) a lei jamais vedou a incorporação de sociedade cujo patrimônio líquido esteja negativo, caso em que tão somente não se aumenta o capital da incorporadora. Ou seja, o aumento do capital não é pressuposto para a incorporação de sociedades, mas sim a absorção dos ativos e passivos da entidade por sua sucessora, que se sub-roga nos seus direitos e obrigações.

Nesse sentido, em 1996, o ministro de Estado da Indústria, do Comércio e do Turismo — última instância do processo administrativo de arquivamento dos atos de comércio — em recurso contra ato da Junta Comercial do Rio de Janeiro (Jucerj), aprovou o arquivamento dos atos societários de incorporação de sociedade com PL Negativo. Nesse processo, se manifestou a Consultoria Jurídica do Ministério que proferiu o notório Parecer nº MICT/Conjur nº 129/1996 [5] de forma favorável à incorporação de sociedade com PL Negativo, destacando que "(…) o princípio fundamental do direito das obrigações é a liberdade de contratar, e não há na lei nenhuma norma ou princípio que proíba a incorporação de uma sociedade com patrimônio líquido negativo. Pelo contrário, operação dessa natureza, aumentando a proteção dos credores da incorporada (pois patrimônio líquido negativo tecnicamente significa situação de insolvência), atende a um dos fins da lei (…)". (g.n.)

Com esse raciocínio, restaria inaplicável o artigo 226 da Lei nº 6.404/76, sendo que o artigo 227 da mesma lei permite a incorporação de sociedade com PL Negativo.

Mais recentemente, a discussão parece ter sido solucionada – ao menos sob a ótica regulatória — no que tange à reorganização societária que envolver incorporação de sociedade com PL Negativo não ter um entrave societário a priori, em vista do recente entendimento do Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI) na promulgação da sua Instrução Normativa nº 81/2020, pelo qual o parágrafo único do artigo 70 indica:

Art. 70. A incorporação, de qualquer tipo jurídico, deverá obedecer aos seguintes procedimentos:
(…)
Parágrafo único. Não há vedação para a incorporação de sociedade com o patrimônio líquido negativo. (g.n.)

Na esfera jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui decisão atestando que sociedade com patrimônio líquido negativo possui valor comercial o que, por óbvio, justifica a razão econômica e o propósito negocial da incorporação, inclusive sendo possível a geração de ágio:

"É interessante ressaltar que o valor do patrimônio líquido deve observar não somente o aspecto contábil, mas também o 'fundamento econômico', ou seja, o real valor da empresa incorporada perante o mercado, haja vista a possibilidade de a empresa apresentar patrimônio líquido negativo e mesmo assim possuir valor comercial por razões mercadológicas várias, tais como: perspectiva de aumento de lucratividade, qualidade dos produtos, aquecimento do mercado de bens onde a empresa atua, etc., fatores estes que foram analisados pela empresa de auditoria contratada pela autora, no momento em que se interessou pelo negócio, tendo realizado estudo econômico necessário para pleitear redução do lucro líquido a título de ágio" [6].

Sob a ótica fiscal, vale pontuar que qualquer sociedade com PL Negativo e que possui saldo de prejuízos fiscais acumulados de períodos anteriores, poderá compensá-los até o limite de 30% do lucro líquido ajustado do exercício, quando o resultado do exercício social for positivo, sem limite temporal [7].

Aspectos fiscais
No que diz respeito aos aspectos fiscais de reorganizações societárias com sociedade com PL Negativo, o cerne da questão se concentra na (im)possibilidade de aproveitamento do maior "ativo fiscal" que pode haver nessa sociedade, isto é, o prejuízo fiscal acumulado. No contexto das reorganizações societárias, o saldo acumulado de prejuízo fiscal da empresa deficitária, com PL Negativo, poderá ser perdido.

Isto porque, nas reorganizações societárias que importam em incorporação por sucessão empresarial, a pessoa jurídica sucessora não pode compensar prejuízos fiscais da sucedida, em virtude de vedação expressa no RIR/18:

"Art. 584. A pessoa jurídica não poderá compensar os seus próprios prejuízos fiscais se, entre a data da apuração e da compensação, houver ocorrido, cumulativamente, modificação do seu controle societário e do ramo de atividade.
Art. 585. A pessoa jurídica sucessora por incorporação, fusão ou cisão não poderá compensar prejuízos fiscais da sucedida.
Parágrafo único. Na hipótese de cisão parcial, a pessoa jurídica cindida poderá compensar os seus próprios prejuízos, proporcionalmente à parcela remanescente do patrimônio líquido." (g.n.)

Ou seja, no caso de incorporação de sociedade com prejuízos fiscais acumulados (sendo, muitas vezes, o caso da sociedade com PL Negativo), o saldo de prejuízos fiscais da incorporada é "perdido", sendo vedada a compensação pela incorporadora. Para as demais operações societárias que impliquem em sucessão empresarial, sendo o caso da fusão e cisão, a mesma regra se aplica, com exceção dos casos de cisão parcial, onde o prejuízo fiscal proporcional, em relação do patrimônio líquido remanescente, poderá ser mantido.

Por força da perda do prejuízo fiscal acumulado na sucedida, após a incorporação ou fusão, em determinadas situações contribuintes optam por realizar a chamada "incorporação às avessas" [8], na qual a sociedade com prejuízos fiscais acumulados e, muitas vezes com PL Negativo, incorpora uma sociedade lucrativa, com patrimônio líquido positivo.

