Opinião

Caso da boate Kiss e a quimérica tentativa de dolo eventual

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5 de setembro de 2022, 17h04

"Quão desejável é à ordem social aquele acordo em que o réu, no ato de sofrer a pena, diz a si mesmo: eu a mereci, e o público espectador declara que ela é justa!" (Romagnosi) [1]

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O Direito Penal tem a função de limitar o poder punitivo do Estado. No Código Penal são estabelecidos, então, conceitos construídos lenta e cuidadosamente para que o cidadão tenha suas liberdades públicas asseguradas contra o terrível poder de punir do Estado. Dolo, culpa, tentativa, crime impossível, erro de tipo, erro de proibição etc., todos esses conceitos dogmáticos não existem apenas porque, para o concurseiro, eles podem "cair na prova". "O direito", pondera Bettiol, "não é feito para as abstratas meditações de poucos estudiosos" [2]. Na dinâmica da vida real, praticamos condutas às vezes culposas, às vezes dolosas, e, quando isso ocorre, temos o direito de ser acusados por agentes públicos responsáveis, que manejam o Direito Penal com seriedade e brio profissional. Não se pode, assim, brincar, com capricho e autoritarismo, com os conceitos de dolo eventual ou culpa, em cuja diferença reside a garantia do cidadão quando tiver de se defrontar com a acusação penal do Estado.

No caso da boate Kiss, vimos o Ministério Público deixando de lado a ética profissional e a seriedade do Direito Penal como método de contenção do poder do Estado para cometer o que, para mim, é um abuso do poder de acusar. Um trágico incêndio, do qual os acusados foram tão vítimas quanto as desditosas famílias que perderam entes queridos, foi transformado num show de horrores jurídico. Os conceitos de dolo eventual e culpa, tentativa, tudo isso foi distorcido, pra não dizer completamente ignorado, para que, no seu lugar, as vaidades e desejos de autopromoção de certos acusadores pudessem prevalecer.

Tudo começa na denúncia. Vejamos trechos dela [3]:

"No dia 27 de janeiro de 2013, por volta das 03h15min, na Rua dos Andradas, nº 1.925, Bairro Centro, em Santa Maria, nas dependências da boate Kiss, os denunciados ELISSANDRO, MAURO, MARCELO e LUCIANO AUGUSTO, em conjunção de esforços e com ânimos convergentes, mataram as pessoas nominadas no ANEXO I (…).
Nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução descritas acima, os denunciados ELISSANDRO, MAURO, MARCELO e LUCIANO AUGUSTO deram início ao ato de matar as vítimas relacionadas no ANEXO I (nos 242 a 877, no mínimo), o que não se consumou por circunstâncias alheias aos atos voluntários que praticaram, pois as vítimas sobreviventes conseguiram sair ou foram retiradas com vida da boate, sendo submetidas, outras tantas, a tratamento médico eficaz." (negrito no original)

As expressões "em conjunção de esforços" e "com ânimos convergentes" devem ser enfatizadas. É impressionante a frequência com que vemos, em denúncias, o uso automático dessas expressões de alto alcance retórico, com alto impacto sonoro, mas que pouco dizem quando confrontadas com a realidade dos fatos. "Conjunção de esforços", quando um dos acusados (Mauro) sequer estava na boate no fatídico dia; "com ânimos convergentes", quando os acusados sequer sabiam que aconteceria ali, numa noite de diversão e felicidade, uma das maiores tragédias da história brasileiro. Essas expressões vazias são adrede utilizadas com o objetivo de esconder do público a completa ausência da realidade que elas pretendem exprimir, e isso é muito bem explicado por Le Bon em sua boa obra Psicologia das Multidões [4], para a qual eu remeto o leitor. No entanto, o verdadeiro absurdo é o trecho que segue:

"3) CAPITULAÇÃO LEGAL: Assim agindo, os denunciados incorreram: a) ELISSANDRO CALLEGARO SPOHR, MAURO LONDERO HOFFMANN, MARCELO DE JESUS DOS SANTOS e LUCIANO AUGUSTO BONILHA LEÃO 241 vezes nas sanções do art. 121, § 2º, incs. I e III, e no mínimo 636 vezes (nº de sobreviventes identificados) nas sanções do art. 121, § 2º, incs. I e III, na forma dos arts. 14, inc. II, 29, caput, e 70, primeira parte, todos do Código Penal (…)." (itálico nosso)

