Fábrica de Leis

A PEC nº 91/2019 e o curioso caso da emenda que foi sem nunca ter sido

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20 de setembro de 2022, 8h00

Um promotor de Justiça da comarca de Santa Rita, na Paraíba, costumava dizer que lá havia precedente para tudo: "se você disser que viu aqui uma vaca voando, eu acredito". Acreditava ele também que Santa Rita era a única comarca do Brasil que já havia "gabaritado" o Código Penal, registrando exemplos de cometimento de todos os delitos previstos no Decreto-Lei nº 2.848, de 1940. Exageros e lembranças à parte, percebo que o Legislativo brasileiro tem muito de Santa Rita.

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Já registrei, em outros lugares, a existência de mecanismos informais ou implícitos de controle de constitucionalidade no Legislativo. Basicamente, os membros do Congresso às vezes preferem dar ao projeto de lei uma "morte digna", um "enterro de primeira classe" — a expressão é de Carlos Maximiliano [1] —, rejeitando-o por decurso de prazo, a impor-lhe a infame pecha de ser inconstitucional. Por isso, frequentemente encontram-se no processo legislativo meios não declarados de arquivar proposições contrárias à Constituição, preferindo-se tal expediente à belicosa e forte rejeição expressa por inconstitucionalidade [2].

Porém, no Congresso Nacional esses meios informais de controle parecem ter chegado ao estado da arte no caso da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 91, de 2019, que procura(va) reformular o rito das medidas provisórias, tornando-o mais racional. Prepare-se, leitor: o que vou narrar agora não é algo comezinho.

Tudo começou com um desconforto: a regra da Emenda à Constituição (EC) nº 32, de 2001, que impõe prazo de vigência de 60 dias (prorrogáveis uma vez) para as medidas provisórias (MPVs) e a qual também dispõe que tais proposições trancam a pauta da Casa em que estiverem tramitando, após 45 dias (comuns e improrrogáveis) de tramitação parlamentar. Esse regramento gera um problema para o Senado Federal, que frequentemente se depara com MPVs que já chegam à Casa trancando a pauta, ou que chegam com apenas alguns dias (ou horas!) para serem apreciadas, sob pena de caírem, por decurso de prazo.

Para tentar resolver tal situação, José Sarney, então presidente do Senado Federal, apresentou a PEC nº 11, de 2011, reformulando tal sistemática. Aprovada a PEC, foi remetida à Câmara dos Deputados, onde foi renumerada como PEC nº 70, de 2011. Naquela Casa, a proposta tramitou por alguns anos, sendo, ao final, aprovada com modificações, em 2019. Retornou, então, ao Senado Federal, agora como PEC nº 91, de 2019 (não se perca).

No Senado, porém, a discórdia reinou sobre o que fazer com aquela PEC: aprová-la sem modificações (o que significaria atribuir muito poder às comissões mistas de MPV, já que a Câmara inserira regra segundo a qual a não emissão de parecer do colegiado geraria a rejeição da MPV)? Ou modificar a regra, extirpando esse poder sem precedentes da comissão mista, mas tendo que devolver a PEC para novo debate na Câmara? Optou-se… por um terceiro caminho: aprovar a PEC com emendas "de redação", aproveitando precedente do Supremo Tribunal Federal segundo o qual, se aprovada a proposição sem alteração de sentido, não se faz necessário o retorno à outra Casa do Congresso…

Um problema, no entanto, desenhava-se claro: era árduo defender que aquelas emendas eram de redação, já que alteravam significativamente o conteúdo aprovado na Câmara dos Deputados. Vale lembrar que, nos termos do artigo 118, § 8º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, "denomina-se emenda de redação a modificativa que visa a sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto"… Mesmo assim, essa foi a opção escolhida. Nos bastidores, afirmava-se que a Câmara concordara com essa saída, e que olharia com benevolência essa leitura heterodoxa sobre o conceito de emendas de redação…

Pois bem. Aprovou-se a PEC em dois turnos, como manda o figurino, em 12 de junho de 2019, sendo ele remetida "à promulgação". Foi aí que veio a surpresa: se tinha mesmo havido acordo com a Câmara, esta ou o descumpriu, ou dele se arrependeu; se houve acordo, foi daqueles em que ambos concordaram em discordar. Simplesmente os Deputados não aceitaram considerar as emendas do Senado como modificações meramente redacionais, e começou a correr a notícia de que a Mesa da Câmara dos Deputados recusava-se a participar da sessão solene de promulgação da emenda constitucional (vela lembrar que, nos termos do artigo 60, § 3º, da Constituição), inviabilizando, na prática, a entrada em vigor da norma jurídica. Criava-se, assim, um mecanismo estranho, inédito (até onde sei) e eficaz de controle preventivo de constitucionalidade por meios informais: a recusa em promulgar.

Interessante que, até onde os estudiosos apontam, a promulgação é ato meramente declaratório, que apenas confirma a entrada da norma jurídica no ordenamento [3]. Assim, ao menos em tese, a emenda constitucional decorrente da PEC nº 91, de 2019, já nasceu e integrou-se ao ordenamento jurídico, porém jamais (?) terá eficácia. Não pode nem sequer ser revogada, já que ainda não tem número de emenda constitucional… é o estranho caso da emenda que foi sem nunca ter sido…

A você que chegou até aqui, entretanto, devo um comentário final: e agora, que vai ser feito da PEC? Meu palpite: vai continuar no "limbo", aguardando eternamente a promulgação que nunca virá. O Senado Federal tenta (até aqui, sem sucesso) uma "composição" com a Câmara, a fim de pelo menos adotar um rito mais racional para a tramitação de MPVs. Talvez a aprovação pelo Senado de uma nova PEC com o conteúdo da PEC nº 91, de 2019, com o devido encaminhamento à Câmara, seja uma saída. Ou, talvez, tenha-se que apenas esperar a passagem do tempo, para ver se Cronos, com seu conhecido gosto por devorar seus próprios frutos, termina por digerir a PEC nº 91 e entregar-nos algo mais palatável. Ou, ainda, talvez o tempo tenha passado na janela e só essa PEC não viu, tal qual Carolina na famosa canção de Chico Buarque…

Em suma, Santa Rita é mesmo aqui.

 


[1] MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição brasileira. Rio de Janeiro: J. R. Santos, 1918. p. 440.

[2] Cf. CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Controle preventivo de constitucionalidade e de legística pelas Comissões de Constituição e Justiça: importância, perspectivas e desafios. In: BARBOSA, Maria Nazaré Lins et al. (Orgs.). Legística: estudos em homenagem ao professor Carlos Blanco de Morais. São Paulo: Almedina Brasil, 2020. p. 197.

[3] Por todos, cf. PACHECO, Luciana. Como se fazem as leis. Brasília: Câmara dos Deputados, 2013, p. 70.

Autores

  • é doutor (USP) e mestre (IDP) em Direito Constitucional, consultor legislativo do Senado Federal (área de Direito Constitucional, Administrativo, Eleitoral e Processo Legislativo), professor de Direito Constitucional e de Legística do IDP, representante do Brasil no Grupo de Formulação de Regras Comuns de Legística para os Países e Regiões Lusófonas (Universidade de Lisboa) e advogado.

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