Opinião

Eutanásia sob a perspectiva do biodireito e dos direitos humanos

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28 de janeiro de 2022, 9h16

Com o desenvolvimento das ciências naturais o homem percebeu que havia outro caminho a ser desenvolvido diante de procedimentos médicos. A interferência gradativa da tecnologia na vida das pessoas começou a propor um passo para o melhoramento da vida em relação às doenças e a longevidade. Neste contexto, começou a surgir a Bioética. Antônio Mesquita Galvão assim a descreve:

"Em 1970, o cancerologista Van Renssealer Potter criou o verbete bioética, para caracterizar uma especulação surgida por volta dos anos 70, depois do primeiro impacto dos transplantes e outras descobertas científicas. Ela apareceu buscando uma reestruturação da análise das questões, não apenas médicas, mas mais biologicamente abrangente. Trata-se de um novo campo, multidisciplinar; mais disciplina que ciência" (2004, p.55).

Logo, identificamos a bioética como um campo de ciências biológicas que está dividida em outras modalidades, bem como podemos concluir que a bioética designa um projeto de utilização da ciência biológicas destinado a melhorar a qualidade de vida. A Bioética evoluiu entre as normas e resoluções mundialmente. Neste contexto, existe um ramo do direito que se associa a bioética, o qual estuda as relações jurídicas dos direitos e o avanço da tecnologia conectado a medicina e a biotecnologia  se trata do Biodireito. Edison Tetsuzo Namba, esclarece:

"Quando se trata de biodireito, menciona-se norma de prevenção e de influência do descompromisso da eticidade na condução da vida e dos avanços científicos. Percebe-se isso nitidamente quando se fala sobre o nascituro e o embrião, aborto, retirada do feto anencefálico, células-tronco embrionárias, clonagem humana, experimentação com seres humanos, reprodução assistida, mudança de sexo, transfusão de sangue, transporte de órgãos, eutanásia entre outros assuntos de suma relevância para a sociedade contemporânea" (2009, p. 14).

Geralmente, os juristas concordam que os princípios basilares da Bioética, bem como do Biodireito, seriam os princípios da autonomia, do consentimento informado, da beneficência, da não-maleficência, da justiça e da dignidade da pessoa humana.

A dignidade humana, valor essencial da pessoa no plano jurídico, pode ser considerada a razão de diversos direitos fundamentais, como o próprio direito à vida, assim como o direito à liberdade, à igualdade, à integridade física e psíquica. Para que o ser humano exerça sua cidadania, é preciso que suas necessidades mínimas sejam satisfeitas. As condições básicas para o equilíbrio físico, mental e social devem ser garantidas. No que diz respeito à autonomia, se pode afirmar:

"O princípio da autonomia estabelece a ligação com o valor mais abrangente da dignidade da pessoa humana, representando a afirmação moral de que a liberdade de cada ser humano deve ser resguardada; no da beneficência existe o reconhecimento do valor moral do outro, considerando que maximizar o bem do outro supõe diminuir o mal, e no da justiça ou equidade, a norma reguladora deve procurar corrigir, tendo em vista o corpo-objeto do agente moral, a determinação estrita do texto legal" ( BARRETTO,  apud MAMBA, 2009, p. 11).

Assim, de acordo com o princípio da autonomia, o paciente tem o direito de resolver sobre as atividades que impliquem alterações em sua condição de saúde física ou mental, impondo-se, de outro lado, para que sua opinião seja adequada, o dever de os envolvidos prestarem todas as informações relevantes sobre o tratamento ou pesquisa que se irá realizar. A autonomia significa o poder que a pessoa tem para tomar decisões que afeta a sua vida, a sua saúde e a sua integridade física e psíquica. Respeitar a pessoa autônoma é reconhecer que cada pessoa possui pontos de vista e expectativas próprias quanto a seu destino, sendo elas quem deve deliberar e tomar decisões de acordo com seu próprio plano de vida, embasados em crenças, valores e aspirações próprias, mesmo quando estas divergem dos profissionais de saúde

A aplicação do princípio da autonomia busca horizontalizar a relação entre o médico e o paciente, fazendo com que o paciente fique protegido de tudo o que possa se configurar como limitador ou redutor de sua livre manifestação da vontade, com possíveis abusos de poder típicos do paternalismo positivo ou negativo, como explica Rogerman:

"A importância do princípio da autonomia se revela muito em função da assimetria da relação entre médico/paciente e pesquisador/sujeito do experimento. O paciente em consequência de sua enfermidade está numa situação de inferioridade ou de vulnerabilidade e, por motivos evidentes, não dispõe do mesmo cabedal técnico de conhecimento que o médico. Desse modo essa assimetria tende a colocar o médico ou o pesquisador numa posição de vantagem, mas não o credencia a dela utilizar-se para tirar dela qualquer tipo de vantagens, configurando como ilícito, já que se aproveitando de sua perícia técnica, tende tradicionalmente a assumir para si a tomada de decisões morais, para as quais, sem dúvida, não tem porque possuir qualificação especial, e, mesmo em caso de tê-la, isso não faculta a tomar decisões unilaterais" (2013).

