Opinião

Inteligência artificial aplicada à Defensoria Pública: uma realidade urgente

Autores

  • Alberto Carvalho Amaral

    é doutorando em sociologia (UnB) mestre em Direito (UniCeub) especialista em Direito Processual (UniSul) e Ciências Criminais (UniSul) e defensor público do Distrito Federal.

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

17 de setembro de 2022, 7h02

A Defensoria Pública, instituição provedora de justiça que foi incumbida de promover os direitos humanos e de prestar assistência jurídica integral e gratuita [1] a mais de 90% da população brasileira [2], apesar de conviver com sérias restrições orçamentárias, avançou paulatinamente nos últimos anos com o fim de garantir que os cidadãos tenham direito a ter direitos efetivos e possam participar ativamente da vida jurídica estatal. Tudo isso apesar do orçamento da DPU chegar a ser 12 vezes menor do que o do Ministério Público da União e 6 vezes menor do que a advocacia pública federal [3]), distinção que também ocorre no âmbito das defensorias estaduais e do Distrito Federal [4] .

A Defensoria, por nós designada de "SUS do sistema de Justiça" [5], eis que, tal qual o SUS, é caracterizada por ser uma instituição de portas abertas, prestando um serviço público a toda uma gama de cidadãos brasileiros e estrangeiros hipossuficientes e hipervulneráveis, finalmente conseguiu ver-se instalada em todas as unidades da federação (no estado do Amapá, o primeiro concurso para defensores públicos foi realizado no ano de 2017 — quase 30 anos após a promulgação da CF/88), tem obtido importantes vitórias nos tribunais superiores [6] e, por meio de rigoroso concurso público de provas e títulos, vem selecionando profissionais que levaram a Defensoria a ser a instituição do sistema de justiça melhor avaliada pela sociedade no ano de 2019 [7].

Porém, muitos são os percalços encontrados pelo caminho e a Defensoria, tal como advertido por Raul Seixas [8], sabe "que é de batalhas que se vive a vida".

As vitórias conquistadas pela Defensoria têm forjado uma instituição com pilares mais sólidos que, justamente por ter ciência do relevante munus que lhe foi outorgado pelo legislador constituinte, busca, de forma combativa e coesa, promover a dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais, garantindo que todo cidadão tenha acesso à justiça — vetor material do princípio da igualdade —, objetivos comuns à instituição defensorial [9] e à República Federativa do Brasil [10].

Adversidade recentemente enfrentada pela Defensoria Pública deu-se nos autos da ADI nº 6.852, ação direta proposta pela Procuradoria-Geral da República e que impugnava prerrogativa de requisição em vigor desde o ano de 1994 [11].

E hoje pode-se dizer que, graças à provocação do MPF, a instituição defensorial, após intenso debate na Suprema Corte, detém o respaldo do Pretório Excelso acerca da mencionada prerrogativa, ferramenta indispensável à promoção da tutela coletiva e à efetivação da resolução extrajudicial de litígios — função institucional da DP [12].

Outra luta que tem atualmente demandado esforços da Defensoria Pública está relacionada à premente necessidade de interiorização dos serviços prestados pela instituição.

De acordo com a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública publicada em 2022, apenas sete Defensorias estaduais (Acre, Amapá, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Tocantins) têm atuação em todas as comarcas [13].

Quando falamos de DPU, a situação não é diferente. Os referidos dados apontam que, ao menos 40,4% da população brasileira que recebe até três salários-mínimos está impossibilitada de postular seus direitos perante a Justiça Federal.

Ou seja, em pleno Brasil de 2022 (na era do 5G), há um grande número de cidadãos que, seja por falta de recursos, de conhecimento acerca dos seus direitos ou de alguma situação de vulnerabilidade, está alijado de compreender seus direitos e de postular perante o Poder Judiciário com o objetivo de assegurar seus direitos fundamentais mais comezinhos.

A esse cidadão relegam-se, no mais das vezes, políticas públicas essenciais, sendo lembrado pelos mandatários apenas em ano eleitoral e justamente para exercer a sua obrigatória capacidade eleitoral ativa (única faceta de cidadania a ele reconhecida).

Agrega-se a todos esses argumentos o solene descumprimento da EC nº 80/2014 por parte do Poder Público, norma constitucional que prevê que, até o ano de 2022, a União e as unidades federativas deveriam contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais.