Esse tipo de operação, apesar de não ser vedada em lei, poderá ser considerada como simulada [9] pelo Fisco, a depender do contexto fático da operação, e se comprovado que o único ou principal objetivo do negócio teria sido a incorporação para utilização e compensação dos prejuízos fiscais acumulados pela sociedade que, na prática, deixou de existir, exceto pelo CNPJ cujo prejuízo fiscal está contabilizado na Parte B do e-LALUR.

A jurisprudência do Carf já analisou operações nesse sentido em que, sociedade deficitária, com PL Negativo e prejuízos fiscais acumulados, incorporou empresa com patrimônio líquido positivo e passou a ser administrada pela incorporada, a operar no endereço da incorporada, com os funcionários e marcas da incorporada e objeto social da incorporada.

Nesses casos, a RFB concluiu pela desconsideração da operação, uma vez que restou comprovado que a sociedade com superávit (PL Positivo), é que incorporou de fato a deficitária [10] (com PL Negativo), mas às avessas. Desse modo, caso a operação não seja praticada de forma correta e com base em sólidos propósito negociais e substância econômica devidamente comprovada, o Fisco federal descaracterizará a "incorporação às avessas" de sociedade com PL Negativo, glosando as compensações efetuadas e impondo multa de 150% mais juros sobre o crédito fiscal exigido. Mas frise-se: jamais em função de existência de PL Negativo, mas em função da existência de simulação para aproveitamento de prejuízo fiscal indevidamente.

Portanto, no que tange a realização de operações societárias com sociedade com PL Negativo, até o presente momento não vislumbramos norma que impeça a incorporação de sociedade com PL Negativo por sociedade incorporadora com patrimônio líquido positivo ou negativo. O mesmo entendimento também vale para os casos de fusão e cisão. Todavia, alertamos para o caso das "incorporações às avessas", sobretudo no que tange especificamente o aproveitamento e manutenção do saldo de prejuízos fiscais acumulados pela sociedade incorporada ou fusionada — que serão perdidos em caso de extinção de fato ou de direito da referida sociedade, bem como em casos de simulação.


[1] VIDIGAL, Geraldo de Camargo; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Lei das Sociedades por Ações: Lei 6.404/76. São Paulo, Resenha Universitária, 1978, p. 373-374.

[2] LATORRACA, Nilton. Legislação tributária, 3ª ed., São Paulo, Atlas, 1975, p. 200.

[3] NEVES, Maria Cecília de Castro. Incorporação de sociedade com patrimônio líquido negativo. Revista Forense, v. 345, 1999, p. 103 a 120.

[4] BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. Direito das Companhias. Coord. Alfredo Lamy Filho; José Luiz Bulhões Pedreira. Rio de Janeiro: Forense, 2009. Vol. II, pp. 1785/6.

[5] Parecer MICT/Conjur nº 129/1996, de 26/12/1996 – D.O. nº 6, de 9/1/1997, p. 504-507.

[6] STJ. Decisão monocrática no REsp 1.585.665. Ministro Humberto Martins, julgado em 12/4/2016, DJe 14/4/2016.

[7] RIR/18: Art. 580. O prejuízo fiscal poderá ser compensado com o lucro líquido ajustado pelas adições e pelas exclusões previstas neste Regulamento, observado o limite máximo, para compensação, de trinta por cento do referido lucro líquido ajustado. Parágrafo único. O disposto neste artigo somente se aplica às pessoas jurídicas que mantiverem os livros e os documentos exigidos pela legislação fiscal comprobatórios do montante do prejuízo fiscal utilizado para compensação.

[8] Art. 264, §4º da LSA.

[9] Vide CARF: Acórdão 107-07.596 (2006) em favor do contribuinte ("Caso Martins Comércio"); e STJ: REsp 946.707-RS (2009) contrário ao contribuinte ("Caso Josapar"). Sobre ambos os casos, vide CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e (coord.). Planejamento Tributário: Análise de Casos – Vol. 1. São Paulo: MP Editora, 2010.

[10] Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ Ano-calendário: 2005, 2006, 2007 INCORPORAÇÃO ÀS AVESSAS. DESCONSIDERAÇÃO DOS EFEITOS TRIBUTÁRIOS. Deve ser mantida a glosa de prejuízos fiscais e bases negativas da CSLL nas hipóteses de incorporação às avessas, quando uma empresa extremamente deficitária, com patrimônio líquido reduzido, com o intuito de redução de pagamento de tributos, incorpora uma empresa lucrativa, com patrimônio líquido seis vezes maior que sua incorporadora, e na sequência assume a denominação social da incorporada e passa a ser administrada pela incorporada. (Acórdão n. 9101-003.008 no processo 10830.016265/2010-91. Órgão: Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Rel. ADRIANA GOMES REGO. Julgado em 08/08/2017. Publicado em 05/09/2017. COMPENSAÇÃO.INCORPORAÇÃO ÀS AVESSAS”. GLOSA DE PREJUÍZO FISCAL. MANTIDA. Subsiste a glosa de prejuízos fiscais e bases negativas da CSLL nas hipóteses em que configurada a “incorporação às avessas”,ou seja, quando se constata que incorporada e incorporadora assumiram na prática os papéis trocados, ou seja, quando se comprova nos autos que empresa de patrimônio líquido reduzido incorpora empresa mais lucrativa do que ela e, na sequência, assume a denominação social da incorporada e passa a ser administrada pela incorporada. (Acórdão nº 9101-004.437 – sessão de 8/10/2019).

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