Opinião

Eleições, polarização perniciosa e o papel do Supremo Tribunal Federal

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

2 de setembro de 2022, 7h04

Recentemente, noticiou-se nesta ConJur que a polarização norte-americana estaria cada vez mais radical [1]. É relativamente seguro afirmar que estamos passando por cenário semelhante. Em tempos de fake news, ascensão das mídias digitais e descentralização da informação, com o consequente desfalecimento da grande mídia, a eleição presidencial deste ano tem ganho contorno apocalíptico de ambos os lados: a vitória do inimigo representa, em tese, o caminhar para o fim da democracia, liberdade, possibilidade de busca à felicidade, etc. O cenário desenhado por ambos os lados do espectro político é assombroso, e a luta contra o outro lado se torna essencial e necessária.

Antes de iniciarmos o estudo da polarização e sua relação com a crise da democracia e, em última análise, a ligação desta com o Poder Judiciário, partir-se-á de algumas premissas iniciais. Isso porque, não há indicação que a polarização política sempre seja levada aos entraves da estabilidade democrática. Na verdade, há situações de polarização que equilibram a democracia, especialmente, tendo em vista o caráter pluralista das sociedades contemporâneas.

Conforme a vencedora do Prêmio Pulitzer Anne Applebaum (2021), o que realmente torna o patriotismo americano único é o fato de jamais os Estados Unidos ter estado explicitamente conectado a uma única identidade étnica, com uma única origem, em um único espaço. Ou seja, a polarização, ligada e, de certa forma, fruto do liberalismo político em decorrência da diversidade de ideias, pensamentos e crenças, conforme já mencionado, seria uma das causas do sucesso da democracia norte-americana. Não obstante, remédio e veneno diferem apenas em uma coisa: dosagem. O problema surge, portanto, quando a polarização gera impasse e paralisia, ou quando se radicaliza em direção a disputa através de dois polos extremistas.

Em outras palavras, o problema não está na polarização, e sim na extrema polarização (SARTORI, 1982), ou na polarização radicalizada, termo este utilizado por Abranches (2020), passando neste caso a assumir conotação negativa por indicar caminho à ruptura democrática.

Ezra Klein (2020) aduz que as sociedades se encontram divididas, especialmente, porque as agendas políticas dos partidos (republicanos e democratas) estão mais divididas do que nunca. Klein não vê na polarização somente aspecto negativo, mas no cerne da democracia pluralista, pode ser em certa medida salutar e desejável para disputa política.

Assim, o que não seria desejável é que esta polarização se infiltre nas instituições políticas democráticas. Isso, inevitavelmente, dificulta a implementação de políticas públicas, dificultando e impedindo que o país avance no combate a problemas comuns, como pobreza e violência, por exemplo.

Não obstante, sabe-se que um dos pilares da democracia contemporânea é, necessariamente, a noção de respeito às regras do jogo e aos jogadores. Quando este respeito e demais valores são incorporados pela sociedade, podemos dizer que a sociedade possui uma boa cultura democrática. Neste sentido, em uma democracia saudável e consolidada deve haver a necessária confiança de que o, hoje perdedor, amanhã possa lograr-se vencedor pelas mesmas regras do jogo. Mas, quem garante isso? Fortes instituições, aceitas e apoiadas pela sociedade (DWORKIN, 2008).

Outro pilar da democracia contemporânea é certamente, conforme já mencionado, o pluralismo político. Assim, em uma democracia consolidada, os jogadores políticos possuem adversários políticos, e não inimigos políticos (BRANCO, 2005). A diferença entre um e outro dar-se-ia de forma bastante simples: com os adversários, buscamos conviver, ouvir, aprofundar o argumento de ambos os lados e tentativa de chegar a um acordo negociado mutuamente aceitável, cujo objetivo real é estabelecer uma paz duradoura; já com o inimigo, a dinâmica é bem mais simples: busca-se eliminar. Uma democracia, portanto, conforme Innerarity (2017, p.114), mais do que um regime de acordos, é um sistema cujo objetivo é conviver em condições de profundo e persistente desacordo.

Desta forma, aduz Przeworski (2020, p.33) que a democracia funciona bem quando conflitos políticos são processados em liberdade e paz civil. E, para que estes conflitos políticos possam ser processados em liberdade e paz civil, os cidadãos devem sentir que alguma coisa deve estar em jogo nas eleições, mas não coisas demais. Assim, conforme Innerarity (2017, p.122), uma campanha caracteriza-se pela competição, um jogo de soma zero e, por isso, tem como inevitável objetivo derrotar o adversário. Ainda assim, há alguns recursos que servem para a campanha (como prometer excessivamente ou dramatizar a polarização), mas que, depois, são poucos úteis para governar bem. Quanto mais as atitudes tomadas durante uma campanha eleitoral contaminarem o processo legislativo, mais se debilita o respeito pelo adversário e mais improváveis se tornam os acordos entre competidores.

