Processo Familiar

A queda de Granada e as 'pautas' atuais do Direito de Família

Autor

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

4 de setembro de 2022, 8h00

Os mouros invadiram a península Ibérica, vindo do norte da África, cruzando o estreito de Gibraltar (onde existiam as mitológicas Colunas de Melkart) no século 8 d.C, mais especificamente em 711.

Spacca

O reino Visigodo não tinha condições de resistir e o resultado da fraqueza militar foi uma ocupação longa e bem estruturada do solo europeu por quase 800 anos. Os reinos cristãos de Astúrias, Leão, Castela, Navarra e Aragão passaram a ocupar a parte norte e oeste da península e ficaram espacialmente limitados, verdadeiramente "espremidos" por Portugal, a leste, (a partir de 1139, com a independência do antigo Condado Portucalense), pelo Reino de Granada (islâmico) ao sul e pelo Mediterrâneo e Cantábrico (oeste e norte).

A Reconquista resulta de uma soma de forças entre os diversos reinos cristãos e tem seu apogeu quando Isabel, a rainha de Castela, se casa com Fernando, o rei de Aragão e assim se unem as coroas e a Espanha cristã está finalmente forte o suficiente para derrotar o sultão Boabdil (Mohamed 12) e expulsar os mouros da península em 1492.

A representação da tomada do Alhambra por Isabel e Fernando está magnificamente representada nos bancos de madeira que compõe o coro da catedral de Toledo. Isabel, rainha de Castela, a cavalo recebe as chaves do sultão derrotado. Fernando está um pouco atrás dela, em clara alusão ao fato de Castela (e Isabel) ter sido mais relevante à vitória que Aragão (Fernando).

Segundo a lenda, a mãe de Boabdil ao vê-lo chorar teria dito: "Não chores como uma criança por aquilo que não soube defender como um homem".

E Espanha estava unida após quase 800 anos e os reis católicos (título que recebem em 1494 do papa Alexandre 6º por conta da Reconquista) tinha a frente o desafio da governação, tão ou mais relevante que o da Conquista. Cabia aos Monarcas "pensar" o reino, e não mais lutar contra alguém.

É exatamente a história do Direito de Família no Brasil. Quando nos anos de 1960 pessoas como Nelson Carneiro iniciaram suas lutas, o Brasil tinha um direito de família do século 19 com pilares assentes em premissas historicamente consolidadas. Era um Direito de Família baseado na hierarquia e na desigualdade.

Hierarquia masculina por força da chefia da sociedade conjugal competir ao marido; desigualdade porque efetivamente mulheres eram submissas aos homens, porque os filhos havidos fora do casamento (ilegítimos) não eram filhos ou eram menos que os legítimos, as relações nascidas do que hoje é união estável não eram consideradas fonte de família e, portanto, eram relegadas ao esquecimento.

Coube a Nelson Carneiro, Zeno Veloso, Giselda Hironaka e tantos outros membros do IBDFam corrigir as injustiças históricas e à Constituição de 1988 a coroação dos valores da igualdade e da democracia familiar.

Não se fala mais em "chefia", é inconstitucional a diferenciação entre homens e mulheres nas questões familiares (conjugalidade e parentalidade), os filhos são iguais independentemente de sua origem, sendo proibida qualquer discriminação.

A Emenda 66/10 ao alterar o artigo 226, §6º da CF aboliu a culpa do direito de família e libertou de peias o paradigma da responsabilidade. Foi o fim da separação judicial, do vetusto e trágico debate de culpa quando do fim da conjugalidade.

Em um segundo momento, STF e STJ deram à Constituição uma leitura inclusiva pela qual as famílias homoafetivas, quer oriundas do casamento, quer oriundas da união estável, tivessem a proteção legal e sua completa equiparação às famílias heteroafetivas.

No campo da filiação, vence a bandeira do Afeto quando o texto de João Baptista Villela, "Da desbiologização da paternidade" passa a ser decisão do STF e com repercussão gral, (Tema 622): "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". Da doutrina para a jurisprudência e com repercussão geral.

Sim, Granada foi conquistada, os mouros expulsos e a Espanha toda cristã. Conquistamos no direito de família a igualdade, o fim da hierarquia, o afeto como valor jurídico.

E o que cabe então à DOUTRINA? Escrever sobre esses temas para dar densidade, concretude, delimitação de efeitos jurídicos.

Contudo, tristemente, nem todos os doutrinadores se aperceberam de sua nova função. Envelheceram e não compreenderam que o Alhambra já foi conquistado e que é hora de administrar o novo direito, contribuindo para a vida do cidadão comum.

Duas questões denotam a falta de compreensão de que a fase da Reconquista acabou e que o direito de família da atualidade tem um "reino" a administrar.