Feitas essas considerações acerca das dificuldades enfrentadas pela Defensoria Pública e da importância da instituição como instrumento do regime democrático em um país tão desigual (tal como consignado por Pedro González [14]), passemos ao objeto do presente ensaio e que se revela como mais um desafio à instituição, qual seja, a necessidade da utilização de inteligência artificial como meio para prestar um serviço mais eficiente à população vulnerável.

Neste ponto, percebemos que a Defensoria Pública está, inegavelmente, em descompasso com outras instituições do sistema de justiça. E aquele cidadão, com dificuldades para acessar a justiça pelas dificuldades materiais e de alcance do serviço, depara-se agora com o agravamento de sua situação, por situar-se no grupo dos vulneráveis digitais [15].

Como exemplo, podemos citar a advocacia pública federal que tem no Sapiens (ferramenta que venceu o Prêmio Innovare no ano de 2020) um sistema que produz conteúdo jurídico e controla fluxos administrativos, viabilizando a integração com os sistemas informatizados do Poder Judiciário e do Poder Executivo.

O aludido sistema procura simplificar rotinas, auxiliando na elaboração da defesa judicial, gerenciando a adoção de modelos e teses de direito padronizadas em âmbito nacional, de forma a tornar coesa a atuação dos advogados públicos federais em todo o território nacional e em todas as instâncias [16].

No STJ, o sistema Athos localiza — mesmo antes da distribuição aos ministros — processos que possam ser submetidos à afetação para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos. A plataforma monitora, ainda, processos com entendimentos convergentes ou divergentes entre os órgãos fracionários do STJ, casos com matéria de notória relevância e, ainda, possíveis distinções ou superações de precedentes qualificados.

No âmbito defensorial, vemos que a utilização da inteligência artificial é ainda incipiente e, via de regra, não auxilia, com o potencial que poderia, o membro na atividade-fim. Acaba limitada a procedimentos administrativos ou de gerenciamento.

Na DPU, temos o módulo assistente de peticionamento, elaborado conjuntamente com o Serpro, que utiliza algoritmo de linguagem natural permitindo classificação das petições, acesso a modelos e, no futuro, poderia auxiliar na confecção de peças [17] ; na DPE-MA, há o sistema de agendamento online para atendimento nos núcleos [18], o projeto de assistência e visita virtual implantado em parceria com o Depen e o Def_Flix, ferramenta de armazenamento de documentos e peças processuais em "nuvem"; na DPE-MS, sistema de atendimento para diminuição de filas a partir de cada Núcleo e seu próprio regime de horários, férias e licenças [19]; na DPE-SP, o sistema Defi possibilita atendimento virtual, cadastro e triagem prévio, com direcionamento de atendimento; e na DPE-CE, o programa Dona Dedé orienta atendimento sobre processos e ações iniciais, assim como a assistente virtual Luna, da DPE-TO [20].

De acordo com a citada pesquisa nacional da defensoria, não há utilização de plataforma que permita, a partir de soluções de tecnologia, (1) selecionar modelos de peças em processos dotados de multiplicidade, propiciando que o defensor os adapte ao caso concreto e (2) identificar casos semelhantes em determinado âmbito territorial, que possa viabilizar uma litigância estratégica por meio de tutela coletiva.

Dissertando sobre o tema, Thales Alessandro Dias Pereira et al afirma que [21]:

"Uma pré-análise dos autos, com a sugestão de peças e teses jurídicas correspondentes, representaria um ganho exponencial de tempo diante do volume de demandas. Além disso, tornaria possível uma uniformização da atuação da Defensoria, com a possibilidade de disponibilização célere de teses de maior índice de sucesso entre os diversos núcleos.
Sob o ponto de vista estratégico, esse compartilhamento de teses jurídicas pelas ferramentas de IA poderia propiciar a coordenação nacional da atuação dos defensores, especialmente na seara do direito coletivo e no modo de prequestionar matérias de lei federal e constitucional para a interposição de recursos excepcionais. Aqui, a jurimetria exerceria um papel fundamental, permitindo comparações estatísticas entre os índices de aceitação das teses nas diversas varas e tribunais."

Constata-se, essencialmente, que a Defensoria Pública brasileira ateve-se, em razão da pandemia causada pela Covid-19, a adotar ferramentas voltadas ao atendimento remoto e ao agendamento online de assistidos, providência muito relevante e que representou mais uma porta de acesso à Justiça por parte do cidadão vulnerável.