De outra perspectiva, os psicólogos comportamentais Stenner e Haidt (2018) mencionam que o autoritarismo não representa necessariamente uma ideologia, ou uma espécie de "loucura momentânea", mas, sim, uma dinâmica eterna presente na democracia liberal e até, em última análise, nas relações humanas. Em outras palavras, a polarização é a regra em todos os regimes políticos democráticos, e não a exceção. O sucesso da democracia consiste no controle desta alma autoritária, que pode permanecer adormecida, mas nunca estará morta.

Neste sentido, conforme aponta Lees e Cikara (2020), a polarização, especificamente a polarização afetiva, é muitas vezes operacionalizada como a extremidade do preconceito de um indivíduo em relação a um grupo político externo. Outras vezes, a polarização é definida como a extremidade ideológica ou de posição dos indivíduos, ou como a força de sua identificação partidária dentro do grupo. Às vezes, a polarização é ainda definida como esses fenômenos em um nível de análise intergrupal e não individual. Ou seja, a polarização é a lacuna empírica na ideologia, atitudes do grupo externo ou identificação do grupo interno entre as partes.

Assim, trabalhando a gênese da polarização como um sistema que se retroalimenta, Lees e Cikara (2020) apontam para a existência de, inicialmente, uma "falsa polarização", sendo esta distinta de outras formas de polarização, referindo-se a dois julgamentos metacognitivos distintos: crenças de primeira ordem imprecisas sobre como os outros se identificam ou quão distantes dois grupos estão sobre uma questão (por exemplo, lacuna partidária percebida) e crenças imprecisas de segunda ordem sobre o que os outros pensam sobre si mesmo e seu grupo (meta-percepções). Em suma, crenças imprecisas de segunda ordem (meta-percepção) representam um vetor único pelo qual a falsa polarização leva a uma polarização muito real por meio de reforço mútuo, distinto dos mecanismos de julgamentos imprecisos de primeira ordem.

Estas faltas percepções de identidade levam a uma polarização real, em um sistema que se autoalimenta, especialmente à luz do uso de mídias sociais e do crescente fenômeno das fake news. As meta-percepções de grupo excessivamente negativas dentro da política estão igualmente associadas a um maior apoio à violação de normas democráticas, atribuições de motivos externos negativos e apoio a intergrupos agressão. Em outras palavras, muitas vezes, a polarização ocorre em decorrência da criação de um inimigo imaginário, criado com fim de ativar e manipular às massas.

O contrário, ademais, também parece ser verdadeiro. Neste sentido, em um estudo realizado com eleitores da Califórnia, Ahler (2014) já apontava que os meios de comunicação de massa transmitem profundas divisões entre os cidadãos, de modo que os eleitores de ambos os lados da divisão política do estado percebem as posições de seus pares liberais e conservadores como mais extremas do que realmente são, implicando crenças imprecisas sobre a polarização. Assim, crenças errôneas sobre o público podem afetar atitudes e comportamentos, levando os indivíduos a mudar sua percepção de norma social. Tais crenças equivocadas podem ser exploradas por líderes populistas, fomentando a polarização afetiva através do discurso "nós contra eles", e estes "eles" podem ser, inclusive, ministros da Suprema Corte. O importante é apontar um inimigo, e atacar.

Conforme aponta Svolick (2017), duas seriam as principais razões para se ficar atento ao fenômeno da polarização. Em geral as pessoas que dizem apoiar a democracia demonstram que, em momentos posteriores, há dificuldade de aderência aos desafios propostos na vivência democrática. Em outras palavras, eleitores relutam em punir políticos por desconsiderar os princípios democráticos quando isso exige o abandono de uma parte ou políticas favoritas. O espírito ideológico, muitas vezes, fala mais alto que o espírito democrático.

Desta forma, quando confrontados com uma escolha que opõe os princípios democráticos aos interesses partidários, os eleitores podem estar dispostos a negociar o primeiro para o último. Frações significativas de turcos, venezuelanos, e os americanos agem como partidários primeiro, e democratas apenas em segundo. Não seria surpreendente argumentar que este também seria o caso de frações significativas de brasileiros [2].

Neste sentido, fala-se em hipocrisia democrática do público (Mccoy et al, 2020), que seria justamente esta atitude dos cidadãos polarizados apoiarem o comportamento de erosão da democracia quando seu próprio partido está no poder. Assim, os autores apontam o apoio à política antidemocrática como consequência extrema da polarização partidária que leva cidadãos a apoiar o partido no poder no uso de medidas de erosão da democracia para consolidar seu poder, e assim seguir sua política ideológica de preferência, sendo esta tendência exacerbada pela polarização partidária afetiva.

