Opinião

Suicídio assistido: dignidade da pessoa humana, liberdade e felicidade

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12 de setembro de 2022, 17h07

1. Introdução
Ao longo dos anos, surgiram questionamentos na bioética quanto à terminalidade da vida e a autonomia de pessoas para decidir a quais tratamentos querem se submeter.

Sobre o tema, a Constituição se fundamenta na dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III) para constituir o Estado democrático de Direito. A dignidade é um conceito filosófico e abstrato relativo a necessidades básicas.

Sendo assim, podemos entender dignidade como o valor que inspira o ideário dos direitos humanos em todas as suas dimensões, devendo servir de base para qualquer ordenamento jurídico democrático (SILVA, 2017).

A dignidade também abrange autonomia do ser humano, seu livre-arbítrio para decidir o próprio caminho. Quando se fala em autonomia, inclui-se o direito de escolher a própria morte, ou melhor, o direito de morrer.

Posto isso, tem-se a necessidade de analisar o suicídio assistido e seus desdobramentos na sociedade, estudando o papel do Direito sobre o tema.

Já que o nascimento não é uma escolha, que o falecimento digno seja.

2. Desenvolvimento
Em algum lugar, existiu alguém que desejava manter relações homoafetivas sem ser considerado crime de sodomia. Que gostaria de ter reconhecido o seu direito ao voto. Que gostaria de ter reconhecida a atividade de profissional do sexo. Nesses desejos, implícita ou expressamente, está presente a ideia de dignidade humana.

Por isso, a dignidade tem sido usada em matérias como aborto, eutanásia, suicídio assistido, uniões homoafetivas, cirurgias de mudança de sexo, prostituição, descriminalização das drogas, pena de morte, entre outros (BARROSO, 2014).

Nessa linha, dignidade da pessoa humana dá fundamento ao direito à busca da felicidade, fornecendo elementos para a formação da identidade do ser humano (ORTEGA, 2016). Inclusive, tal direito foi reconhecido pela Suprema Corte (ADPF 132/RJ) em julgamento sobre a união homoafetiva.

Sendo assim, adianta falarmos em direito à busca da felicidade se o indivíduo está sofrendo por uma doença sem perspectiva de cura? Se não consegue sequer levantar da cama? Quando há sofrimento, não há estado de consciência plenamente satisfeito (MONTEIRO, 2010). Cabe unicamente a quem passa pelas situações em análise dispor sobre como deve encerrar a própria vida, pois é assim que se garante a felicidade e dignidade.

É indispensável citar que um grande problema dos tempos atuais não é fundamentar os direitos humanos, é protegê-los do véu da religiosidade, que muito trabalha para manter a aflição e dor alheia em prol de um paraíso pós-morte.

Sobre a religiosidade, cabe-nos dizer que o filósofo grego Epicuro sustentava que cultuar deuses era um desperdício de tempo, pois não há existência após a morte, e que a felicidade é o único propósito da vida. Para o filósofo, a busca pela felicidade é uma procura pessoal (HARARI, 2019).

Ainda sobre o direito à busca da felicidade, a Constituição norte-americana, influenciada pela Declaração de Direitos da Virgínia de 1776, pode ter sido o primeiro modelo constitucional a tratar o direito à busca da felicidade como fundamental (BOAVENTURA, 2016).

Na citada declaração, cabe ao ser humano o direito individual de buscar sua própria felicidade, por ser subjetivo (BOAVENTURA, 2016).

Deste então, a Suprema Corte americana tem invocado o direito fundamental à felicidade para fundamentar casos sobre igualdade, discriminação e concretização da dignidade da pessoa humana (PORCIÚNCULA, 2020).

Além da dignidade da pessoa humana, direito à busca da felicidade, existe o direito a liberdade de consciência e de crença (artigo 5°, VI, CF). Assim, analisa-se a (re)estruturação do raciocínio sobre o suicídio assistido.

2.1. Do dever de evitar o suicídio
A quem cabe o dever de evitar que pessoas se suicidem? Cabe ao Estado estabelecer campanhas sobre saúde mental? Cabe ao Direito Penal sancionar com medida de segurança os que tentaram se suicidar? Cabe ao Direito Civil a interdição dos que tentaram? Cabe ao Direito Administrativo responsabilizar civelmente o Estado pelos cidadãos que se suicidaram?

Na verdade, a pergunta correta é: cabe a alguém a responsabilização por um suicídio? O Direito Penal apenas tipificou o induzimento, instigação e auxílio ao suicídio (artigo 122, CP). Não se pune o suicídio (o sujeito passivo está morto) nem a tentativa (punir-se-ia duplamente alguém sem as plenas as faculdades mentais).