Porém, ainda há muitos passos a serem trilhados, especialmente porque os tribunais têm avançado sensivelmente na adoção de mecanismos de inteligência artificial para racionalizar seus serviços, o que pode representar, no futuro próximo, ainda mais dificuldade para os já atingidos pela vulnerabilidade digital.

Os esforços de acesso à justiça precisam considerar a magnitude do impacto que a inteligência artificial, se bem utilizada, pode causar na eficiência de uma instituição que atende milhões de pessoas por ano (a Defensoria brasileira atendeu, em 2019, 19.552.220 assistidos [22]).

A aplicação da inteligência artificial na atividade-fim revela-se, pois, premente e irá conferir maior agilidade e eficácia à resolução extrajudicial de litígios e à tutela individual e coletiva de direitos, propiciando um ganho de qualidade no serviço público prestado pela Defensoria, que irá resultar, inexoravelmente, na concretização de um espectro mais amplo de direitos titularizados pela população hipervulnerável.


[1] Art. 134, caput, da CF/88

[4] A esse respeito, veja-se: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br .

[5] REIS, Rodrigo Casimiro. Defensoria pública e covid-19 no cenário intra e pós-pandêmico. Belo Horizonte: D'Plácido, 2021.

[8] RAUL SEIXAS. Tente outra vez. Rio de Janeiro: Phillips, 1975.

[9] Art. 3º-A, I, da LC n. 80/94

[10] Art. 3º, III, da CF/88

[11] ADI 6852, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059 DIVULG 28-03-2022 PUBLIC 29-03-2022

[12] Art. 4º, II, da LC 80/94

[14] "(…) a Defensoria Pública (…) pode proporcionar o pluralismo de vozes e de interesses no cenário jurídico e processual, empoderando os protagonistas do debate democrático (…) Promove, assim, a inclusão por meio dos direitos e colabora de forma inegável para a efetivação da supremacia da vontade popular" (GONZÁLEZ, Pedro. Acesso à Justiça e Defensoria Pública. Londrina: Thoth, 2021. P. 164/165).

[15] A vulnerabilidade digital, no âmbito sociojurídico, deve ser compreendida como "questões subjetivas, materiais, estruturais que limitam, fragilizam ou excluem determinados sujeitos em razão do desconhecimento e dificuldades de acesso à internet, aplicativos eletrônicos ou outros sistemas de rede que irão impactar no acesso a meios culturais, educacionais, econômicos" (AMARAL, Alberto Carvalho. Considerações sobre as possibilidades e os desafios da inteligência artificial aplicada à Defensoria Pública. In: Rodrigo Freitas de Palma; Camila Nogueira de Resende Lopes Ribeiro, Fernanda da Rocha Teixeira. (Org.). Direito, Tecnologia e Telecomunicações. Curitiba: Juruá, 2022, v. 1, p. 210).

[17] BRASIL. Serviço de Processamento de Dados (SERPRO). Inteligência artificial agiliza atendimento na Defensoria Pública da União. Disponível em: https://www.serpro.gov.br/menu/noticias/noticias-2020/inteligencia-artificial-defensoria-publica-uniao. Acesso em 5 maio 2022.

[18] BRASIL. Defensoria Pública do Estado do Maranhão. Disponível em: https://defensoria.ma.def.br/agendamento/. Acesso em 21 ago.2022

[19] BRASIL. Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul. Defensoria Pública investe em inteligência artificial para melhorar serviços. Home page, 10 out. 2018. Disponível em: http://www.defensoria.ms.gov.br/imprensa/noticias/958-defensoria-publica-investe-em-inteligencia-artificial-para-melhorar-servicos. Acesso em 10 maio 2021.

[20] FERREIRA, Flávio; GALF, Renata. Atendimento jurídico virtual atinge baixa renda, mas liga alerta sobre exclusão digital: defensorias públicas investem em tecnologia, e pesquisadores questionam prejuízos aos que não possuem acesso à internet. Folha de São Paulo, 14 set. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/tecnologia-chega-a-atendimento-juridico-para-pessoas-de-baixa-renda.shtml.

[21] PEREIRA, Thales Alessandro Dias; PEIXOTO, Fabiano Hartmann. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistapoliticiajudiciaria/article/view/6413/pdf. Acesso em 21 ago. 2022.

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