No que diz respeito aos Direitos Humanos, muitos autores adotam a expressão "Gerações dos Direitos Humanos" como referência as etapas evolutivas da positivação dos direitos humanos. Outros preferem o termo "Dimensões dos Direitos Humanos", pois evitaria a ideia de que uma geração supera a outra. Na segunda metade do século XVII sobrevieram as chamadas revoluções liberais, com fundamento de proteger a liberdade dos indivíduos na esfera privada. Aqui se trata da primeira geração/dimensão, também chamados de liberdades públicas. Esses são direitos dos quais, num primeiro plano, incumbe um não fazer, uma prestação negativa, um dever de abstenção, por parte do Estado.

Os direitos de segunda geração/dimensão se caracterizam como prestações positivas, tendo como marco a Constituição alemã de Weimar (1919), no início do século XX. Visto que as práticas liberais acabaram por criar um distanciamento social entre a classe burguesa e operária, e as meras liberalidades públicas não eram suficientes para garantir a sobrevivência das pessoas, a sociedade então entendeu que o homem não vive só com os direitos negativos, precisa daqueles em que o Estado tem que prover a mínima subsistência humana, como o direito à saúde, educação, moradia e segurança.

Após o advento do direito de segunda geração, o mundo sofreu com as atrocidades da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), englobando o Holocausto perpetuado pelos nazistas. Neste contexto se destaca o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948, com o corolário da proteção universal, também conhecidos como "direitos de fraternidade ou universalidade". Manoel Gonçalves Ferreira Filho, conceitua sobre as três principais gerações dos direitos fundamentais:

"As três gerações, como o próprio termo geração indica, são os grandes momentos de conscientização em que se reconhecem "famílias" de direito. Este tem assim, características jurídicas comuns e peculiares. Ressalva-se, que, no entanto, que, no concernente à estrutura, há direitos que, embora reconhecidos no momento histórico posterior, tem a que é típica de direito de outra geração. Mas isso é um fenômeno excepcional" (2012, p.24). 

Historicamente, a eutanásia era praticada por povos como os gregos, romanos, germanos, sul-americanos, indianos, celtas, eslovenos, entre outros. No Brasil, algumas tribos deixavam à morte seus idosos, principalmente aqueles que já não mais participavam das festas, caças entre outros. Neste contexto, discorreu-se no 2º Fórum de Questões Bioéticas, sobre essa prática:

"O 'direito de matar' ou o 'direito de morrer' sempre teve em todas as épocas inúmeros defensores. Alguns povos da antiguidade praticavam diversas formas de eutanásia. Os espartanos, por exemplo lançavam do alto do monte os seus recém-nascidos deformados e até anciões. Na Índia antiga os incuráveis eram jogados no Rio Ganges. E em Roma o polegar para baixo dos Césares era uma indulgencia autorização que permitia aos gladiadores feridos morrerem sem muito sofrimento" (2000, p.62).

Neste contexto, a eutanásia volta à tona nas discussões ocorridas em todas as esferas da sociedade, agora sob a luz de princípios éticos e jurídicos. No que diz respeito a definição de eutanásia, Antônio Mesquita Galvão, leciona:

"O verbete eutanásia vem do grego, em que eu (bom) + thanátos (morte), dão uma ideia de 'boa morte' ou 'morte feliz', isenta de dores e sofrimento. A expressão eutanásia teria sido cunhada por F. Bacon (1626) para caracterizar uma 'boa morte'. Essa concepção, porém, era usada figurativamente, no terreno da política" (2009, p. 82).

No Brasil a eutanásia é considerada pela maior parte da doutrina penalista como um homicídio doloso e privilegiado. O Código Penal Brasileiro não possui um tipo específico. No poder legislativo federal brasileiro existem vários projetos para a legalização da morte sem dor. Também tramita um anteprojeto para alterar os dispositivos do Código Penal legislando sobre a questão da eutanásia em dois itens do artigo 121, nos quais excluiria a ilicitude do ato, pelo menos no que diz respeito a "ortotanásia".

