Opinião

roubo de carga em transporte rodoviário em recente decisão do STJ

Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    é advogado sócio fundador de Machado Cremoneze Lima e Gotas Advogados Associados mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos especialista em Direito dos Seguros em Contratos e Danos e em Direito Processual Civil e Arbitragem pela Universidade de Salamanca professor de Direito dos Seguros membro efetivo da Academia Nacional de Seguros e Previdência da Associação Internacional de Direito dos Seguros (Aida-Brasil) do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) da Ius Civile Salmanticense (Espanha) vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp) presidente do Instituto de Direito dos Transportes (IDTBrasil) membro do Clube Internacional de Seguros de Transportes (Cist) autor de livros de Direito dos Transportes e Direitos dos Seguros associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo e laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da profissão.

11 de setembro de 2022, 17h07

Brevíssimas considerações sobre o Na edição 744 do seu Informativo de Jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, destacou decisão no EREsp 1.577.162, de relatoria do ministro Moura Ribeiro, que reconhece o roubo de carga como causa excludente de responsabilidade da transportadora rodoviária.

Segundo o acórdão, "o roubo de carga em transporte rodoviário, mediante uso de arma de fogo, exclui a responsabilidade da transportadora perante a seguradora do proprietário da mercadoria transportada, quando adotadas as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar (…)".

Aparentemente, um golpe fatal aos que, como eu, defendem a ampla e integral responsabilidade do transportador rodoviário mesmo em caso de roubo, já que, sendo fenômeno comum, previsível, há de ser considerado risco do negócio de transporte, portanto fortuito interno, que não rompe o nexo de causalidade.

Digo aparentemente com aparente razão, com o perdão pelo trocadilho. Isso porque a decisão reconhece o roubo como causa excludente da presunção de responsabilidade do transportador, é verdade, porém deixa claro que essa exclusão só aproveitará à transportadora "quando adotadas as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar".

Em outras palavras: se a transportadora não cuidar de observar fielmente o dever geral de cautela, de que trata o artigo 749 do Código Civil [1], não será o roubo considerado causa legal excludente de responsabilidade, mas, antes, de imputação.

Por cautelas a serem adotadas e razoavelmente esperadas entendam-se as que se alinham ao conceito de domínio do estado da técnica (protocolos de segurança). Sabendo de antemão que a carga sob sua custódia pode ser roubada, a transportadora tem que envidar todos os esforços para diminuir ao máximo a probabilidade de evento.

Nesse sentido e naquilo que especialmente se conecta ao universo dos seguros, destaca-se o Plano de Gerenciamento de Riscos, que é espécie de síntese ordenada do estado da técnica, o guia de instruções do dever geral de cautela, o glossário dos protocolos de segurança.

Cada vez mais o Plano de Gerenciamento de Riscos ganha musculatura e seu atendimento há de ser encarado como parte dos deveres objetivos da transportadora, sendo qualquer desvio encarado como falta grave, situação implicadora de responsabilidade.

Pelo teor do fundamento judicial em comento, a possibilidade de se buscar a reparação de dano (pelo dono da carga) ou o ressarcimento em regresso (pelo segurador sub-rogado) não é vedada, muito pelo contrário. O que se exige é a reconfiguração da carga dinâmica da prova e a necessidade de se provar a culpa da transportadora.

Sim, a culpa, figura legal extraordinariamente requisitada ao cenário dos transportes de cargas. Sabemos todos que a responsabilidade civil da transportadora é objetiva, considerando-se sua condição de devedora de obrigação de resultado (contrato de transporte) e protagonista de atividade de risco (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil) [2], de tal modo que à vítima do dano ou ao legítimo interessado não se faz necessário demonstrar nada além de autoria e nexo de causalidade. A responsabilidade da transportadora é presumida legalmente. Competirá à transportadora provar a existência de alguma causa legal excludente.

No caso específico do roubo, porém, é o interessado, vítima do dano, ou quem tiver legitimidade para tanto (como o segurador sub-rogado na busca do ressarcimento) que terá que provar descuido quanto ao dever geral de cautela, falha operacional que, de algum modo, ainda que às avessas, contribuiu para a ocorrência do roubo. Daí se falar em nova inversão do ônus da prova.

Por isso, novamente trazendo estes comentários ao plano do contrato de seguro, a importância de se dar ao atento cumprimento do Plano de Gerenciamento de Riscos o peso de bigorna e o valor de ouro. Sendo o roubo considerado causa excludente de responsabilidade da transportadora, caso fortuito ou força maior, elemento de rompimento do nexo causal, fortuito externo (em vez de interno), é razoável se exigir que nenhum desvio ao rol de protocolos de segurança seja tolerado.

Igualmente importante, portanto, o zelo escrupuloso nos trabalhos de regulação de sinistro, a fim de se identificar, com base na ontologia dos fatos e rigor técnico, eventual falha operacional da transportadora, conduta agravadora de risco, pois serão esses trabalhos a fonte hábil de desfiguração de fortuidade e de imputação de responsabilidade, a forma, talvez única, de se demonstrar que em caso concreto nem todas as cautelas razoavelmente esperadas foram tomadas.

