Senso Incomum

Juíza propõe "revolução", começando com inversão do ônus da prova!

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1 de setembro de 2022, 8h00

O subtítulo poderia ser: O negacionismo epistêmico chega ao processo penal: onde erramos? Há chance disso um dia dar certo? Não, não respondam.

Depois dizem que é chatice minha. Pois leiam com suas próprias palavras.

Spacca
Em vídeo de formato "reels" transcrito abaixo, juíza federal titular de vara criminal do Estado do Rio do Janeiro, com quase 12 mil seguidores, sugere o que seriam três mudanças "que revolucionariam o sistema criminal brasileiro" (sic).

Bom, cada pessoa é responsável pelo que diz e por quem cativa ou descativa. Ônus e bônus. Pois então.

No vídeo, gravado entremeado de livros — o cenário é perfeito — a magistrada sugere as seguintes "mudanças revolucionárias":

Primeira: limitação ao alcance que damos ao princípio da presunção de inocência, assunto sobre o qual a magistrada afirma não querer "se estender", pois deseja falar para seus seguidores quais seriam as "mudanças de verdade". Algo no estilo: Que coisa velha falar sobre limitação da presunção de inocência, isso já é assunto superado entre nós, ''doutos" e ''atualizados" processualistas. O que estragou tudo foi essa última decisão do Supremo [1];

Segunda: inversão do ônus da prova nos crimes de corrupção no setor público, acompanhado no vídeo por um meme de uma senhora falando "Meus Deus…", acerca do qual a magistrada pergunta: "Ficou escandalizado? Ótimo. Acho importante questionarmos nossas crenças que podem ser limitantes" (sic). Digo eu: talvez aí o recurso linguístico do meme realmente faça algum sentido. Mas a doutora faz troça de quem se "escandaliza" com a falta de respeito para com as garantias processuais, como se um direito fundamental pudesse ser equiparado a uma (pres)suposta "crença limitante" (sic); e, como se não bastasse, por fim:

Terceira: acabar com o direito de mentir (sic). A juíza indaga, no maior estilo "pasme, excelência": "você sabia que no Brasil o réu tem o direito de mentir?!" E discorre sobre o quão melhor seria para o combate ao crime se os réus fossem apenas amparados pelo direito ao silêncio e o "privilégio" (sic) da não autoincriminação. Segundo ela, esses direitos "já seriam suficientes para assegurar os direitos inerentes à defesa, exatamente como ocorre nos Estados Unidos da América." Bom, faltou explicar como funciona isso no Brasil. Não parece que uma juíza deva fazer esse tipo de afirmação — fazendo crer à população leiga que o direito processual-constitucional à não auto-incriminação/direito ao silêncio se resuma a um "privilegiado" direito de mentir

Aliás, quanto a "mentir": para a juíza, negar a autoria é mentir? O que é mentira em termos processuais? Vamos elaborar uma "epistemologia da mentira"? Um juiz acusado pelo CNJ de ter feito determinada declaração ou cometido prevaricação, um procurador acusado de mal distribuir diárias e coisas assim: dizer que é um absurda a acusação ou dizer que é inocente e que a acusação é que é mentirosa (quando não o é), tem-se aí uma mentira? Dizer que é inocente, que o fato não é verdadeiro… é o quê? Mentira?

O vídeo da doutora juíza é um exemplo "clássico" de crise do ensino e do estudo do direito que venho denunciando há décadas. Esse foi mais um, mas é especialmente grave, pois trata de magistrada federal, com alta titulação. Pergunto-me: como chegamos aqui? Não só a pós-graduação fracassou, mas antes dela vem o ensino jurídico nos bancos das faculdades de direito. O que se está ensinando nas faculdades no lugar do processo penal? Outro dia vi estudantes de Direito dizendo que essa Constituição trouxe "direitos demais".

No vídeo, além do cargo de juíza federal, a magistrada se apresenta, para justificar as propostas e seu conhecimento da matéria, como doutora em processo. Não sei se algum doutorado brasileiro ensine a inversão do ônus probatório, por exemplo.

A magistrada pede para não nos escandalizarmos com uma sugestão do tipo "inversão do ônus da prova para crimes praticados no setor público".

Não, não me escandalizo. No Brasil garantias processuais são vistas como "privilégios" (será que as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos também são privilégios?).

