Opinião

Requisitos necessários para consumação da associação para tráfico de drogas

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19 de setembro de 2022, 7h07

O Ministério Público precisa, para o oferecimento da denúncia, de prova da materialidade e indícios suficientes de autoria. Mas não por isso que deixa de oferecê-la quando há investigação ou prisão em flagrante de duas ou mais pessoas em situação de traficância. Além da imputação delito do artigo 33, caput, da Lei de Drogas (tráfico), com certa frequência se percebe a imputação também do delito de associação para fins de tráfico (artigo 35 do mesmo diploma legal), que assim prevê:

Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, caput e §1º , e 34 desta Lei.

Um dos grandes problemas decorrentes da condenação pelo delito acima, se situa no afastamento da causa de diminuição de pena do tráfico privilegiado (artigo 33, parágrafo 4º, Lei 11.343/2006), ainda que ele seja primário. Isso porque a condenação de associação para fins de tráfico pressupõe um vínculo estável e permanente na prática do delito, e, como se sabe, dois dos requisitos para se aplicar o tráfico privilegiado são justamente a pessoa não se dedicar a atividades criminosas ou integrar organização criminosa [1].

Nesse sentido, ao atuar em um processo que envolva o delito de associação para fins de tráfico, é de suma importância conhecer as jurisprudências dos Tribunais Superiores a respeito de quais provas são necessárias para sua consumação, sobretudo em se tratando de cliente primário que poderia ter o direito de ter sua pena reduzida na terceira fase da dosimetria da pena com o reconhecimento do tráfico privilegiado.

A jurisprudência hoje é firme e tranquila no sentido de que, para fins de tipificação do delito de associação para o tráfico, é indispensável a comprovação do vínculo estável e permanente dos agentes, ônus que, por óbvio, recai sobre o Ministério Público, sendo certo que a prisão em flagrante de duas ou mais pessoas no mesmo contexto de tráfico, por si só, não pode e nem deve significar como prova para consumação do delito do artigo 35 da Lei de Drogas. Pode ocorrer, e como é a regra, que esteja ocorrendo mero concurso de agentes. Há diferença muito grande entre concurso de agentes e associação para fins de tráfico.

Afinal, "a configuração do crime de associação para o tráfico pressupõe a demonstração da estabilidade e da permanência do vínculo associativo, ou seja, a associação deve ser duradoura e visar a realização de um número indeterminado de delitos" [2] [3]. Sem esses elementos ocorrerá mero concurso de agentes.

Para além disso, já temos jurisprudências no sentido de que "o mero contato telefônico entre os dois réus para negociar entorpecentes, a divisão simples de tarefas e o depoimento dos policiais acerca dos fatos dão conta de vínculo eventual, não se mostrando suficientes para demonstrar o ânimo associativo estável e permanente entre os agentes" (Agravo no Recurso Especial nº 2.007.595/ MG, ministro Olindo de Menezes, 6ª Turma do STJ.

Vale lembrar que apenas 11,75% das prisões oriundas de crimes de drogas foram lastreadas em investigações policiais, enquanto o restante representa prisões em flagrante [4], no que costuma se chamar de Direito Penal do enquadro. Isso nos leva a questionar a origem desse elemento de informação ou prova, se foi obtida mediante ofensa à privacidade do aparelho celular no momento do flagrante ou se realmente preexistia decisão judicial autorizando a conduta.

O STJ já analisou a situação e sedimentou algumas balizas para a prova oriunda do aparelho celular acessado durante o flagrante sem previa autorização judicial ou autorização expressa do proprietário. Em uma determinada ocasião o réu foi absolvido após constatado que "por ocasião da prisão em flagrante do paciente, o celular que portava foi apreendido, desbloqueado e nele verificada a existência de fotos que indicavam a possível prática do delito de tráfico de drogas[5]. Nesse caso entendeu-se pela ilegalidade da conduta policial e consequente anulação dos atos posteriores, inclusive apreensão de entorpecentes.

Paralelo a isso, o Superior Tribunal de Justiça já vem sedimentando jurisprudência no sentido de que a apreensão de apetrechos ligados ao tráfico tampouco é suficiente para concluir pela materialidade da conduta. No Habeas Corpus nº 705839/RJ, de relatoria da ministra Laurita Vaz, 6ª Turma do STJ , assim ficou consignado:

"Ademais, a citada operação policial sequer indicou a existência de alvos específicos, tendo o Tribunal extraído que o Paciente praticou o crime de associação a partir de ilações a respeito dos objetos apreendidos e do local da prisão, o que não se coaduna com a jurisprudência desta Corte Superior sobre a questão."

Da mesma forma, a quantidade e/ou natureza das drogas apreendidas, bem como denúncias anônimas a respeito da eventual associação para o tráfico, não são fundamentos idôneos para a condenação pelo artigo 35 da Lei de Drogas. Em caso recente julgado pelo ministro Sebastiao dos Reis Junior, no Habeas Corpus nº 753029/SP, a sentença de primeiro grau assim havia disposto:

A estabilidade da associação é demonstrada não somente pela natureza e pela quantidade de entorpecentes, mas pela organização demonstrada e também pelo modo de atuação do bando. Com efeito, os policiais militares tinham recebido denúncias anônimas sobre a atividade ilegal e de pronto conseguiram cessá-la, e, se não estivessem os réus previamente associados, não teriam tanta droga em quantidade e diversidade, com apetrechos e divisão de tarefas, pois partilhavam e vendiam, mas Gabriel Lopes era o responsável pela compra. Acresço a fundamentação expendida acima para a demonstração da prática do crime de tráfico de entorpecentes por todos os acusados, a qual também serve para a caracterização do delito de associação, desnecessária a repetição neste ponto da sentença.