É fundamental a atuação estatal em campanhas, não apenas no Setembro Amarelo, mês da campanha de prevenção ao suicídio, mas também no atendimento psiquiátrico e psicológico aos cidadãos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Um ambiente socialmente saudável reduz os índices de suicídio.

Posto isso, o suicídio tem um ramo chamado suicídio assistido, mas não se confunde com ele. No assistido, há amparo jurídico e psicológico, no mínimo. Não ocorrendo escondido, muito pelo contrário, existe auxílio médico.

Vejamos mais especificadamente do tópico seguinte.

2.2. Do suicídio assistido
Suicídio assistido é o ato pelo qual um indivíduo provoca a sua própria morte com a ajuda de outra pessoa. Em geral, um médico fornece meios necessários, mas quem pratica a ação é o paciente (BARROSO, 2014).

O debate sobre o suicídio assistido normalmente parte do pressuposto que o sujeito em questão está doente em fase terminal, passando por grande dor e sofrimento, ou em estado vegetativo permanente.

Muitas religiões condenam tal ato, mas questiona-se se deixar uma pessoa sofrendo também não seria uma condenação, ainda que não seja divina.

Indivíduos com doenças terminais e passam por grande sofrimento deveriam ter direito a escolher ao suicídio assistido. A legislação deve ser cuidadosamente elaborada para garantir que a morte com dignidade não se torne meio para o abuso de idosos e deficientes sem critérios mínimos (BARROSO, 2014).

Se existe a possibilidade de recusar tratamento, deveria haver possibilidade de escolher morrer dignamente. Proibições estatais que forçam um paciente em estado terminal a esperar pela morte natural são uma afronta à dignidade humana.

Nessa linha, a primeira lei de direito de morrer nos Estados Unidos, a Lei de Morte com Dignidade do Oregon (1994), veio após luta de um século. Estados americanos que elaboraram leis sobre o tema a seguiram. No Havaí, incluiu-se a exigência de exame de saúde mental e um período de espera de 20 dias entre as solicitações (HANNIG, 2020).

Tempo de espera é interessante, mas o paciente pode ficar incapacitado de ingerir a medicação letal. Tomar a medicação cedo significa abreviar a vida e esperar muito tempo significa correr o risco de perder a escolha, pois estará incapacitado de expressar seu desejo.

Ainda sobre o Oregon, quase 80% das pessoas que procuraram assistência médica para morrer em 2018 tinham 65 anos ou mais (HANNIG, 2020).

Por fim, talvez confirmando óbvio, suicídio assistido não é uma forma legal de cometer homicídio, pois prestigia a dignidade da pessoa humana. Inclusive, é mister dizer que deveria ser oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

2.3. Associação Dignitas
"Dignidade" vem do latim "dignitas", termo que designa o que merece respeito, consideração ou estima.

Sediada na Suíça, a associação Dignitas dá assistência ao suicídio a cidadãos desde 1998. Essa prática, que envolve em sua maioria cidadãos do Reino Unido, França e Alemanha, é chamada por certas autoridades de "turismo da morte".

Cabe-nos fazer alguns esclarecimentos. De início, destaca-se que, conforme o próprio site da associação, uma das atividades é a prevenção de suicídio e a sua tentativa.

O acesso à morte assistida na Suíça não é uma questão de dinheiro, pois a Dignitas é uma associação sem fins lucrativos [1]. A associação verifica se as precondições estão estabelecidas e se o desejo de morrer reflete a vontade do associado. É importante determinar se a capacidade de discernimento está de prejudicada e se alguém próximo está induzindo.

Ademais, associação ainda fornece instruções jurídicas sobre diretiva antecipada, decisões antecipadas de recusa de tratamento e testamento vital.

Abordaremos tais institutos no tópico seguinte.

2.4. Diretrizes antecipadas
Muitas pessoas têm medo de ficar impossibilitadas de exprimir suas vontades, conectadas a máquinas em um hospital e serem mantidas vivas artificialmente por um longo período de tempo. Querem dar vida aos seus anos, não anos à sua vida.

Indo contra o desamparo, existem as diretrizes antecipadas (gênero) ou testamento vital (espécie) (DADALTO, 2013). São disposições sobre tratamentos, procedimentos e cuidados que se deseja ou não se submeter quando a manifestação de vontade não for possível. Inclusive, pode-se designar terceiro responsável pela tomada das decisões (PONA, 2022).

Destaca-se, a possibilidade de o paciente ser auxiliado por um profissional de saúde na feitura do documento, por ser leigo, não possui técnicas para redigir de forma pormenorizada a recusa de tratamentos (DADALTO, 2013).

