Opinião

Desmantelamento do sistema de persecução penal não tem fim

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

18 de setembro de 2022, 6h06

No Brasil, diferentemente de muitos países de primeiro mundo, nosso sistema processual penal é calcado na prova testemunhal. Praticamente não há polícia técnica científica, que é empregada em casos seletivos, posto que a quantidade de crimes existentes inviabiliza tal método de investigação. Sem contar ainda que, na imensa maioria dos estados, ou não existe institutos de criminalística ou eles não contam com pessoal e material mínimo para que possam realizar o trabalho a contento, mesmo em poucos casos em que sejam imprescindíveis.

Há, por outro lado, casos em que a prova testemunhal é a única necessária para elucidação do delito, que é a quase totalidade deles. Estou a me referir aos crimes corriqueiros, como os flagrantes de tráfico de drogas, roubos, furtos e outros do gênero em que não se faz indispensável a prova científica, podendo perfeitamente serem elucidados por meio da prova testemunhal.

Só quem atua no ramo sabe que nas comunidades em geral e nas regiões mais pobres impera a chamada "lei do silêncio". Ninguém viu nada, sabe de nada e nem ouviu dizer nada por razões óbvias. Geralmente, quem traz algumas informações são as pessoas diretamente interessadas na elucidação do crime, quais sejam, parentes e amigos das vítimas.

No entanto, há crimes em que não há vítima determinada, como ocorre no tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo e outros em que atingem interesses difusos, aqueles que interessam a todos indistintamente (segurança e saúde pública, meio ambiente, consumidor etc.).

Isso sem contar que nenhum policial vai convidar alguma pessoa do povo para acompanhar a revista pessoal de alguém, de seu veículo ou a busca domiciliar, sob pena de, no caso de reação ou resistência, inclusive a tiros, ser responsabilizado se houver perigo ou ferimento no convidado.

Levando-se em consideração esses percalços e nossa realidade, bem como a natureza dos serviços prestados pelos policiais, de preservação da segurança e combate ao crime, isso por determinação constitucional (artigo 144 da CF), seu testemunho conta com fé pública, ou seja, presunção de veracidade e legitimidade, já que fazem parte do sistema de segurança estatal. Se a lei lhes confere o dever de exercer a função de polícia preventiva, ostensiva e investigativa, quando chamados a prestar conta de seu trabalho, mediante oitiva policial ou judicial, não é razoável não acreditar no seu depoimento.

Vige, no caso, o sistema de distribuição dinâmica do ônus da prova. Quem alega tem o dever de provar sua alegação, que, no Código de Processo Penal, vem previsto no artigo 156. Cabe à defesa, portanto, demonstrar que o depoimento do policial não é verdadeiro, trazendo motivos para o desmerecer e desacreditar, ou deixar no ar dúvida de sua fidedignidade.

Assim, aquele policial que não conhece o flagrado, investigado ou acusado, ou que não teria interesse e nem motivo para mentir e incriminá-lo falsamente, seu depoimento é dotado de presunção de veracidade e legitimidade, sistema existente desde sempre em nosso direito.

Nem posso dizer que é surpresa diante de tudo que tem ocorrido, mas espanto ao me deparar com uma proposta em trâmite no Superior Tribunal de Justiça de se criar tese justamente no sentido contrário, isto é, da presunção de falsidade do depoimento do policial.

No AREsp 1.936.393/RJ, o ministro Ribeiro Dantas, propôs a superação da tese que dá presunção de legitimidade e veracidade ao depoimento do policial, passando a considerar o contrário, por entender ser ingênua e irreal a ideia de que policiais nunca mentiriam ou que nunca teriam motivos para incriminar réus que não conhecem. Diz que tal presunção inverte em prejuízo da defesa o ônus que é exclusivo da acusação, passando a exigir a gravação em áudio e vídeo de toda abordagem ou operação para que o depoimento policial tenha validade (aqui, entre os tempos 50min17 a 58min44).

O entendimento do ministro peca por razões de ordem lógica. É claro que nem todos os policiais agem de forma correta, do mesmo modo que nem todo magistrado ou membro do Ministério Público também o fazem. O que não se faz possível é transformar a regra em exceção, partindo-se do pressuposto de que toda pessoa não presta e que os bons são a minoria ou mesmo inexistem.

O agente de segurança pública presta o compromisso de dizer a verdade, sob pena de processo criminal e até mesmo perda do cargo (artigo 203 do CPP), ao passo que os acusados e investigados, bem como seus familiares, podem mentir à vontade. Os primeiros por terem o direito constitucional de não se autoincriminarem (artigo 5º, LXIII, da CF) e os outros por poderem até mesmo se negar a depor em razão do parentesco, e, mesmo que deponham, não prestam o compromisso de dizer a verdade (artigos 206 e 208 do CPP).

A diferença entre a fidedignidade do depoimento do policial, do réu e de seus familiares é marcante, não havendo como negar.

Primeiro, o STJ praticamente impede o ingresso na residência de um suspeito sem ordem judicial, que sabemos que em muitos casos sua demora impediria a produção da prova, que teria ido literalmente para o esgoto. Depois, limitou sobremaneira as revistas pessoais, exceto quando praticamente houver o flagrante delito, quase dando salvo conduto para assaltos, tráfico de drogas, receptação, porte ilegal de arma de fogo e outros delitos que atormentam a vida do cidadão e trazem pânico em algumas regiões das médias e grandes cidades.

Posteriormente, proibiu as guardas municipais de atuar no patrulhamento preventivo, salvo em defesa dos próprios municipais, mesmo naquelas cidades em que o policiamento realizado pela Polícia Militar é insuficiente ou até inexistente. Agora, ao menos um ministro, posto que o julgamento não está encerrado, levanta a inusitada ideia de dar presunção de falsidade e ilegitimidade ao depoimento do policial, que, para ter valia, será necessária a filmagem de toda abordagem, revista e operação, o que é impossível de ocorrer em todas as unidades da Federação por absoluta falta de estrutura, de meios e de dinheiro.

A verdade é que o sistema de segurança pública e processual penal está sendo de tal modo desfigurado, que em pouco tempo praticamente será impossível apurar infrações penais e, quando isso ocorrer, obter a condenação.

Por outro lado, mesmo que obtida a condenação e imposta pena de prisão (só para os crimes mais graves ou para os que teimam em delinquir), o sistema de execução penal possui tantos benefícios que a pena imposta será reduzida à metade ou mais e logo o sentenciado estará nas ruas sem que lhe tenha sido ministrada a terapêutica penal de forma adequada.

Direito penal simbólico não intimida e nem previne a prática de infrações penais, pelo contrário, estimula-as.

Tristes dias para o direito em que o crime, a cada momento que passa, mais compensa.

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