Opinião

Estupro de vulnerável em confronto com a dupla vitimização da ofendida

Autor

  • Isadora Warken Collet

    é graduanda em Direito pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) dditora da Revista Criminalis diretora de Eventos do Diretório Acadêmico Rui Barbosa ex-estagiária da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro atuante pela Vara da Infância e Juventude estagiária na área criminal pelo escritório Tavares Advocacia e Consultoria Jurídica associada do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e escritora de artigos no ramo do Direito Penal e Criminologia.

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2 de setembro de 2022, 20h33

Com o advento da Lei 11.106/2005 que revogou o inciso VII do artigo 107 do Código Penal, cuja extinção da punibilidade era prevista nos casos em que os réus que se casassem com as vítimas de crimes sexuais, tornou-se nítida a tentativa do legislador em ampliar a proteção da dignidade sexual ante as evoluções da sociedade e ao crescimento desnivelado dos crimes sexuais.

Subsequentemente, com as novas evoluções sociais, publica-se a Lei 12.015/2009 que inseriu no ordenamento jurídico uma nova tipificação: o crime de estupro de vulnerável, buscando, assim, tutelar o bem jurídico de uma parcela ainda mais específica da população e que demanda rígidos cuidados do Estado, quais sejam, crianças menores de 14 anos.

Diante do constante amadurecimento da sociedade brasileira e da busca pela efetiva tutela jurisdicional, o legislador percebe que os crimes contra a dignidade sexual permanecem carentes de soluções efetivas, nesse diapasão, com a publicação da Lei 13.718/2018, altera-se a legitimidade do polo ativo para propor a ação, uma vez que, até então, demandava-se da vontade da vítima para iniciar os trâmites processuais, passando, desse modo, a ser um crime que exige a propositura de ação pública incondicionada cuja ativação da máquina estatal independe da vontade do (a) ofendido (a).

As alterações legislativas, portanto, iniciam sua jornada no judiciário para que os costumes, até então norteadores das resoluções das ações penais, sejam ponderados ante as inovações legais. O Supremo Tribunal Federal e o Supremo Tribunal de Justiça não poderiam mais quedar-se inertes nas questões relacionadas aos crimes sexuais, devendo, portanto, exercer seu ativismo judicial para resolução daquela lide. Surge, desse modo, as jurisprudências que versam sobre a proteção integral da vítima em convergência com a efetiva tutela jurisdicional na tentativa de proteger, cada vez mais, a dignidade sexual das vítimas desses crimes.

Podemos ponderar nesse artigo que, atualmente, uma das inovações promovidas pelos Tribunais Superiores dignas de maior atenção, é posição adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) em matéria de estupro de vulnerável, cujo entendimento é o de presunção absoluta da violência diante dos atos sexuais cometidos contra indivíduos menores de 14 anos, não havendo, portanto, distinção e consequente valoração sobre o ato libidinoso ou a conjunção carnal para fins de aplicação do artigo 217-A do Código Penal. Portanto, concluímos ante as informações explicitadas que em caso de prática de atos libidinosos ou conjunção carnal com menores de 14 anos, a presunção da violência é absoluta incidindo, dessa forma, o tipo penal do artigo 217-A do Código Penal cuja ação pública é incondicionada.

No entanto, partindo das premissas já abordadas nesse artigo, mesmo com o amplo conhecimento da presunção absoluta da violência e do artigo 225 do Código Penal expressar que nos casos de estupro de vulnerável a ação a ser instaurada é pública e incondicionada, a Quinta Turma do Supremo Tribunal de Justiça promoveu um considerável retrocesso no que tange as inovações legislativas em conjunto com os entendimentos do judiciário para os crimes contra a dignidade sexual.

Em 18/5/2021, o ministro Ribeiro Dantas, no julgamento do REsp 1.524.494/RN e do AREsp 1.555.030/GO, analisou dois casos extremamente semelhantes: meninas de 11 e 13 anos de idade que se relacionavam, respectivamente, com adultos de 19 anos. Ao alcançarem a maioridade civil e prosseguirem com os respectivos relacionamentos tendo em vista os frutos gerados, quais sejam, um filho proveniente da primeira ofendida e o matrimônio da segunda vítima com o réu, ambas as ofendidas expressaram seu íntimo desejo pela absolvição dos réus uma vez que constituíram um laço familiar no decorrer desses anos e que a condenação resultante do crime de estupro de vulnerável traria mais malefícios às vítimas do que a absolvição dos acusados.  

Destaca-se que ambos os imputáveis foram denunciados pela prática do crime de estupro de vulnerável vez que não mais se admite no ordenamento jurídico a hipótese do casamento do réu com a ofendida como excludente de punibilidade.

Ocorre que, o ministro Ribeiro Dantas, nesses dois casos, decidiu pela expressa absolvição dos réus sob a justificativa de que ao condená-los como incursos no estupro de vulnerável, estaria promovendo uma dupla vitimização das ofendidas na medida em que formaram uma família com os réus e são dependentes emocionalmente e economicamente de seus amásios. Pode-se concluir, portanto, que ao ponderar o caso em tela, o Ministro construiu o entendimento de que a situação de destituição do núcleo familiar seria muito mais prejudicial que o fato ocorrido gerando extremas controvérsias.

Podemos extrair do voto do ministro relator que essa dupla vitimização mencionada, nada mais é do que a confissão do Estado alegando que falhou em proteger, de primeiro plano, os direitos daquela criança que fora submetida ao crime de estupro de vulnerável. Além disso, em segundo plano, o ministro utiliza-se desse argumento para neutralizar a respectiva falha sob uma ótica de compensar a omissão do Estado no que diz respeito ao crime cometido.

Nas suas duas análises, o ministro Ribeiro Dantas elencou que a vítima é dependente financeiramente e emocionalmente do réu e por essa razão não poderia condená-lo pelo sólido núcleo familiar instituído e pela vontade expressa das vítimas no que tange a absolvição de seus amásios, porém, diante dessas alegações, resta o questionamento se as leis 12.015/2009 e 13.718/2018 não entraram em nosso ordenamento jurídico justamente para evitar que a vítima fosse duplamente violentada, e, se, porventura, a decisão do ministro não poderia ocasionar o retrocesso do judiciário ante outras inúmeras vítimas que podem ser induzidas a construção de um núcleo familiar para que se evite a persecução penal contra o seu abusador?

Não há resposta concreta para as perguntas que pairam no ar; não há solução para o conflito entre as leis e os casos que chegam ao judiciário, mas, para que seja amenizada a lide entre esses fatores, deve-se criar mecanismos para que o estupro de vulnerável seja cada vez menos aceito na sociedade uma vez que sua prática ainda é extremamente comum no que tange os costumes de cada localidade do Brasil.

As campanhas governamentais devem ser destinadas para investigações sociais cuja taxa desses crimes se mostre crescente, bem como, a inserção da educação sexual nas escolas na tentativa de promover um prévio reconhecimento de eventuais abusos que possam ocorrer ou, como foram os dois casos, já estivessem ocorrendo, obtendo, assim, a efetiva tutela jurisdicional que o Estado democrático de Direito no Brasil tanto busca, defende e tenta proteger.

Autores

  • é graduanda em Direito pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), ex-estagiária da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro atuante pela Vara da Infância e Juventude, estagiária na área criminal pelo escritório Tavares Advocacia e Consultoria Jurídica, auxiliar de pesquisa no projeto de doutorado da advogada Kátia Rubstein Tavares, associada do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e escritora de artigos no ramo do Direito Penal e Criminologia.

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