Opinião

De olho na reforma da Constituição

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28 de outubro de 2022, 16h03

Quando, em 1929, discutia-se a reforma da Constituição da Áustria de 1920 e, mais importante, a dissolução da corte constitucional austríaca, Hans Kelsen, à época juiz desta corte, escreveu que "a Constituição expressa as forças políticas de determinado povo […] Se a exigência de modificação da Constituição cresce a tal ponto que não pode ser mais contida, é decerto um sinal de que houve um deslocamento de forças que procura se exprimir no plano constitucional" [1]. Estaria o Brasil passando por um desses momentos?

Antes de mais nada, é necessário pontuar que, quando falamos em constituição aqui não nos referimos, a priori — certo que há um entrelaçamento —, à constituição em sentido material (isto é, a decisão sobre o tipo e forma da unidade política [2]; a norma, ou conjunto de normas, que regula a criação de normas jurídicas de cunho geral [3]; ou, simplesmente, "o conjunto de leis, regras, convenções e costumes que regulam a forma do Estado, o regime de govêrno e os direitos públicos individuais, bem como as suas garantias" [4]), mas sim em seu sentido formal (isto é, aquela forma jurídica, distinta da forma legislativa, que faz da constituição um conjunto apartado de normas jurídicas dentro do ordenamento jurídico e, mais do que isso, usualmente atrelada a um processo de votação de quórum mais elevado que a alteração legislativa comum, caso contrário toda lei seria apta a alterar a constituição) [5].

Esta forma legal distinta, diga-se de passagem, pode ser apontada como uma das maiores dificuldades teóricas do constitucionalismo liberal (do Estado de Direito), pois, se o governo é uma democracia, que deve aproximar-se do princípio da autonomia, então como justificar que mesmo na hipótese de a maioria querer uma determinada norma, a norma seguirá sendo outra? Em outras palavras, é um fato (aparentemente contraditório) que o uso de maiorias qualificadas permite o domínio da maioria pela minoria [6].

Mas esta verdade dos fatos se justifica quando se nota que, por detrás do véu do princípio da autonomia/maioria existe um outro princípio, oriundo do constitucionalismo liberal (e presente no Estado democrático de Direito) [7], de respeito aos direitos das minorias existentes, que se consagra na composição dos interesses da maioria com os interesses da minoria. Isto é, a lei, no Estado de Direito, não é, simplesmente, a vontade da maioria, mas sim o produto do debate entre maioria e minoria, o juste-milieu, que gera uma lei boa, justa e razoável [8].

É fato que, desde meados do século 19, a democracia triunfou em relação às demais alternativas e se tornou uma fonte de legitimidade para todos os governos — mesmo as mais sangrentas das ditaduras tentaram (e tentam) se dizer democráticas [9]. E, desde então, tornou-se importante, para os grupos políticos que almejam conquistar e permanecer no poder, conquistar os votos. Além, evidentemente, da campanha e convencimento do eleitor, surgiram vários métodos alternativos para isso. Na República Velha, por exemplo, o voto era aberto e restrito a uma parcela da população [10]. No século passado uma das ideias políticas em voga era o estabelecimento de um parlamento profissional (o que mudaria a dinâmica jurídica) [11]; no sistema de voto distrital, o desenho dos distritos eleitorais é capaz de alterar o resultado eleitoral — daí a existência do gerrymandering [12].

Outra forma de mudar o exercício do poder em um Estado é a alteração do arranjo entre os poderes. Ninguém, por exemplo, argumentaria que Marbury vs. Madison não mudou a divisão dos poderes nos Estados Unidos — até então, a noção de judicial review era desconhecida naquele país (e no mundo) [13]. De forma similar, ninguém negará que a Constituição de 1988 dá mais poderes ao Supremo Tribunal Federal do que a Constituição de 1969.

