Improbidade em Debate

Marcadamente garantista, a reforma é louvável e deve ser preservada

Autores

16 de setembro de 2022, 8h00

A improbidade administrativa forneceu terreno fértil para que, ao longo de décadas, florescessem investidas por vezes punitivistas. Não por acaso, mercê precisamente de abusos passados, o modelo brasileiro se viu diante de cenário inusitado: uma conjuntura parlamentar em que impera um discurso de recrudescimento sancionador logrou produzir uma reforma marcadamente garantista com a Lei nº 14.230/2021 (!). Seja como for, o resultado foi, a nosso ver, louvável: a democracia deliberativa impôs um freio de arrumação à pretensão sancionadora estatal, revigorando direitos fundamentais básicos.

Spacca
O viés sancionador, todavia, não cessou e parece apenas ter recuado para tomar impulso, não tardando a revelar um escrutínio da reforma. Um primeiro passo se deu com o Tema 1.199 de repercussão geral, sobre o qual já nos detivemos nesta coluna. Felizmente, em que pesem algumas ressalvas já feitas, a literalidade da retroatividade da lei benigna possuiu contundência suficiente a torná-la óbice incontornável. Ainda assim, soou alerta que algo elementar quanto aquela garantia haja logrado impor tamanho ônus argumentativo para seu reconhecimento.

Mais recentemente, as ADIs 7.042 e 7.043 fizeram voltar à balha a reforma da Lei de Improbidade, dessa vez para rechaçar a legitimidade exclusiva do Ministério Público. Os argumentos, em essência, foram os mesmos de outras insurgências precedentes: limitar a defesa do patrimônio público a uma dada faceta estatal implicaria retrocesso na proteção constitucional conferida à improbidade.

Do ponto de vista meritório, a despeito de a tese acabar tendo sido acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, a ela respeitosamente nos opomos. A legitimação exclusiva do Ministério Público jamais colocou em risco a titularidade da pretensão reparatória pelas Fazendas Públicas, devidamente resguardada. Exatamente por isso não fez sentido para nós o raciocínio de que o zelo pelo patrimônio público desprestigiaria a eliminação da legitimação concorrente, eis que a Fazenda seguiria não apenas capaz de desencadear ações de ressarcimento e acessar assim a Justiça, como também de perseguir sanções por vias diversas da da improbidade.

Spacca
Em passagem do julgado, sem embargo, aduziu-se que a legitimidade da atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio público e social seria extraordinária, porque a legitimidade ordinária para proteção do seu próprio patrimônio seria da fazenda pública, de sorte que, sofrendo ela um ato de improbidade a causar-lhe um prejuízo, deveria ela poder defender seu patrimônio. Não questionamos isso. Nosso ponto é que da defesa do patrimônio não deflui uma espécie de direito subjetivo à persecução sancionadora por parte das Fazendas.

Outro ponto trazido pela maioria formada foi no sentido de que o artigo 129, § 1º, da Constituição, asseguraria legitimidade ao Ministério Público, mas não excluiria a possibilidade do agir de terceiros. Em primeiro lugar, o indigitado artigo nem sequer faz menção a improbidade e, em segundo lugar, conquanto não exclua a possibilidade de terceiros atuarem, tampouco consagra que haja um direito nesse sentido, pela via da improbidade, assegurado à Fazenda.

Mais bem explicando, a opção adotada pelo legislador reformador, legítima, foi no sentido de afastar da Fazenda Pública a pretensão puramente punitiva em sede de improbidade, mas não tolheu (1) mecanismos de controle interno, (2) a própria seara disciplinar, (3) a possibilidade de ajuizamento de ação de reparação, (4) a representação ao Ministério Público para instauração de inquérito civil ou aviamento de ação de improbidade, (5) a via do controle de contas e (6) a intervenção como assistente do próprio Ministério Público em ações que contivessem pretensão ressarcitória cumulada com sancionadora.

Trata-se, em nossa visão, como dito, de escolha válida, que não vulnera nenhum dispositivo constitucional e nem atrai a incidência do devido processo legal substantivo, a somente autorizar a sindicância de alteração legal democraticamente legitimada quando, excepcionalmente, restem afrontados direitos fundamentais ou a base do sistema democrático. Aqui, ao revés, o que houve foi o próprio prestígio a direitos fundamentais em sua feição mais clássica: a de anteparo frente ao poder do Estado. Isto é, tomou-se aquele que seria o limite autorizador de um judicial review como fundamento para escrutínio da escolha legislativa.

