Embargos Culturais

Roberto Campos e o impeachment de Collor

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

30 de outubro de 2022, 8h00

Nos capítulos finais de Lanterna na Popa, Roberto Campos registra que o destino o designara para proferir o primeiro voto em favor do impeachment de Collor, na "fatídica sessão do Congresso de 29 de setembro de 1992". Campos teve prioridade absoluta no voto, privilégio que se devia ao triste fato de que estava em uma cadeira de rodas. Um privilégio raro, como naquela linda canção de Fabrizio de André (Giordie).

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Campos conta que tomou um jatinho no Rio de Janeiro, interrompendo uma convalescença ainda precária. Os prognósticos ainda eram incertos, também quanto ao desate da votação. Campos identificava-se como um enfermo muito solicitado, recebendo incessantes telefonemas de Ulisses Guimarães, Ibsen Pinheiro e Paulo Maluf.

Campos registrou que votou com melancolia, "apoiando o parecer do relator Nelson Jobim, favorável ao impeachment". Lembra em suas memórias que fora delirantemente aplaudido, inclusive pelos "jovens carapintados, acampados em frente ao Congresso". Alguns da geração de 1980, ou de um pouco antes, hoje quarentões, protagonizaram o "carapintadismo", inicialmente na União Nacional dos Estudantes e na União Brasileira de Estudantes Secundaristas.

As denúncias de Pedro Collor de Mello, relacionadas ao irmão e a PC Farias azeitavam o movimento. Li nesses dias o primeiro volume de Trapaça, Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro, de Luís Costa Pinto, editado pela Geração, que retoma essa passagem de nossa história, com muita qualidade.

Campos contou com exatidão as reuniões que teve com o então presidente, uma delas no "Bolo de Noiva", no Ministério das Relações Exteriores, dez dias antes da posse. Campos insistiu na imprestabilidade do congelamento de preços, receita que havia fracassado nos planos Cruzado e Verão. Recomendou também que não se aumentassem impostos, com base em Reagan, para quem o "imposto cria sua própria despesa".

Discutiram também sobre uma apreensão nacional que havia com o confisco, que justificaria que se votasse no candidato com quem Campos conversava. Dez dias depois, o então eleito presidente baixa a medida provisória 168. Para quem não lembra, era o congelamento de preços e o confisco dos ativos financeiros. Teriam feito exatamente o que acusavam no candidato. Era o início, e foi o começo do fim.

Com José Guilherme Merquior, em intermináveis conversas, Campos lamentava que a democracia política da Nova República "tivesse redundado num autoritarismo econômico de violência sem precedentes na história brasileira". Para Campos o Brasil fizera uma glasnost sem perestroika. Merquior já estava bem adoentado, lutando contra o câncer. Não ouviram Merquior, um liberista, que, segundo Campos, "acreditava na superioridade das economias de mercado, não só em termos de eficiência econômica, mas também de consolidação democrática".

O confisco que traumatizou o país mostrou (na minha opinião) que Campos e Merquior de algum modo viveram uma nova jornada dos logrados. Segundo Campos havia (no tempo) um erro de pessoa, um erro de diagnóstico, um erro de instrumento, um erro de sequência, um erro de descaso pela sinergia, ampliados por uma equipe econômica jovem e inexperiente, com um forte sotaque na verdade dirigista. Naquele episódio, acrescenta Campos, demoliu-se a confiança do poupador, o ânimo do investidor e a credibilidade do governo.

Por conta, especialmente desse último, é que Campos, ainda que com os movimentos limitados, em cadeira de rodas, apresentou-se no Congresso para votar naquele delicadíssimo dia. Não fez discurso, e nem invocou família, amigos, história, compromissos, como ocorreu muito depois, em outro episódio parecido, de fresca memória, e que proporciona farto material anedótico para os historiadores do futuro.

Passados 30 anos do impeachment aqui mencionado, os dias continuam delicados, a incerteza permanece. É preciso decidir, ainda que metaforicamente em uma cadeira de rodas, imagem que de algum modo revela a coragem da escolha, menos do que o gesto mecânico da opção. A essa escolha, e a esse gesto mecânico, os cientistas políticos denominam de democracia. Na percepção de um inglês corajoso, frasista, inteligente, preparado e fumador de charutos, a democracia pode ser mesmo a pior forma de governo, à exceção de todas as demais, o que justifica sua defesa. Não tenho a fonte dessa frase, não sei exatamente onde Churchill a pronunciou, porém subscrevo integralmente seu conteúdo.

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