Nos últimos anos, foram várias as propostas que, de uma forma ou de outra, visam a mudar o arranjo constitucional brasileiro e consagrar, com isso, um rearranjo das forças políticas. Vejamos algumas delas:

Recentemente, o general Hamilton Mourão, discutindo o (persistente) embate entre o Supremo Tribunal Federal e o presidente da República, defendeu um aumento no número de ministros do STF e a reforma da sistemática das decisões democráticas (sem especificar que mudança seria essa) [14].

No que tange a relação entre o Congresso e o presidente da República, o orçamento secreto é um caso notável de diminuição dos poderes do presidente da República, uma vez que diminui a dependência dos parlamentares para a liberação de verbas pelo Executivo [15] — não é a troco de nada que o Congresso almeja constitucionalizar o orçamento secreto [16].

A discussão de um projeto de emenda constitucional do semipresidencialismo, também se insere neste contexto como um avanço do Legislativo sobre o Executivo [17]. Curiosamente, e bem à tônica de Coronelismo, Enxada e Voto, o Congresso sofre, hoje, de uma imensa dependência do Presidente da República para se eleger, dado que este, seja quem ganhe as eleições, é sempre um dos principais cabos eleitorais dos parlamentares, além de figura importante para a liberação de verbas para a realização de projetos que garantem a continuidade do voto nas eleições seguintes [18].

Um terceiro exemplo, circulou, no Congresso, neste ano, um projeto de emenda à constituição que permitiria ao Congresso revogar decisões não unanimes do STF [19].

Evidentemente, estes esforços não estão no mesmo sentido. Enquanto o primeiro visa ao fortalecimento do Poder Executivo e enfraquecimento do Judiciário; o segundo visa ao enfraquecimento do Executivo e fortalecimento do Legislativo; e o terceiro visa a enfraquecer o Judiciário, fortalecendo o Legislativo. Em outras palavras, se, com efeito, é evidente que há um embate entre os poderes do Estado, deve restar igualmente evidente que este embate ainda não teve um desfecho.

Mark Tushnet, professor de direito constitucional estadunidense, propôs, há quase 20 anos, o conceito de constitutional hardball [20], que, segundo ele, traduz-se na situação na qual diferentes antagonistas políticos vão até os limites dos acordos pré-constitucionais do jogo político para manter ou ganhar o poder. Tal comportamento, segundo Tushnet, desenvolve-se quando os riscos são elevados para ambos os lados.

Se admitirmos — o que é factível — que a polarização atual é um quadro de constitutional hardball, então é de se esperar que, após o desfecho das eleições, o lado vitorioso (ou melhor, o lado que se entender como vitorioso) buscará concretizar esta vitória por meio de mudanças constitucionais (imaginando, pois, um deslocamento das forças políticas em seu favor) que lhe garantam um arranjo institucional mais favorável. Daí a importância de, desde logo, votar com especial atenção às propostas de mudança constitucional de cada candidato


[1] KELSEN, Hans, A pressão pela reforma constitucional, in: Jurisdição constitucional, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 213. Argumento similar é apresentado em TUSHNET, Mark V., Constitutional Hardball, The John Marshall Law Review, v. 37, nº 2, p. 523–553, 2004. Para mais informações sobre o imbróglio que levou à reforma da corte constitucional austríaca de 1929, ver KELSEN, Hans, Autobiografia de Hans Kelsen, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 81–93.

[2] SCHMITT, Carl, Constitutional Theory, Durhan, London: Duke University Press, 2008, p. 75–88.

[3] KELSEN, Hans, Teoria Geral do Direito e do Estado, 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 182–183.

[4] FRANCO, Afonso Arinos de Melo, Curso de direito constitucional brasileiro, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 25.

[5] KELSEN, Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 182–183, 374–375; SCHMITT, Constitutional Theory, p. 67–74.

