Trabalho Contemporâneo

A arte de voltar atrás, lições para o Direito do Trabalho

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6 de setembro de 2022, 8h00

Em Cristianismo Puro e Simples, obra magistral de C.S Lewis, encontramos a seguinte reflexão: "Se você estiver no caminho errado, o progresso significará dar meia-volta e retornar ao caminho certo; e, nesse caso, a pessoa que voltar atrás mais rápido será também a mais progressista".

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Recentes acontecimentos na área trabalhista demonstram que há tempos precisamos repensar modelos, reconhecer erros e sair do caminho que pegamos para chegarmos aonde efetivamente desejamos: a real proteção do trabalhador humano.

O primeiro fato é a decisão proferida pelo ministro Luis Roberto Barroso, do STF, na ação cautelar que discute a constitucionalidade do piso dos enfermeiros. Para quem não conhece a questão, a Lei 14.434 de 2022, alterando a Lei 7.498/86, fixou para os enfermeiros piso salarial nacional de R$ 4.750.

Em decisão de natureza cautelar foi deferido o pleito de suspensão da aplicação da mencionada lei até que sejam esclarecidos os impactos sobre: a situação financeira de estados e municípios; a empregabilidade; e a qualidade dos serviços de saúde.

Ninguém é contra aumento de salários, mas o caso remete à antiga discussão que nossa área teima em não levar a sério: soluções por intervenção estatal, por qualquer Poder, são piores que as construídas pelos próprios atores sociais.

Por melhores que sejam as intenções, os agentes do Estado, incluindo magistrados, que não vivenciam os reais problemas dos destinatários de seus atos, possuem capacidade limitada de compreensão de todo o fenômeno de que pretendem cuidar. Um aumento abrupto de salário pode, ao revés do desejado, levar a demissões em massa, fechamento de estabelecimentos, perda de leitos para atendimento à população e por aí vai…

Salário é um tema, portanto, que deve ser ajustado diretamente pelos atores, empregadores e empregados, via negociação coletiva, que faz uma autocalibragem entre interesses e possibilidades, velando o Estado apenas pela lisura do processo. Em outras palavras, o negociado sobre o legislado, com a intervenção mínima do Poder Judiciário. Tal como concretizado pela reforma trabalhista.

Em segundo lugar, chama a atenção o atual fenômeno de aumento do número de demissões pela chamada "geração Z". Conforme reportagem publicada pela revista Exame, os principais motivos para tal conduta seriam "chefes indiferentes, expectativas insustentáveis e nenhuma oportunidade de crescimento".

Por outro lado, "a geração Z é caracterizada pelo otimismo, o imediatismo, a capacidade de serem multitarefas e a preocupação em buscar a satisfação no trabalho, fazendo o que se gosta e encarando os desafios como etapa inerente ao sucesso", não havendo maior preocupação em se buscar estabilidade, tudo conforme a citada matéria.

Para quem, como eu, estuda Direito do Trabalho há mais de 30 anos, o mínimo que se espera é uma sensação de estranhamento.  Aprendemos, e ensinamos, que o princípio da proteção, norteador de nosso ramo, se desdobra, entre outros, no princípio da continuidade da relação de emprego, principal responsável pela formação do contrato de trabalho por prazo indeterminado.

Nossa crença teve por base valores de outra época, onde a estabilidade, o crescimento lento e gradativo, a previsibilidade de futuro até a sonhada aposentadoria, quando finalmente diversos prazeres disponíveis ao ser humano poderiam ser usufruídos com mérito, forjaram a ideia de um Direito do Trabalho inflexível, estatal, garantidor e, portanto, de subordinação do mais fraco ao mais forte.

Sim, incomoda essa constatação, mas a percepção de direitos trabalhistas, como pensado na atual legislação — ao menos até a Reforma Trabalhista — determina a existência de um binômio que produz a eterna submissão do trabalhador: dependente-garantidor.

De um lado, a figura do hipossuficiente, que necessita da relação jurídica do trabalho para sobreviver dignamente. De outro, o empregador que teria por missão garantir a vida digna ao mais fraco. E, quando o empregador não cumpre seu papel, surge outra figura para garantir à força tal objetivo: o Estado.

O Poder Executivo com sua ação repressora, o legislativo com a intervenção no que deveria ser livremente negociado, o Judiciário com a imposição dos direitos como bem compreendidos por cada magistrado.

No fundo, os empregados, sob a batuta do Direito do Trabalho tradicional, vivem um torpor onde o simples fato de ostentar esta condição já lhes garante a posição favorável de obtenção de direitos, sem necessariamente a contrapartida da percepção dos deveres.

A geração Z, talvez, esteja escancarando o pecado original da área trabalhista, onde antes de se realizar ou conquistar qualquer coisa, já se pensa na premiação.  Se não der certo, frustrada a expectativa, sem problemas, basta desistir e ficar sem emprego (provavelmente aí exista a figura de um terceiro garantidor: os pais).

A lição positiva é que existe um descompasso entre os anseios das novas gerações e a cultura trabalhista de proteção à exaustão, sem deixar espaço para o surgimento de novas formas de trabalhar sob novos paradigmas que possam atender aos novos anseios.

Talvez o melhor exemplo seja a guerra judicial sobre vínculo de motoristas da empresa Uber, uma verdadeira tentativa de imposição do passado.

Nada melhor, portanto, que reconhecermos que o antigo caminho dificilmente irá nos levar para o objetivo desejado. O progressismo que precisamos, portanto, é voltar atrás e buscar melhores soluções, um desvio para o rumo adequado.

Em novembro, completaremos cinco anos da reforma trabalhista, um diploma legal que identificou diversos gargalos e procurou, na medida do possível, alterar a estrutura do Direito e do Processo do Trabalho.

Responsabilização dos atores trabalhistas, combate ao ativismo judicial, prevalência do negociado sobre o legislado, busca da liberdade sindical a partir do fim da contribuição sindical compulsória, teletrabalho, acordo extrajudicial homologado pela Justiça do Trabalho, arbitragem, entre outras tantas modificações, revelaram que o caminho antigo não mais deveria ser trilhado, abrindo uma nova trilha que devemos percorrer.

Precisamos voltar atrás, acertar o ponto de interseção e criar uma nova fórmula para que o trabalhador humano continue sendo protegido de forma adequada a partir da assunção de uma autonomia substancial, produzindo a liberdade tão desejada por todos nós.

Do contrário, estaremos fadados a acelerar rumo ao nosso fim, ao sabor da intervenção estatal segundo o agente público do momento, sem podermos cogitar outro destino que não o abismo da restrição de nossas liberdades.

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