Na Câmara dos Deputados, existem os Projetos de Lei (PL) nº 5.559/2016 (direitos do paciente) e nº 352/2019 (consentimento informado e instruções prévias de vontade para fase terminal). No Senado, PL nº 149/2018 (diretivas antecipadas) e PL nº 493/2020 (estatuto do paciente, com capítulo sobre diretivas).

O PL nº 149/2018 define pessoa em fase terminal como em estágio avançado de doença incurável e progressiva ou vítima de grave e irreversível dano à saúde, cujo prognóstico é de morte iminente e sem perspectiva de melhora do quadro clínico.

Inclusive, consta no PL que podem ser vedados nas diretivas cuidados ou procedimentos desproporcionais, inclusive hidratação e alimentação artificial e tratamentos paliativos.

Hoje, já se fala em diretivas antecipadas psiquiátricas, planos de parto, situações relacionadas à manifestação da vontade no futuro e que não necessariamente envolvem o fim de vida (PONA, 2022).

3. Conclusão
A morte assistida reformula como a medicina deixa de ser uma forma pura de prolongar a vida e passa a nos atender, ao encurtar o processo de esperar o dia da morte.

Pacientes que sofrem de doenças dolorosas e intratáveis às vezes chegam a um momento em que a perspectiva de permanecer vivo parece pior do que morrer. A ideia de ter um momento e maneira para dispor sobre sua morte traz um enorme conforto.

É necessário garantir ao paciente que seus desejos serão seguidos quando ele não mais puder exprimi-los e é de extrema importância garantir que o médico não sofrerá retaliação ao seguir expressamente a vontade do paciente.

Para tanto, torna-se crucial que as discussões sobre a declaração prévia de vontade do paciente ocorram de forma efetiva e científica, jamais sendo um contrato de adesão a ser contratado com o plano de saúde.

Diante de todo o exposto, espera-se que os projetos de lei se tornem leis. Por toda a História do Brasil, principalmente quanto à interferência religiosa, sabe-se que suicídio assistido está longe de ser um tema debatido no Congresso.

Na verdade, muito deve ser feito antes de chegar à morte assistida. Apesar da factível demora nas discussões, faz-se necessário trazer a tona o debate justamente para que um dia, em um futuro próximo, algum brasileiro possa realizar o suicídio assistido pelo SUS.

 


Referências

Barroso, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Tradução Humberto Laport de Mello. 3° ed. reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

BOAVENTURA, Thiago Henrique. Seria a busca pela felicidade um Direito Fundamental? Disponível em: https://thiagobo.jusbrasil.com.br/artigos/404537613/seria-a-busca-pela-felicidade-um-direito-fundamental. Acesso em 1/9/2022.

DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Revista de Bioética y Derecho. ISSN: 1886-5887. Barcelona, nº 28, ano 2013, p. 61-71. Disponível em: https://swab.zlibcdn.com/dtoken/3ae4a9842890aba8f5ebec849130539a/s1886-58872013000200006.pdf. Acesso em 31/8/2022.

HANNIG, Anita. Assisted dying is not the easy way out. Disponível em: https://theconversation.com/assisted-dying-is-not-the-easy-way-out-129424. Acesso em 30/08/2022.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. 13° impressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SILVA, Roberta Soares da. Dignidade humana. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Humanos. Wagner Balera, Carolina Alves de Souza Lima (coord. de tomo). 1ª ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/507/edicao-1/dignidade-humana. Acesso em 29/08/2022.

MONTEIRO, Juliano Ralo. PEC da felicidade positivará direito na CF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-mai-29/pec-felicidade-positivacao-direito-reconhecido-resto-mundo. Acesso em 1/9/2022.

PONA, Éverton Willian. Testamento vital: quais são os rumos do debate legislativo brasileiro? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-04/direito-civil-atual-testamento-vital-quais-rumos-debate-legislativo-brasileiro. Acesso em 31/08/2022.

PORCIÚNCULA, André Ribeiro. Direito fundamental à felicidade: realidade ou ficção jurídica? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-14/porciuncula-direito-fundamental-felicidade#_ftn2. Acesso em 1/9/2022.

ORTEGA, Flávia Teixeira. O que consiste o princípio da busca da felicidade? Disponível em: https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/383860617/o-que-consiste-o-principio-da-busca-da-felicidade. Acesso em 1/9/2022.

 


[1] Informações encontradas no site da associação Dignitas. Disponível: em http://www.dignitas.ch/?lang=em. Acesso em 31/8/2022.

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