O ministro Sebastião dos Reis, relator do acórdão citado, atacou a decisão com a seguinte fundamentação:

"Então, quanto à condenação pelo crime de associação para o tráfico, as instâncias ordinárias entenderam presentes a estabilidade e a permanência do vínculo associativo, tanto na sentença  demonstrada não somente pela natureza e pela quantidade de entorpecentes, mas pela organização demonstrada e também pelo modo de atuação do bando (fl. 51)  quanto no acórdão da apelação: ouvidos os policiais que participaram da operação, que confirmaram terem apurado que a associação estabelecida pelos réus visando à prática do crime de tráfico tinha, à evidência, caráter permanente. Pesa contra os acusados, além disso, a apreensão não apenas das substâncias entorpecentes no local em que exerciam suas atividades ilícitas, como de objetos normalmente empregados na perpetração tanto do crime de tráfico de substâncias proibidas, quanto naquele de associação criminosa (fls. 23/24). Entretanto, razão assiste à impetração nesse ponto, pois as instâncias ordinárias não apontaram concretamente as circunstâncias que demonstrariam o intento associativo permanente dos agentes, não descrevendo o necessário animus associativo entre eles".

Este caso fica ainda mais interessante porque, ao absolver os acusados do delito de associação para o tráfico, o ministro Sebastião ainda reconheceu o tráfico privilegiado (fato que mencionamos no início do texto).

O ministro decidiu:

"Então, quanto à dosimetria da pena, tem-se que a Corte local considerou que o paciente se dedicava a atividades criminosas  em razão da quantidade de droga apreendida (589,59 g de maconha e 52,73 g de cocaína  fl. 40), tanto na sentença (preso com grande quantia de maconha […] a apreensão destas quantias apontam para a participação em grupos criminosos  fl. 62) quanto no acórdão da apelação (elevada quantidade de substâncias estupefacientes com a qual os agentes foram surpreendidos, cumulada com o reconhecimento do próprio crime de associação  fl. 27)  para indeferir a aplicação da causa de diminuição de pena do tráfico privilegiado (artigo 33, §4º, da Lei nº 11.343/2006). Assim, razão assiste à impetração também nesse ponto, pois a Terceira Seção desta Corte Superior firmou entendimento de que a utilização da natureza e da quantidade da droga apreendida na terceira fase da dosimetria para descaracterizar o tráfico privilegiado somente pode ocorrer quando esse vetor seja conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou à integração a organização criminosa (REsp nº 1.887.511/SP, ministro João Otávio de Noronha, Terceira Seção, DJe 1º/7/2021), o que não ocorreu no caso dos presentes autos".

No caso, a pena do tráfico foi reduzida de seis anos e dois meses de reclusão para um ano e oito meses em regime inicial semiaberto, substituindo-as por duas penas restritivas de direitos.

Indispensável atenção redobrada quando lidamos com imputação pelo crime de associação para fins de tráfico, afinal, os efeitos decorrentes da responsabilização penal se estendem a outras questões e extrapolam a pena e própria responsabilização criminal, elas têm o condão de modificar até mesmo a natureza de eventual crime de tráfico de drogas juntamente apurado.

O crime de tráfico de drogas com aplicação da causa de diminuição de pena do que convencionou-se chamar de "tráfico privilegiado" não possui natureza hedionda [6] e, para progressão de regime se exige as porcentagens de 16% (ao primário ou reincidente genérico) e 20% (ao reincidente específico), em contraste com as frações de 40% e 60% no crime previsto no caput, sem contar a fração de 1/3 e 1/2 para o livramento condicional (em contraste com 2/3 do caput) e a possibilidade de concessão de indulto e comutação no crime privilegiado [7].

 


[1] Apesar de organização criminosa e associação para fins de tráfico serem duas tipificações diferentes com características e requisitos diferentes. HC 183610, relator (a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 19/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-229  DIVULG 18-11-2021  PUBLIC 19-11-2021.

[2] CASTRO, Thiago Rais de. Problemas do processo de criminalização da Associação para o Tráfico de Drogas: dissonâncias sistêmicas do ordenamento jurídico reveladas por acórdãos do Distrito Federal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 25, nº 136, p. 103-125, out.. 2017.

[3] LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Controle penal das drogas e o crime de associação para o tráfico ilícito: comentários ao artigo 35 da lei nº 11.343/2006. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 22, p. 29-47, fev./mar.. 2008

[4] SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p.166.

[5] HC nº 609.221/RJ, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15/6/2021, DJe de 22/6/2021.

[6] Artigo 112, §5º da LEP – (HC 118533, relator (a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 16-09-2016 PUBLIC 19-09-2016).

[7] STF, Rcl 34158, relator(a): ministro RICARDO LEWANDOWSKI, Julgamento: 11/06/2019, Publicação: 13/06/2019

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