Público & Pragmático

Reféns da legalidade: considerações sobre o rol taxativo da ANS

Autor

  • Mariana Carnaes

    é advogada especialista em Direito Regulatório membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

18 de setembro de 2022, 8h00

O julgamento do STJ acerca do rol taxativo da ANS, finalizado em 8/6/2022, teve notória repercussão especialmente dentre aqueles que necessitam de assistência médica ou terapêutica especializada que não constam da lista de tratamentos da agência reguladora (e que, por sua vez, estão aptos a serem cobertos pelos planos de saúde).

À primeira vista, a construção decisória iniciada no âmbito administrativo até o seu deslinde judicial seguiu o devido processo legal: formalmente, foi aberta consulta pública para participação de interessados, os prazos foram cumpridos, diferentes associações foram ouvidas pelo judiciário. Nada de novo no front.

A faceta substantiva do devido processo legal (a ponderação dos fatos) pesou a balança em prol do viés econômico do debate, em que pese ter sido suscitada a garantia de segurança do paciente — o rol taxativo evitaria a cobertura de tratamentos sem comprovação científica ao passo que garantiria a sustentabilidade dos planos de saúde, sendo que eventuais tratamentos cuja eficiência seja comprovada, poderiam ser aderidos ao rol da ANS em média temporal de quatro meses, após avaliação criteriosa da Agência. Sinalizando uma permeabilidade — ou tentando acalmar os ânimos mais aflitos — a decisão criou a aberração jurídica do "rol taxativo com exceções", em que seria possível negociar diretamente com o plano, a cobertura de um tratamento não constante do rol.

Quem vivencia a assistência médica/terapêutica de um deficiente sabe que cada dia de tratamento conta em prol da autonomia da pessoa. Existem medidas aplicadas em intensidade diária — como a terapia Denver, para autistas — e que não suportam aguardar os supostos quatro meses de deliberação da Agência, com o risco de não serem aceitas por liberalidade regulatória ou por pressão setorial. Qualquer um que utilize os serviços do plano de saúde sabe da dificuldade de se obter cobertura completa ou parcial de tratamentos que, inclusive, já constam do rol taxativo. São fatos notórios.

Na teoria, a decisão mostrou deferência à competência técnica da ANS e uma preocupação quanto ao abuso de pedidos de cobertura de tratamentos sem eficácia científica. Na prática, a decisão mostrou uma ponderação de interesses totalmente desequilibrada: de um lado, a vida, a autonomia e o direito à saúde de pessoas deficientes e, de outro, a proteção econômica e o paternalismo contra tratamentos com eficácia não comprovada. Como largamente noticiado, o resultado disso foram os imediatos cortes de tratamentos antes cobertos voluntariamente ou através de liminares, deixando à deriva os pacientes que necessitam deles para viver.

Os livros jurídicos dizem que os princípios não são absolutos e devem ser ponderados no caso concreto. Mas é a realidade é cruel: o impacto do afastamento de um princípio pode ser decisivo na vida de uma pessoa. Nesse caso específico, a discussão está entre a vida (em sua existência ou em sua qualidade) versus o interesse econômico e futura e incerta proteção contra tratamentos duvidosos. Venceu o segundo, em um exemplo de prevalência do direito dos livros (law of the books) sobre o direito da prática (law in action).

Nas palavras de Jean-Louis Halperin, fazendo remissão aos estudos de Roscoe Pound, "pensar seriamente sobre a distinção entre lei dos livros e lei da prática significa reorientar a ênfase da pesquisa jurídica no comportamento observável" [1].

No caso, a lei dos livros (a lei em tese) foi devidamente executada com a ponderação dos interesses envolvidos. Em tese a narrativa de segurança jurídica e sustentabilidade dos planos foi escolhida como a melhor solução. Em tese acreditou-se que em quatro meses os novos tratamentos seriam inseridos no rol e que seria um tempo razoável de espera dos pacientes. Em tese delegar a negociação direta entre partes notadamente desequilibradas seria alternativa viável para conseguir cobertura de outros tratamentos extra-rol.

Por sua vez, a lei da prática teria obrigado a listar os efeitos negativos (e seus impactos concretos) advindos da não realização das citadas suposições. A lei da prática teria forçado um olhar pragmático nas consequências a serem suportadas pelos afetados, não no viés financeiro, mas na própria vida deles. E a lei da prática não está longe: o artigo 20 da LINDB, ao afastar o julgamento com base em abstrações, exige tanto a análise dos efeitos positivos como o sopesamento dos efeitos negativos da decisão.

Já se teve a oportunidade de colocar em dúvida a superação do império da lei, uma vez que a prática administrativa tende para a preferência da regulação técnica concertada, da autorregulação e, consequentemente, da deslegalização.

A conclusão se mostrou cética quanto a isso, não por uma ode à lei formal (pelo contrário, reconhece-se a hipertrofia legalista desnecessária), mas pela importância da lei no viés da representatividade da vontade coletiva e na pacificação daquilo que a administração pública pode e deve fazer, trazendo segurança aos executores e controladores públicos [2].

O caso do rol taxativo da ANS robustece a tese: a distância mantida pelos Poderes Executivo e Judiciário da rotina diária dos hipossuficientes impactados pela norma ou pela decisão por eles delineadas faz remanescer a mencionada hipertrofia, mesmo em um contexto que se pleiteia a abertura, aproximação e permeabilidade da decisão pública. Foi necessário buscar no Legislativo uma atuação que colocasse uma pá de cal na discussão, por receio da discricionariedade administrativa da ANS e da insegurança decisória quanto a possíveis limitares em âmbito judicial. Assim, em 29 de agosto de 2022, em resposta ao pleito social envolvendo inúmeras pessoas físicas e jurídicas, o Plenário do Senado aprovou, de forma unânime, o projeto de lei (PL 2.033/2022) que coloca fim ao rol taxativo, aguardando, apenas, a sanção presidencial [3].

Isso mostra como a sociedade ainda está refém do legalismo, vez que as decisões regulatórias e judiciais, por vezes, ainda permanecem alheias ao grau do impacto que terão na vida dos afetados. Por outro lado, mostra que o sistema de freio e contrapesos e que a democracia representativa são meios eficientes de garantir a atuação dos interessados em busca de seus direitos. Agora é esperar para ver.

 


[1] HALPERIN, Jena-Louis. Law in Books and Law in Action: the problem of legal change. Maine Law Review v. 64 nº 1. January 2011. Disponível em: https://digitalcommons.mainelaw.maine.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1179&context=mlr. Acesso em 5 set. 2022.

[2] CARNAES, Mariana. Processo Administrativo Negocial: balizas normativas para efetivar a negociação no âmbito regulatório. Londrina: Editora Thoth, 2022.

[3] Até o fechamento da edição, o projeto de lei não havia sido sancionado.

Autores

  • é advogada especialista em Direito Regulatório, membra da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, doutora em Direito Administrativo pela USP e autora do livro "Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa".

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