O estudo em alude chegou à conclusão de que uma fração significativa dos americanos encoraja, em vez de apenas tolerar, políticas antidemocráticas. Em segundo lugar, as preferências por medidas que corroem as normas democráticas dependem de quem está no poder: os cidadãos cujo partido está no poder são substancialmente mais propensos a apoiar a violação de normas democráticas. Terceiro, a análise também revela um papel importante das diferenças individuais: a hipocrisia democrática é muito mais pronunciada entre aqueles com identidades partidárias mais fortes. A polarização, portanto, torna-se algo pernicioso quando as sociedades se dividem em dois campos políticos mutuamente desconfiados, vendo o outro lado não como adversário, mas como inimigos, agindo sob a real ameaça aos objetivos da coletividade como nação.

E qual o papel do STF nisso tudo? Conforme Przeworski (2020, p.193), caso as Cortes Constitucionais, que também possuem o papel de pacificar conflitos institucionais, tornam-se claramente partidárias, a necessária crença quanto a imparcialidade fica desabilitada, de modo que submeter questões políticas conflituosas a tribunais constitucionais se torna inútil – e como demonstrou-se Abboud (2021), um passo para a derrocada democrática.

A ideia, portanto, é deixar o uso estratégico da Constituição a salvo de líderes autoritários. Como mostram Alberto Simpser e Tom Ginsburg (2014), em regimes autoritários, com o fim da autonomia dos Tribunais Constitucionais (e, consequentemente, do Direito), a constituição serve como uma espécie de manual de operação, para que sejam seguidas as instituições do regime; como outdoors, com propagandas do regime, e como vitrines para aqueles que observam o país de fora do regime, a fim de que possam conhecê-lo da forma que os governantes pretendem.

Assim, conforme aduz Varol (2015), é comum que líderes autoritários, para maquiarem seus regimes com legitimidade e legalidade, utilizem uma retórica de Estado de Direito, democracia e constitucionalismo para implementar reformas que chamam de democráticas, mas que, em verdade, contêm medidas antidemocráticas ou de restrições democráticas. Sem essas verificações — especialmente do judiciário — os autocratas podem mais facilmente violar a direitos de seus oponentes e liberdades civis, especialmente aqueles relativos à liberdade de expressão, liberdade de mídia, assembleia e associação.

Portanto, controles horizontais, direitos e liberdades, e o sistema eleitoral são características mutuamente constitutivas da democracia. Assim, um ataque a qualquer um deles representa uma ameaça para os outros. A integridade das eleições depende de verificações horizontais e de sólida proteção de direitos. Os direitos, por sua vez, dependem de um judiciário independente, um Estado de Direito consolidado e a responsabilização proporcionada pelas eleições.

Enfraquecer qualquer uma dessas instituições ou procedimentos reduz as restrições sobre poder executivo e, portanto, cria oportunidades para um autocrata agarrar mais. A metáfora da "ladeira escorregadia" tem uma lógica: uma vez desrespeitadas certas regras e normas democráticas, prepara-se o terreno para o próximo ataque: agora mais rápido e fácil.

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Referências
ABBOUD, Georges. Direito constitucional pós-moderno. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras,2020.

AHLER, Douglas J. Self-fulfilling misperceptions of public polarization. The Journal of Politics, v. 76, n. 3, p. 607-620, 2014.

APPLEBAUM, Anne. O crepúsculo da democracia. Editora Record, 2021.

DWORKIN, Ronald. Is Democracy Possible Here?: Principles for a New Political Debate (English Edition). Princeton University Press, 2008

GINSBURG, Tom; SIMPSER, Alberto. Introduction. In: GINSBURG, Tom; SIMPSER, Alberto (ed.). Constitutions in authoritarian regimes. Chicago: Cambridge University Press, 2014.

INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação: a frustação popular e os riscos para a democracia; tradução de João Pedro George. – Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

LEES, J. M.; CIKARA, M. Understanding and Combating False Polarization. 2020

MCCOY, Jennifer; SIMONOVITS, Gabor; LITTVAY, Levente. Democratic hypocrisy: Polarized citizens support democracy-eroding behavior when their own party is in power. 2020.

SARTORI, Giovani. Politics, ideology, and belief systems. The American Political Science Review, Vol. 63, No. 2 (Jun., 1969), pp. 398-411.DOI: 10.2307 / 1954696.

STENNER, K., & HAIDT, J. (2018). Authoritarianism is not a momentary madness, but an eternal dynamic within liberal democracies. Can it happen here, 175-220.

Autores

  • é advogado, juiz leigo do TJ-CE, mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri, pós-graduanda em Ciências Criminais pelo Cers e ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri.

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