Observatório Constitucional

As mulheres devem ser livres? Igualmente livres? — STF e o julgamento da ADPF 442

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10 de setembro de 2022, 8h00

Una mañana , usted se despierta y se encuentra en el lecho, espalda contra espalda, con un violinista inconsciente, un famoso violinista en estado de coma. Se le ha encontrado una enfermedad renal fatal, y la Asociación de Amigos de la Música, habiendo examinado todos los registros médicos disponibles, ha averiguado que sólo usted tiene el grupo sanguíneo apropiado para ayudarle. En consecuencia, le han secuestrado y, la noche anterior, han acoplado el sistema circulatorio del violinista al suyo, de manera que los riñones de usted puedan utilizarse simultáneamente para extraer las toxinas de la sangre del violinista y de la suya. El director del hospital le dice entonces:

– Mire usted, lamentamos que la Asociación de Amigos de la Música le haya hecho esto. De haberlo sabido, no lo habríamos permitido; sin embargo, lo ha hecho, y el violinista está ahora acoplado a usted. Para librarse de él, tendría que matarlo pero no se preocupe, es sólo cuestión de nueve meses. Para entonces, se habrá restablecido de su enfermedad y podrá, sin riesgo, ser separado de usted [1].

 

O trecho acima demonstra uma situação hipotética que pode parecer absurda e que nos faz questionar se o corpo do homem pode ser instrumental para a vida de outro ou se deve ser um fim em si mesmo. Certamente, não aceitaríamos tal solução de termos nosso corpo como instrumento à vida de outro. Entretanto, quando tratamos do tema do aborto, a discussão não se coloca com a mesma racionalidade. Argumentos religiosos e morais prevalecem e defendem que o corpo da mulher deve ser instrumental à vida de outro ser humano, que seu corpo e sua vida não são um fim em si mesmo.

Argumentos religiosos ainda trazem uma ideia de que o sofrimento é algo divino e que, portanto, sofrer pode dar a mulheres espaço no paraíso. Mulheres devem ser instrumentais para formação da família e para o objetivo da procriação e maternidade. Tais argumentos ainda parecem mais presentes num momento em que o neoconservadorismo aparece com toda força no Brasil, buscando a dominação masculina no casamento e num movimento antifeminista, já que para este grupo, o feminismo "teria colocado as mulheres contra a reprodução, seu dever e chamado natural" [2].

Esta é a arena política neoconservadora no Brasil, não há espaço para direitos de igualdade e liberdade das mulheres, que dirá direitos sexuais e reprodutivos. Mulheres representam apenas 15% das cadeiras no Congresso Nacional e temos ainda uma Bancada Evangélica e uma Frente Parlamentar Evangélica, que se articulam contra temas de igualdade de gênero, aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e outros.

Neste contexto, o Judiciário e as Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais ao redor do mundo, têm funcionado como um locus democrático de afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como decorrência da proteção de seus direitos à igualdade e à liberdade.

É importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, para além de julgar a não recepção do artigo do Código Penal que criminaliza o aborto, também deve ter responsabilidade para fixar parâmetros abstratos que sirvam de precedentes para os casos subsequentes que envolvam questões relacionadas à desigualdade de gênero. Embora não veja a possibilidade de ser inserido em pauta de julgamento neste cenário em que a corte está sob ataque de neoconservadores que se aliam a um movimento autoritário anti Instituições.

De qualquer modo, propõe-se uma interpretação do caso a partir do constitucionalismo feminista, que chama a atenção para a desigualdade de gênero existente no direito constitucional, sempre estudado e aplicado como supostamente neutro.

O direito constitucional é fundacional e fundamental para a maior parte dos sistemas legais do mundo contemporâneo, o que, por sua vez, implica que é pelas constituições que se desenham compromissos fundamentais que dizem respeito à cidadania, direitos e deveres. Nesta literatura sobre os problemas e as justificativas de uma revisão judicial vinculativa em uma democracia, pode-se esperar que o problema relativamente óbvio e único das mulheres desempenhe pelo menos um papel significativo.

As mulheres foram excluídas do judiciário durante a maior parte da nossa história e o judiciário opera dentro de um sistema de precedentes. É necessário mudar o filtro da interpretação para que novos precedentes com maior proteção e promoção da igualdade das mulheres sirvam também de transformação de sua proteção. A mobilização legal dos movimentos de mulheres inclui as ações no âmbito da Suprema Corte e judicialização e o enquadramento de suas demandas através de marcos discursivos que incorporam e interpretam conceitos legais [3] e a jurisprudência das cortes constitucionais tem um papel fundamental na interpretação de direitos com a finalidade de garantir a igualdade de gênero material.

Assim, pretende-se apresentar o método interpretativo proposto pela professora Katharine Bartlett [4], "the woman question", para verificar e expor o impacto das normas jurídicas sobre as mulheres, que busca identificar as implicações de gênero nas normas e práticas jurídicas que podem parecer neutras ou objetivas. E pode ser utilizado no caso do aborto. Para ela, esta possibilidade pode trazer alternativas interpretativas que promovem uma alocação mais justa e equânime dos resultados sociais.