Outro termo que se tem tornado conhecido neste contexto é a "distanásia". Esta é o inverso da eutanásia, e se configura na atitude médica que tenta de todos os modos impedir a morte do paciente, mesmo sabendo que a chance de cura é mínima. Por outro lado, "ortotanásia" significa o não prolongamento do processo de morte além do que seria natural. Ela deve ser praticada por médico, segundo o entendimento de Edison Tetsuzo Mamba:

"No Brasil, a discussão de 'morrer bem' conduziu a aprovação da Resolução 1.805/2016, de 28.11.2006, do Conselho Federal de Medicina… O artigo 1º, caput, foi redigido com seguinte teor: 'é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolongam a vida do doente na fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa e de seu representante legal'. É a ortotanásia como procedimento na condução de cuidados com doentes terminais" (2009, p. 174).

Sob o prisma dos Direitos Humanos e Fundamentais, o artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante expressamente o direito à vida e não há como afastar a sua ligação com o direito à dignidade da pessoa humana, que assegura a todo o indivíduo uma vida digna. A grande questão é se o direito a uma vida digna envolve o chamado direito a "morte digna ou sem dor".

A dignidade da pessoa humana é o objetivo almejado, não existindo direito fundamental maior ou menor. Para os defensores da eutanásia, a decisão de continuar o tratamento em situações drásticas só pode caber ao indivíduo, a partir de uma escolha pessoal e reflexiva. Caberia ao indivíduo valorar sua existência, dando uma dimensão específica e concreta ao bem concebido juridicamente de forma absoluta e abstrata. Qualquer ação pautada pelo princípio da dignidade humana não poderia ser objeto de reprovação penal. No entanto, os que se posicionam de forma contrária, temem a banalização do instituto e da vida.

A eutanásia sob a óptica dos princípios do biodireito, transita na análise da beneficência e da autonomia. Então, até que ponto a conduta de um agente do ramo da saúde poderá se basear em tais princípio, beneficiando o doente para uma morte indolor, estando o paciente ciente e de acordo com a intervenção médica para o procedimento, é o tema central da discussão. Outrossim, os que são contrários a eutanásia temem que, em um país como o Brasil, em que muitas vezes não há um acompanhamento efetivo com relação aos atos do médico, poder-se-ia, facilmente, haver homicídios em maior escala do que atualmente já existe, em nome da eutanásia, mas motivados por interesses econômicos.

Portanto, no caso de ocorrer a legalização da eutanásia ou da ortotanásia, alguns aspectos devem ser levados em consideração, quais sejam: a certeza médica de que o paciente não possui mais capacidade para sobrevivência; a criação de mecanismos com a finalidade de assegurar que a legalização não sirva para beneficiar pessoas que por motivos particulares e injustos queiram obter vantagem sobre a morte do enfermo; e a garantia de que às convicções e crenças de cada indivíduo serão respeitadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ADAMS, Maurice: NYS, Herman, Bioética e Direitos Fundamentais, 1ª ed. Saraiva, São Paulo, 2014, p. 309).

ADORNO, Roberto. Bioética e Direitos Fundamentais, Suicídio Assistido na Suíça, São Paulo. Saraiva, 2014.

Eutanásia: Um direito? 2º Fórum de debates Questões Bioéticas, um diálogo sobre a morte para viver melhor a vida. Brasília, abril, 2000, p.62.

FILHO, Napoleão C. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo Saraiva, 2012 — Coleção Saberes do Direito.

DANTAS, Aldemiro, MALFATTI, Alexandre Davi et al. Lacunas do Ordenamento, Barueri. SP. Manoele, 2006.

DURANT, Guy. A Bioética — natureza, princípio, objetivo. São Paulo. Paulus, 1995.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 14 ed. São Paulo, Saraiva, 2012.

GALVÃO, Antônio Mesquita. BIOÉTICA — A Ética a serviço da vida. Uma abordagem multidisciplinar. Ed. Santuário Aparecida, 1ª ed. Editora Prismas. Curitiba. 2015.

MAGALHÃES, Leslei Lester dos Anjos. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Vida. São Paulo: Saraiva, 2012.

MAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de Bioética e Biodireito, Ed, Atlas. SP, 2009.

REVISTA BIOÉTICA. Vol.24, nº 3. Brasília/DF Conselho Federal de Medicina — CFM, 2016.

ROGERMANN, Edna Raquel, Conflitos Bioéticos, Clonagem Humana, 2ªed. São Paulo, Saraiva 2013.

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