Aliás, e indo além, o argumento de esvaziamento da defesa da probidade carece até mesmo de respaldo empírico quando se nota que levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2015 revelou que praticamente três quartos das ações de improbidade no Brasil são manejadas pelo Ministério Público. É dizer, haveria de fato uma inanição no combate à improbidade com a extirpação da atuação das Fazendas? Preferimos crer que nem sempre "mais Estado" necessariamente induza maior eficiência e que talvez a concentração da legitimidade no Ministério Público, instituição mais aparamentada para persecução sancionadora, poderia ter tido o condão de fomentar um maior diálogo institucional com as Fazendas, diálogo cuja falta restou escancarada com casos recentes envolvendo acordos de não persecução e de leniência: ilustra o passivo deixado pela falta de uma interação entre órgãos do Estado (1) contestação recíproca de acordos por se considerarem insuficientes valores acordados a título de reparação, (2) uso de provas por órgãos diversos inobstante a falta de adesão, (3) necessidade posterior de que novos acordos sejam celebrados de modo a contemplar outros entes, reabrindo precificação de sanções e desconsiderando o ability to pay que orientou os primeiros ajustes e (4) necessidade posterior de rediscussão do cronograma de pagamento dos acordos etc. Em suma, se antes a celebração de acordos exigiria intervenção da Fazenda limitada à rubrica do ressarcimento, agora necessariamente haverá ela de ser envolvida a fim de participar da discussão sobre eventuais sanções, sob pena de carecer o instrumento do necessário lastro de segurança que move possíveis colaboradores.

Convém ainda endereçar o fundamento da opção legal, que centrou seus argumentos no fato de que o aviamento de ações de improbidade pelas Fazendas frequentemente observaria desvio de finalidade, patrocinando perseguições a adversários, por exemplo. A isso respondeu o voto-condutor afirmando que abusos, suscetíveis de cometimento também pelo Ministério Público, haveriam de ser reprimidos, mas não fundamentariam a eliminação da legitimação concorrente. Da afirmação não se duvida, mas qual o custo sistêmico, qual o efeito colateral de um agir meramente repressivo desse manuseio abusivo da improbidade administrativa?

Sim, o Ministério Público também pode abusar, mas há diversas garantias que buscam imunizar seu agir de uma conotação política, garantias essas não extensíveis aos advogados públicos. Em verdade, grande parte dos municípios nem sequer possui quadro permanente de procuradoria, o que torna o manejo de ações pelas Fazendas de fato muito mais permeável a uma contaminação política, orientando a conveniência de que possam elas representar ao órgão ministerial para um primeiro filtro sobre a viabilidade de certas investidas, em lugar de sujeitar a esmo toda e qualquer pessoa a constrangimento ilegal somente reconhecido a posteriori: para quem é inocente, responder a uma ação de improbidade já é sanção em si grave e irreversível, independentemente de absolvição.

Enfim, e eis aqui o capítulo mais recente das investidas em desfavor da reforma introduzida pela Lei nº 14.230/2021: na esteira do louro institucional obtido pelas associações de advogados públicos, a Confederação Nacional de Membros do Ministério Público e a Associação Nacional de Procuradores da República aviaram as ADIs 7.236 e 7.237, calibradas pelas discussões já travadas nos julgamentos precedentes, questionando uma série de outros dispositivos alterados pela Lei n. 14.230/2021. Em linhas muito gerais, a argumentação, uma vez mais, é no sentido de enfraquecimento do sistema de combate à corrupção e tutela da probidade e à independência e autonomia do Ministério Público, a par de outras questões formais.

Sem adentrar o cerne das pretensões, temos que a reforma empreendida pela Lei nº 14.230/2021 merece ser prestigiada e devemos todos estar atentos a tentativas de seu esvaziamento. O desacordo meritório com relação a mudanças legislativas não conduz à sua inconstitucionalidade, de sorte que, a perseverar um desapreço pelo legislador, a reforma certamente será a menos significativas das baixas que amarguraremos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!