Como se vê, a denúncia imputa uma tentativa de homicídio com relação aos sobreviventes…a título de dolo eventual. Como não poderia — pois o absurdo ficaria escancarado — imputar o resultado morte a título de dolo direto, pois estaria a dizer que os quatro réus saíram de casa aquela noite com a intenção de matar todas as vítimas da triste tragédia, valeu-se o Ministério Público do dolo eventual, para dizer que os réus assumiram o risco de matar todas as pessoas que morreram…e aquelas que sobreviveram. O dolo eventual pelas mortes consumadas não é um absurdo, embora mesmo essa imputação, nas circunstâncias, seja extremamente questionável [5]. No entanto, não é isso que está em estudo aqui. A aberração jurídica, que causa vergonha a quem quer que se debruce seriamente sobre a dogmática penal, é imputar aos réus o ter tentado matar os sobreviventes com esse dolo eventual.

Sabe-se que o dolo eventual é, ao lado do dolo alternativo, uma espécie de dolo indeterminado, vale dizer, o agente não tem como objetivo algo específico e determinado. E é só por esse fato que se torna impossível aceitar a tese da tentativa de dolo eventual: é uma verdadeira contradictio in terminis. Costuma-se dizer que não existe dolo de tentativa: o dolo da tentativa é o dolo do crime consumado. A tentativa consiste precisamente em não atingir o resultado preciso que se buscava, vale dizer, na tentativa o dolo é determinado a buscar um resultado. Por outras palavras, ninguém pratica uma tentativa de homicídio porque o objetivo era tentar matar a pessoa: o objetivo era matar a pessoa, mas o agente justamente fica na tentativa porque não conseguiu por circunstâncias alheias à vontade dele. Por isso a incompatibilidade da tentativa com o dolo eventual: ou o agente quis um resultado determinado (matar) mas que ficou objetivamente aquém do seu querer, e aí os fatos objetivos (lesões) são imputados a ele a título de tentativa de homicídio; ou ele agiu como dolo indeterminado (eventual ou alternativo) e aí ele responde pelos fatos que consumou (lesões consumadas, exposição a perigo de vida etc.). MALATESTA [6] expõe com clareza a incompatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual:

"Mas quando se trata de tentativa, o fato criminoso não existe, ou pelo menos não existe o facto criminoso correspondente ao maior fim criminoso que se imputa; a imputação radica-se totalmente no elemento moral, isto é, na intenção, que, para ser imputável, deve conseguintemente ser bem determinada. É a vontade excedente à ação, que se imputa na tentativa; e esta vontade, para ser imputada, deve dirigir-se explicitamente ao crime que se pretende imputar em razão da tentativa. Conseguintemente, se o dolo é indeterminado, não há mais que se falar em tentativa; existirá uma ação não imputável, ou uma ação imputável pelo que é, e não pelo que podia ser; pelo que produziu, e não pelo que podia ter produzido." (itálico no original)

A indeterminabilidade do dolo, pois, impede a imputação à título de tentativa: esta consiste precisamente em ficar aquém do fim determinado. Imagine que uma pessoa, depois de um longo dia de trabalho, está presa no trânsito porque manifestantes estão na rua e não o deixam passar. O motorista então, depois de ter perdido a paciência, acelera o carro e atropela os manifestantes para poder ir embora. Numa situação como esta, que certamente produzirá lesões nas vítimas, para se imputar uma tentativa de homicídio não satisfaz apenas a demonstração das lesões e dizer que ele agiu "com tentativa de dolo eventual". Aquele que pretenda imputar as lesões à título de tentativa de homicídio deve demonstrar que elas — as lesões — não são apenas resultado culposo de um fim lícito (querer chegar em casa), mas que as lesões foram efeitos de um fim ilícito que o acusado não obteve (querer matar os manifestantes). Deve, em suma, determinar esse dolo. Como explica CARRARA [7], a imputação da tentativa exige que se demonstre que o acusado queria precisamente o fato que não obteve, e não aquele que obteve:

"Devemos estar bem seguros de que o agente não apenas podia prever, ou vagamente prever o efeito, mas devemos estar seguros de que ele queria exatamente obter esse efeito não obtido, e não o efeito que obteve. Por exemplo, deve-se ter a certeza de que ele queria matar, e não apenas ferir, quando de fato fere e não mata. Essa vontade explícita firmemente voltada para alcançar um fim determinado não pode ser substituída por uma vaga previsão, uma incerteza sob a qual oscila a vontade do agente acerca do efeito que sua conduta produzirá: não basta, em uma palavra, a situação de dolo indeterminado. Se ele desferiu seus golpes indeterminadamente, como que ao acaso, incerto se teria ferido ou matado, ele é responsável apenas pelo resultado que produziu. E se este foi um ferimento, não pode ser debitado a ele a título de tentativa de homicídio, porque para ter esse título de que a vontade prevalece sobre o efeito, torna-se necessário que a vontade seja positivamente contrário e exuberante ao efeito obtido." (tradução livre)

Assim, no exemplo dado, o motorista poderia responder por dolo eventual mas apenas pelas lesões corporais consumadas ou até mesmo o homicídio consumado, se se provar a sua indiferença com relação a estas lesões ou com o resultado morte, ou a mera culpa, conforme o caso.

