Seguros Contemporâneos

O seguro D&O visto pelo STJ: notas sobre o Ag. de Instr. em Resp nº 1.504.344/SP

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

15 de setembro de 2022, 8h00

Em boa hora, o Superior Tribunal de Justiça voltou a examinar os contratos de seguro D&O, novamente o fazendo de maneira didática e exemplar. A primeira oportunidade na qual a Corte Superior analisou esse importante contrato ao empresariado brasileiro se deu em 14/2/2017, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.601.555/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, por unanimidade de votos.

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Naquela ocasião, pela primeira vez a corte enfrentou um problema seríssimo à administração das companhias abertas, qual seja, o insider trading [1], e seus impactos à validade do contrato de seguro de diretores e administradores (geralmente referido como seguro D&O).

Por meio de voto magistral, que, com efeito, debruçou-se sobre a ainda árida doutrina brasileira a cuidar do tema — responsabilidade de administradores, iluminada pelos contratos de seguro D&O —, o ministro Cueva decidiu que, na hipótese examinada não haveria que se falar em validade da apólice porque o administrador, in casu, valeu-se da posição privilegiada que ocupava na administração da companhia para auferir benefícios próprios, em detrimento dos interesses da sociedade.

O insider trading, como ensina a doutrina societária de escol, corresponde a um dos problemas mais sensíveis à administração das companhias, justamente porque, a bem da verdade, qualifica-se como a sua antítese. O insider, ao invés de zelar pelos interesses da sociedade que o elegeu à administração, restringe a sua atuação a interesses pessoais e, assim, além de prejudicar a companhia, provoca uma crise aguda de confiança por parte do mercado como um todo, seja dos acionistas da companhia, seja dos investidores em geral.

Segundo o voto do ministro Cueva,

"A apólice do seguro de RC D&O não pode cobrir atos dolosos, principalmente se cometidos para favorecer a própria pessoa do administrador, o que evita forte redução do grau de diligência do gestor ou a assunção de riscos excessivos, a comprometer tanto a atividade de compliance da empresa quanto as boas práticas de governança corporativa. […] Em outras palavras, atos fraudulentos e desonestos de favorecimento pessoal e práticas dolosas lesivas à companhia e ao mercado de capitais, a exemplo do insider trading, não estão abrangidos na garantia securitária." (Grifou-se).

Para além da questão do insider trading, essencial à formação da convicção do julgador, pesou também no resultado final o fato de ter ocorrido violação ao dever de declaração inicial do risco pela tomadora da apólice, aquela que a contratou em nome de seus administradores, atraindo, in casu, a sanção prevista no artigo 766, caput, do Código Civil.

Mais recentemente, através de acórdão datado de 16/8/2022, o Superior Tribunal de Justiça voltou a debater os contratos de seguro D&O, nesta oportunidade por meio de sua 4ª Turma. Também por unanimidade de votos e com acórdão do ministro Raul Araújo, a Corte Superior entendeu por manter o acórdão proveniente do Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo como pano de fundo a interessantíssima discussão relacionada à administração do Banco Santos e seu acionista controlador.

O lapidar acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, relatado pelo desembargador Vito Guglielmi, 6ª Câmara de Direito Privado, julgado em 11/12/2008, já havia impressionado pela riqueza da pesquisa elaborada por S. Excelência. À época, com efeito, praticamente não havia doutrina publicada no país a respeito desse contrato de seguro, o que provocou o esforço por parte do magistrado no sentido de pesquisar tanto doutrina quanto jurisprudência proveniente de Estados Unidos e Inglaterra, países em que o contrato em questão se apresenta desenvolvidíssimo de longa data.

Com a chegada do feito ao STJ, coube ao ministro Raul Araújo proferir exemplar voto, no qual, entre outros aspectos, decidiu que:

"O seguro de responsabilidade civil de conselheiros, diretores e administradores de sociedades comerciais (RC D&O) tem por objetivo garantir o risco de eventuais prejuízos causados em consequência de atos ilícitos culposos praticados por executivos durante a gestão de sociedade, e/ou suas subsidiárias, e/ou suas coligadas." (Grifou-se)

Extrai-se dos autos examinados pela Corte Superior que houve confusão patrimonial entre o acionista controlador do Banco Santos e a pessoa jurídica, a revelar sérios problemas no tocante à administração da companhia [2]. O final da história atinente à administração do Banco Santos é conhecido do público em geral, o qual culminou com o decreto de sua falência e inúmeros prejuízos causados a seus correntistas, trabalhadores e à sociedade como um todo.