A engenharia reversa aplicada à decisão da Corte Superior é o caminho de salvaguarda dos legítimos interesses regressivos do mercado segurador relativamente ao seguro de transportes e ao tema roubo de carga no modo rodoviário. Tem-se que o entendimento firmado é o de o roubo ser, sim, causa de exclusão de responsabilidade da transportadora, todavia não de maneira absoluta. A fortuidade, segundo os fundamentos da razão de decidir, será deixado de lado quando não adotadas todas as cautelas razoavelmente esperadas.

Mesmo os mais fervorosos defensores da plena responsabilização da transportadora em casos de roubo de carga, sem necessidade de apuração de conduta agravadora ou de desvio do dever geral de cautela, enxerga no acórdão relatado pelo culto ministro Moura Ribeiro (que, aliás, foi indicado em 2020 ao Prêmio Nobel da Paz por sua decisão, quando desembargador em São Paulo, fundada no chamado capitalismo humanista) razoabilidade e simetria na aplicação do Direito e distribuição da Justiça. A busca do ressarcimento em regresso pela seguradora da carga não é inibida, apenas dificultada em razão de um contexto compreensível e que vai muito além das relações contratuais de transportes e de seguros.

Em síntese: a decisão estudada consagra o selo da fortuidade ao roubo de carga, porém não inviabiliza a busca da reparação civil ou do ressarcimento em regresso, dependendo seu exercício das particularidades do caso concreto e da observação ou não, pela transportadora, do dever geral de cautela, que é legal e passível de veraz constatação.

Aplica-se ao assunto o famoso binômio circunstâncias e perspectivas, tão bem tratado no campo filosófico por José Ortega y Gasset e que ouso traduzir desta forma aos campos férteis do Direito dos Seguros e do Direito dos Transportes: a perspectiva de eventual imputação de responsabilidade de transportadora pelo roubo da carga confiada para transporte dependerá das circunstâncias: apuração de desvio de conduta, de eventual contribuição para a ocorrência.

Por fim, cabe dizer que há ainda na decisão um fundamento precioso ao Direito do Seguro e que merecerá, em breve, comentário mais aprofundado, específico, e que neste momento é apenas saudado por pertinência lógica.

Reporto-me ao trecho do acórdão que, a fim de ilustrar o cabimento da fortuidade, afirma expressamente que: "(…) assim como a conduta direta do segurado que agravar o risco da cobertura contratada, por ato culposo ou doloso, acarreta exoneração do dever da seguradora do pagamento da indenização".

A afirmação judicial há de ser gravada com letras de fogo no mais valioso mármore, porque preciosa e digna de aplausos. Mais do que ao seguro de transporte, dado o contexto em que feita, cabe ao Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Carga (RCTR-C), que é obrigatório, e, mesmo, ao Seguro de Responsabilidade Civil Facultativa  Desvio de Carga (RCF-DC), nos quais o segurado é a transportadora.

Pelo entendimento firmado, quase com cores de Precedente, a transportadora rodoviária que descuidar de forma irrazoável dos seus deveres e agir temerariamente, agravando o risco e /ou a probabilidade de evento, perderá o direito de recebimento da indenização (à base de reembolso) e nada poderá cobrar do segurador.

O contrato de seguro é um negócio muito sério, revestido de inegável função social e de interesses poliédricos. Não pode de modo algum ser tratado com menoscabo por quem quer que seja. O segurado tem que preservar sua saúde e entender que a proteção securitária não é um salvo conduto para condutas que ofendam o bom-senso e tudo o que se tem por razoável.

A transportadora que despreza o dever geral de cautela, que não se guia pelas normas da Lex Artis de sua atividade, que atenta contra os protocolos de segurança e o Plano de Gerenciamento de Risco e, com tudo isso, dilata deliberadamente as chances de roubo da carga sob sua posse direta, perderá, na condição de segurada, a indenização que lhe caberia se houvesse atuado com bom-senso. Protege-se, assim, os legítimos interesses e direitos do colégio de segurados, o princípio do mutualismo, a boa-fé objetiva e a saúde do negócio de seguro, algo que a todos interessa.

 


[1] Artigo 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto.

[2] Artigo 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Autores

  • é advogado, sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito dos Seguros, em Contratos e Danos e em Direito Processual Civil e Arbitragem pela Universidade de Salamanca, professor de Direito dos Seguros, membro efetivo da Academia Nacional de Seguros e Previdência, da Associação Internacional de Direito dos Seguros (Aida-Brasil), do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), da Ius Civile Salmanticense (Espanha), vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), presidente do Instituto de Direito dos Transportes (IDTBrasil), membro do Clube Internacional de Seguros de Transportes (Cist), autor de livros de Direito dos Transportes e Direitos dos Seguros, associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo e laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da profissão.

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