Como se a Constituição não fosse uma Carta de Direitos e não fosse um anteparo contra o gigante-Estado. Alguém formado em direito — em especial, juízes e professores — que renegam garantias constitucionais são como médicos que rejeitam antibióticos e vacinas. Falo de antibióticos, porque esses ainda não entraram na cruzada negacionista, como as vacinas e a cloroquina, que, para o terror da ciência, já não são unanimidade nem mesmo entre médicos.

O negacionismo epistêmico está em franco crescimentos. É o triunfo do Know Nothing (Saber Nenhum) denunciado na distopia After Virtue, de Alasdair MacIntyre (sobre a qual tanto já falei).

E o direito? O que dizer para alguém que propõe inverter o ônus da prova, que é contra a presunção da inocência e quer limitar os direitos ínsitos ao interrogatório do acusado, rebaixando-o a um vulgar "direito de mentir"? E que história é essa de ponderar os "valores em jogo"? Quem decide esse critério? Onde estão esses valores no texto constitucional? O que são valores? Pior: no vídeo ela trata a ponderação a partir do clássico "balançamento" com uma mão para cima e outra para baixo, como se algum dia Alexy (para falar deste autor) tenha dito que é assim que se pondera.

A magistrada "justifica" que essas mudanças já são lugar comum em países "mais desenvolvidos do que o Brasil". Onde é que invertem o ônus da prova? Ela cita Índia, Coreia do Sul e Singapura. Bom, não quero nem falar do sistema processual da Índia. Lembro apenas que Singapura chicoteia pessoas.

Usando o "princípio da caridade" (no sentido de Davidson e Blackburn), analisemos a realidade social de países desenvolvidos (Inglaterra? Alemanha? EUA?). E as garantias processuais conferidas aos cidadãos que são réus nessas nações. Veja-se a cadeia de custódia da prova. E mais: a situação carcerária desses países, pois não? Há como comparar ovos com caixa de ovos, como perguntaria Bobbio?

Pois é disso que se trata quando se tenta trazer institutos processuais penais de outros contextos e tradições para nossa realidade. Bom, sabemos que, ao menos nos EUA, não é bem assim como ela diz. Nem falar em Alemanha e quejandos. Com relação ao direito ao silêncio, como afirmar categoricamente que o réu mentir para não se incriminar em juízo é um "atraso"? E o que é mentir? Sim, eu sei como funciona nos EUA. Mas não preciso explicar aqui. O ônus da prova não é meu.

Defender "propostas revolucionárias" claramente inconstitucionais não nos serve, ou melhor, pode até servir a alguém, mas certamente não ao pacto constituinte firmado em 1988. Moro tentou fazer isso com a indigitada proposta das Dez Medidas.

Por isso, lanço um desafio epistêmico à magistrada para que ela nos ilumine com uma lista de países que invertem o ônus da prova, por exemplo. E que isso poderia ser feito no Brasil. A não ser que ela aqui também deseje inverter o ônus da prova e diga que sou eu quem devo apurar os países que invertem o ônus ou não, se me permitem a ironia.

Então, em resposta cordial — como é de meu feitio — à referida magistrada e doutora em processo, proponho uma quarta mudança revolucionária para o sistema criminal brasileiro (especialmente para juízes) em substituição às suas três:

proponho o cumprimento da Constituição — em sua íntegra, incluindo todas as garantias — como atitude revolucionária.

O desafio está lançado.

Por último: não é fácil fazer teoria do direito e teorias processuais no Brasil. Quando achamos que avançamos um passo, vem alguém, com formação em processo e autoridade pública, pregar o obscurantismo. Desculpem a minha contundência.

 

Post scriptum: E por falar em Teoria do Direito, morreu em Buenos Aires um dos dinossauros da teoria critica jurídica, Carlos Cárcova. Professor de gerações. Quem não o conheceu e nem suas obras, recomendo procurar na internet. Fazia parte do Grupo Cainã. Doutor Honoris Causa pela UFPR. Deixou muitos Amigos. Mundo afora.

Meus sentimentos para a querida Alicia Ruiz, outra grande jurista!

 


[1] Para quem não se lembra, depois de muitas lutas e inúmeras ações — uma delas de nossa lavra — em 2019, por maioria apertadíssima de 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, encerrando (por ora) a questão da presunção de inocência no país. Mas, a ver pelo vídeo da juíza, há muitos magistrados, membros do MP e políticos que ainda não aceitaram essa decisão. E, pior: muita gente que advoga é contra a presunção da inocência. Consta que esse número chega a 60% (explico isso em vários textos publicados aqui na ConJur).

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