A análise que se fez, pelo STJ, a respeito dessa conduta à luz do contrato de seguro D&O, revela que administradores que violem o dever de lealdade — a confusão patrimonial a que se aludiu bem ilustra hipótese de violação a esse dever — não estão aptos ao merecimento de cobertura.

O segundo aspecto ressaltado pelo voto do ministro Raul Araújo, assim como destacado no voto do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, refere à violação ao dever de declaração inicial do risco e a consequente perda do direito à garantia securitária. É o que se lê nesta passagem da ementa:

"2. O segurado que agir de má-fé ao fazer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta pela seguradora ou na taxa do prêmio está sujeito à perda da garantia securitária, conforme dispõem os arts. 765 e 766 do Código Civil."

Na qualidade de observador assíduo dos contratos de seguro D&O há tempos [3], confesso que o nascimento dessa jurisprudência de elevadíssima qualidade por parte do Superior Tribunal de Justiça é alvissareira. Espero, nesse sentido, que ela sirva de norte aos próximos acórdãos que serão publicados Brasil afora a respeito dessa apaixonante temática.

 


[1] Fábio Konder Comparato, em 1978, escreveu a respeito da necessidade de moralização do mercado de bolsa de valores no Brasil e, nessa linha, da repressão ao insider trading. Confira-se: "Na insider trading, o que existe é o aproveitamento de informações reservadas sobre a sociedade emissora dos títulos em detrimento do outro contratante, que as ignora. Há, por conseguinte, antes uma omissão volitiva, do que uma atuação ou pressão sobre o valor de mercado dos direitos ou papéis negociados. O comportamento do insider é tipicamente de dolo por omissão, silenciando intencionalmente a respeito de fato ou qualidade que a outra parte ignorava, de tal arte que esta não teria por certo, celebrado o contrato se não existisse a omissão dolosa". (COMPARATO, Fábio Konder. "Insider Trading": sugestões para uma moralização do nosso mercado de capitais. In Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 13-14). Modesto Carvalhosa, por sua vez, afirma que na questão concernente à obtenção de vantagem pessoal em detrimento da sociedade haverá de se presumir o dolo do administrador: "Enquanto a lei Societária fala em dolo, está simplesmente qualificando a conduta do administrador. Não se pode presumir o dolo do administrador, embora, nos casos de se conduzir para obtenção de benefício próprio em detrimento da companhia, torna-se presumido o dolo." (CARVALHOSA, Modesto e KUYVEN, Fernando. Sociedades Anônimas. In Tratado de Direito Empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. v. 3. p. 881).

[2] Os seguintes trechos do acórdão proveniente do TJ/SP são esclarecedores: "[…] De outro lado, e diante desse quadro, caminhou o seguro para cada vez mais criar cláusulas de exclusão de responsabilidade. Dentre as mais importantes, destacam-se a insured versus insured, dishonesty or fraud, known actions e deliberate acts. Essencial, portanto, que lições do direito comparado sejam colacionadas, para igualmente definir e delimitar a incidência ou não, no caso específico, delas. Bem por isso mesmo que doutrina se debruça sobre essas cláusulas […]. Também a respeito da possibilidade de exclusão de cobertura a partir do reconhecimento de fraude, explica DAVID GISCHE (op. cit) que a cláusula compreende as condutas desonestas, fraudulentas ou dolosas em violação às leis ou estatutos ou que tragam ganhos ilícitos ao segurado, e que comprovada a ocorrência dessas práticas não podem ser elas atribuídas a terceiros diversos do segurado para que haja a cobertura. […] Os demais procedimentos, ainda que posteriores à proposta, mais caracterizam essa prática. Não só se verifica infração ao dever de lealdade, como de cuidado. Bem de ver, caracterizam a administração voltada para o interesse pessoal e não da companhia. […] Assim a administração voltada para o exclusivo interesse pessoal do autor, acionista controlador, de modo a paulatinamente retirar capital do Banco Santos S/A (em prejuízo exclusivo aos investidores, já que não tem a instituição ações cotadas em bolsa, pois detém ele a quase integralidade do capital, repita-se) para as empresas satélites, em especial aquelas com sede em locais denominados de 'paraísos fiscais', e bem as constantes alterações das estruturas societárias de modo a deformar as informações. Aliás, e nessa mesma ordem de idéias, o Banco foi instado (e os procedimentos administrativos disso dão conta) a regularizar suas informações contábeis, de tal modo nela inseridos elementos fictícios."

[3] Para um aprofundamento a propósito desse tema, seja permitido referir ao nosso GOLDBERG, Ilan. O contrato de seguro D&O. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

Autores

  • é advogado e parecerista, doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Ucam, professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento, da Emerj e da Escola de Negócios e Seguros e sócio fundador de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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