"The woman question” busca verificar os impactos das normas sobre as mulheres apresentando as seguintes questões: “Have women been left out of consideration? If so, in what way, how might that omission be corrected? What difference would it make to do so?" [5].

O método busca de alguma maneira explorar se há proporcionalidade e, portanto, igualdade no tratamento e na elaboração de uma lei e seus impactos na vida da mulher. Se a lei só tem impactos de restrição sobre a vida, a liberdade e o corpo da mulher, não é possível pensar em neutralidade ou imparcialidade.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, perguntar "the woman question" é perguntar e examinar como a criminalização do aborto traz standards normativos em desvantagem para mulheres. A pergunta assume que as leis, especialmente aquelas elaboradas no início e meados do século passado não só podem não ser neutras, mas também impactar de forma desvantajosa para as mulheres e serem "machistas" num sentido específico. A proposta da pergunta "the woman question", quando dos julgamentos, pode ajudar a expor esta disparidade e desproporcionalidade no impacto da norma punitiva sobre a vida e sobre o corpo das mulheres, sugerindo a correção do direito pela declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte.

É preciso enfrentar se o tema afeta só mulheres, se afeta apenas mulheres grávidas, se este impacto prejudica as mulheres. Se há impacto maior sobre mulheres pobres e sobre mulheres negras. Para além disso, é necessário perguntar se o Estado atua de forma proporcional para evitar a interrupção da gravidez com incentivos econômicos e sociais para as mulheres.

O Estado mantém políticas de assistência social específica para mães de baixa renda? O Estado mantém políticas de estabilidade no emprego para mulheres gestantes? E para mulheres gestantes que vivem em subempregos no mercado informal de trabalho, de que modo o Estado protege? Às mulheres executivas é garantido promoções na carreira? Há uma preocupação de gênero em promover mulheres mães nas corporações? Optar pela continuidade da gestação e maternidade impacta no desenvolvimento das mulheres? Impacta negativamente em seu desenvolvimento profissional? Mulheres pesquisadoras têm incentivos e equiparação justa para equiparar a maternidade? Quais as políticas de inclusão e equiparação são feitas pelos governos? Homens que optam por não levar a gravidez adiante tem algum tipo de punição? São estas as questões que devemos por para devidamente enfrentar o tema do aborto.

Do mesmo modo, Reva Siegel [6], ao estudar as políticas restritivas em relação ao aborto dos estados americanos, propões expandir o quadro e analisar as restrições de aborto num contexto político mais amplo para saber se há integridade e proporcionalidades nas políticas de criminalização ou restrição do aborto e se de fato o Estado tem preocupação em ajudar as mulheres para evitar gravidez indesejada e se dão apoio a mulheres grávidas que querem criar seus bebês.

Outras perguntas que poderiam ser feitos de acordo com Siegel [7], quando estuda a diferença de políticas pro vida nos estados americanos: "O interesse do Estado em proteger a nova vida é consistente em todos os contextos ou seletivo? Os estados-membros protegem a vida de forma a aumentar ou restringir a autonomia das mulheres? Os estados que restringem o aborto também apoiam novas mães e uma nova vida? As escolas ensinam educação sexual? Os estados que restringem o aborto ajudam as mulheres que querem ser mães a manter a gravidez?".

Para a autora, 49 % (quarenta e nove por cento) das mulheres ou mais citam razões financeiras para interromper a gravidez, porque 49% estão abaixo do nível da pobreza e 75% são pobres ou de baixa renda. Não se pode debater as políticas de restrições do aborto se não há políticas para prover recursos, atendimento à saúde ou proteção de emprego para mulheres [8]

Fazer a pergunta "the woman question" pode ser um método inicial para os debates sobre interpretação constitucional a respeito do aborto e nos resultados desproporcionais que sua criminalização causa às mulheres. As perguntas acima podem demonstrar com maior transparência se há de fato uma preocupação na proteção da vida do feto para o momento posterior ao seu nascimento e se há políticas para acolhimento das mulheres que desejam levar sua gravidez adiante. Se a lei impacta apenas sobre as mulheres e é a única política desproporcional existente para restringir suas liberdades e tratá-la de maneira desproporcional, então deve a Corte apontar a sua inconstitucionalidade porque não atende parâmetros de igualdade material preconizados na Constituição Federal.

 


[1] Thomson, James. Defensa del aborto. In: DWORKIN, Ronald. La Filosofía del Derecho. México: FCE, 2014, p.245-246.

[2] Lacerda, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019, p. 40.

[5] Ibidem.

[7] Ibid, ibidem.

[8] Ibid, p. 12.

Autores

  • é professora de Direito Constitucional e Teoria do Estado dos programas de graduação e pós-graduação stricto sensu da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e do mestrado em Direito do Centro Universitário Internacional (Uninter Curitiba), codiretora do Icon-S Brasil e vice-presidente da Aibdac (Associação Ítalo-Brasileira de Professores de Direito Administrativo e Constitucional).

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