[6] KELSEN, Hans, Essência e valor da democracia, in: A democracia, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 27–34, 67–71; KELSEN, Hans, Fundamentos da democracia, in: A democracia, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 178–180; SCHMITT, Constitutional Theory, p. 71–74. Outro argumento contrário à constituição formal (quiçá até escrita) é de que, nestes termos, obedece-se à vontade dos mortos como se fosse a vontade popular — o que é uma evidente falácia. Vide, nesse sentido: ELY, John Hart, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, Cambridge, Massachusetts; London: Harvard University Press, 1980, p. 11–12.

[7] Sobre o Estado Democrático de Direito, ver DÍAZ, Elias, Estado de Derecho y Sociedad Democratica, 8. ed. Madrid: Taurus, 1981.

[8] SCHMITT, Carl, The Crisis of Parliamentary Democracy, Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT Press, 1985, p. 42–50; SCHMITT, Carl, Legality and Legitimacy, Durhan, London: Duke University Press, 2004, p. 23–25; SCHMITT, Constitutional Theory, p. 337–338.

[9] KELSEN, Essência e valor da democracia, p. 27–34, 74–76; KELSEN, Fundamentos da democracia, p. 180–182; SCHMITT, The Crisis of Parliamentary Democracy, p. 22. A necessidade de justificação é tão forte que a Rússia, para anexar as províncias ucranianas, viu-se na necessidade de realizar um referendo, ainda que completamente fraudado, vide:  REDAÇÃO, Rússia finaliza referendos e planeja anexar territórios na Ucrânia, Estadão, 2022.

[10] CARVALHO, José Murilo de, O pecado original da república: debates, personagens e eventos para compreender o Brasil, Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017, p. 51–62. A referência, aqui, é meramente exemplificativa. José Murilo de Carvalho tem extenso, e bom, trabalho a respeito dos direitos políticos no Brasil.

[11] KELSEN, Essência e valor da democracia, p. 61–65; KELSEN, Hans, O problema do parlamentarismo, in: A democracia, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 122–126. No Brasil, a Constituição de 1937, dispunha que "Artigo 38  O Poder Legislativo é exercido pelo Parlamento Nacional com a colaboração do Conselho da Economia Nacional e do Presidente da República, daquele mediante parecer nas matérias da sua competência consultiva e deste pela iniciativa e sanção dos projetos de lei e promulgação dos decretos-leis autorizados nesta Constituição". Nesse sentido, ver também CAMPOS, Francisco, O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico, Brasília: Livraria do Senado Federal, 2001, p. 49.

[12] DAHL, Robert A., On Democracy, New Haven, London: Yale University Press, 2020, p. 130–141.

[13] TUSHNET, Constitutional Hardball, p. 538–543; REHNQUIST, William H., The Supreme Court, New York: Vintage Books, 2001, p. 21–35.

[14] TELES, Levy, Mourão defende mudanças no STF para ampliar número de ministros e limitar decisões monocráticas, Estadão, 2022.

[15] WETERMAN, Daniel, Futuro governo vai assumir em 2023 sem controle de 40% dos investimentos, Estadão, 2022.

[16] FERNANDES, Adriana, Congresso quer constitucionalizar PEC para o orçamento secreto, Estadão, 2022.

[17] WETERMAN, Daniel; PEREIRA, Izael; PORCELLA, Iander, Lira propõe ao Congresso debate sobre semipresidencialismo a partir de março, Estadão, 2022; GODOY, Marcelo, Lira cria grupo para avançar em PEC do semipresidencialismo; Temer e Jobim são conselheiros – Política, Estadão, 2022; FROUFÉ, Célia, Lira e Pacheco reforçam defesa do semipresidencialismo no Brasil, Estadão, 2021.

[18] LEAL, Victor Nunes, Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil, 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, cap. 1.

[19] WETERMAN, Daniel, Centrão elabora PEC para anular decisões não unânimes do Supremo, Estado de São Paulo, 2022.

[20] TUSHNET, Constitutional Hardball.

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