A primeira questão é uma insistência contra legem da admissão da bigamia no Brasil[1]. Isso porque os antigos conquistadores, sem mouros à frente, insistem que no Brasil todo e qualquer modelo "jurídico" familiar deve ser admitido porque a Constituição não traz qualquer peia à formação da família. Isso é um erro. Simples assim.

O limite está no Código Civil: o incesto e a poligamia são proibidos (art. 1521 do CC). O limite legal foi confirmado pelo STF em 2020. Afirmou o ministro Alexandre de Moraes: "Ao reconhecer a validade jurídico constitucional do casamento civil ou da união estável por pessoas do mesmo sexo, não chancelou a possibilidade da bigamia, mas sim conferiu a plena igualdade".

E mais: "Pode-se afirmar que uma das turmas do Supremo Tribunal Federal concluiu pela impossibilidade de reconhecimento de união estável em que um dos conviventes estivesse paralelamente envolvido em casamento ainda válido, sendo aquela relação, portanto, enquadrada no artigo 1.727 do Código Civil, que se reporta à figura da relação concubinária (as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato)".

Assim, a questão das "famílias paralelas" ou poligâmicas, não é uma questão de preconceitos, de negacionismo, ou de ordem moral. Não; há limitação expressa pelo texto do Código Civil. Mude-se a lei, revogue-se o artigo 1521 do Código Civil para então se admitir as famílias incestuosas e poligâmicas.

Repito. Mude-se a lei. O Estado pode proibir desejos? Não, mas pode proibir suas exteriorizações A lei penal o faz nos crimes tentados. Desejos ficam no campo da psicanálise. O Direito sempre foi a ciência do "não".

Nem tudo que existe de fato tem sua existência jurídica reconhecida. Existem no Brasil "famílias" incestuosas, muitas vezes decorrentes de violência à criança e ao adolescente, e o direito se nega a reconhecer a essas realidades o estatuto de famílias, mesmo quando se trata do desejo de pessoas maiores e capazes.

Com a poligamia, as "famílias" ditas paralelas como eufemismo jurídico é exatamente assim. Não pode, simplesmente porque a lei diz que não pode. Como eu já disse anteriormente, “essa relação impropriamente denominada (no campo idílico, dos sonhos sonhados por alguns) de "família paralelas" é o nada jurídico. Filhos são filhos e, portanto, para eles o adjetivo "paralelo" é vexatório, discriminante e fere a Constituição. Por outro lado, aquele que mantém a relação com a pessoa casada ou em união estável não tem com ele/ela uma família”.

Se consideramos a lei um fetiche, lanço uma pergunta: se for preso por expressar a minha opinião em puro arbítrio de um certo político, se não a lei, qual será minha garantia? Se a lei é fetichista, eu me caso por comunhão parcial de bens (regime legal) e invoco depois meu "desejo" de nada partilhar acusando a lei de injusta?

A lei é uma reserva de segurança para todos os cidadãos, mormente em tempos confusos em que se fala de golpe militar, suspensão das garantias individuais etc.

Os julgadores julgam exatamente para podermos dormir sem medo de prisão arbitrária, sem medo de confisco dos bens por vontade do Monarca, para que eu saiba que se o casamento é nulo por poligamia, não terei os efeitos do casamento válido, que as regras que escolhi sobre o regime de bens serão respeitadas, que eu não posso exercer meu "desejo" de me casar com minha mãe, nem de ter uma família poligâmica.

Algumas bandeiras surgem por isso: "Os deuses morreram e Cristo ainda não nasceu. O homem está sozinho". De repente eu olho à minha volta e estou sentado na Sala do Trono em Alhambra. Boabdil morreu e estou só.

O que me resta? Lutar contra moinhos de vento. Quixote é sistematicamente confrontando por seu fiel escudeiro Sancho Pança que serve de "pé na realidade" e que desmente o idealismo e apresenta a dura realidade. No Capítulo VIII da magistral obra de Cervantes, Quixote confunde 30 moinhos de ventos com gigantes e parte para luta sozinho. A cena acaba com Quixote caindo de Rocinante derrubado por uma pá de um dos moinhos.

Vivemos esses tempos. As lutas foram vencidas e o Direito de Família resta justo e solidário. Agora, temos de escrever, refletir, dar ao cidadão uma leitura consentânea dessa conquista, concretizar o esse "novo" direito. Pena que para alguns restam os "gigantes", os moinhos de vento que simplesmente ignoram o "um só cavaleiro que vos investe":

"— Quais gigantes? — disse Sancho Pança.
— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.
— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.
— Bem se vê — respondeu D. Quixote — que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.

Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe repetia serem sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado:

— Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe."

[1] A segunda deixo a uma próxima coluna se possível for.

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