O que a denúncia do caso da Boate Kiss diz expressamente é que os réus, em conjunção de esforços e com ânimos convergentes, tinham como objetivo preciso naquela noite matar as 636 pessoas que sobreviveram. É isso que significa a tentativa. Mas como seria um absurdo imputar o dolo direto — já que seria dizer abertamente que eles todos (inclusive o réu Mauro que não estava lá…) tinham a intenção de tirar a vida de todos aqueles que sobreviveram, incluído aí os réus e a esposa grávida de um deles —, recorreram os subscritores da denúncia a esse subterfúgio de trocá-lo pelo eventual, para dizer que eles assumiram o risco de matar as pessoas. Ou seja, eles tentaram assumir o risco de matar as 636 pessoas — e a si próprios — mas o fato não se consumou por circunstâncias alheias…à vontade de assumir o risco. Olha o absurdo que se produz com essa sanha de punir e o desejo de usar o processo penal — e a tragédia alheia — como meio de promoção pessoal.

A função de acusar é uma função nobre, uma função que exige técnica, prudência, ponderação, senso de justiça, e, também, respeito para com a lei, no caso, o Código Penal. Infelizmente, é com frequência que vemos aparecer aqui e ali certos Fouquier-Tinvilles da vida que se valem dessa augusta função de justiça para fins pessoais nada nobres e para a satisfação de sentimentos de vingança. É triste que o Ministério Público não perceba que, assim agindo, apequena essa fundamental instituição do Estado de Direito.

Mas, a rigor, não é esse o fator preocupante do nosso sistema de administração da Justiça. Como gosta de insistir meu sábio pai, que honrou a magistratura por 19 anos, o verdadeiro problema não é a falta de brio daqueles que oferecem esse tipo de denúncia: é a falta de brio profissional e, acima de tudo, de coragem, daqueles que a recebem. Se essas injustiças cometidas por acusadores vedetes e descompromissados com o bom Direitos ocorrem com frequência, é porque existem juízes servis a essa horda de pseudoacusadores e que não vêm cumprindo a promessa, feita quando foram investidos na judicatura, de defender a Constituição, as leis e o devido processo.


[1] "Quanto è desiderabile all'ordine sociale quell'accordo, in cui il reo nell'atto di subire la pena dice a se stesso: io me la sono meritata, e lo spettatore pronunzia ch'ella è giusta!" (ROMAGNOSI, Gian Domenico. Genesi del diritto penale, Settima Edizione, Prato: Tipogragia Guasti, 1837, p. 11)

[2] BETTIOL, Giuseppe. Instituições de Direito e Processo Penal, Trad. Amilcare Carletti, São Paulo: Editora Pillares, 2008, p. 119.

[4] "O poder das palavras está ligado às imagens que evocam e é completamente independente de seu significado real. Aquelas cujo sentido está mais mal definido possuem às vezes maior eficácia. (…). Elas evocam nas almas imagens grandiosas e vagas, mas a própria vaguidão que as torna imprecisas aumenta seu misterioso poder." (LE BON, Gustave. Psicologia das multidões, Trad. Mariana Sérvulo da Cunha, São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 98) (sem itálico no original)

[5] Até mesmo a imputação a título de culpa, que é toda fundamentada na previsibilidade, seria bem duvidosa. Como lembra SANTORO, é muito fácil dizer que um fato era previsível…julgando-o depois de consumado, já que, fazendo esse juízo ex post, o coeficiente de "fortuidade" do elemento causal desaparece: "È, infatti, possibile che lo stesso svolgimento del fatto riveli ex post elementi causali che ex ante non si potevano conoscere." (SANTORO, Arturo. Il caso fortuito nel diritto penale, Milano: Giuffrè Editore, 1937, p. 52)

[6] MALATESTA. A lógica das provas em matéria criminal, Trad. J. Alves de Sá, Livraria Teixeira, São Paulo, 2ª Edição, p. 178

[7] CARRARA, Francesco. Programma del corso del Diritto Criminale, Vol. I, Quinta Edizione, Lucca, Tipografia Giusti, 1877, p. 216.

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