Quase parando

Funai leva 5 meses para cumprir decisão judicial sobre demarcação de terra indígena

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28 de outubro de 2022, 7h51

A Fundação Nacional do Índio (Funai) demorou cinco meses para cumprir uma determinação judicial e enviar um procedimento de demarcação de terra indígena para o Ministério da Justiça.

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Em março, a Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Juína (MT) determinou que a União e a Funai dessem seguimento ao processo de demarcação da Terra Indígena Menkü, localizada no município de Brasnorte, cerca de 600 quilômetros de Cuiabá. Os autos só foram enviados ao Ministério da Justiça em outubro. O prazo original era de 15 dias.

A antecipação de tutela de urgência foi pedida pelo MPF por meio do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais em Mato Grosso. O pedido foi ajuizado em junho de 2021 e a decisão da Justiça Federal saiu no dia 7 de março deste ano. O ofício da Advocacia Geral da União informando o cumprimento da sentença é de 3 de agosto deste ano.

A demora de mais de 150 dias para dar prosseguimento ao processo de demarcação da TI Menkü é uma desídia no cumprimento de ordem judicial.

Os prazos processuais devem ser respeitados, sob pena de responsabilização, nos termos do Código de Processo Civil. Para as pessoas jurídicas de direito público (União/estados, municípios e autarquias), os prazos, em regra, serão computados em dobro, conforme o artigo 183 do Código de Processo Civil, cuja contagem terá início a partir da intimação pessoal, informa Émerson Tauyl, advogado criminalista, especializado em Direito Militar e Segurança Pública.

Mais que a obrigação
"Se a Funai — órgão da União, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que tem por finalidade promover, desenvolver e garantir os direitos dos povos indígenas no Brasil —foi devida e oficialmente intimada para cumprir a decisão judicial no prazo legal de quinze dias e demorou cinco meses para sua efetivação, os dirigentes poderão responder pela prática do crime de prevaricação em decorrência do retardamento no cumprimento da ordem legal, podendo ainda incidir a abertura de inquérito civil para apuração de ato de improbidade administrativa, fulcro do artigo 11, inciso VI, da Lei Federal nº 8.429/92, cumulativamente e sem prejuízo das sanções administrativas disciplinares e da eventual reparação da natureza civil, caso reste evidenciado que o retardamento resultou em dano", alerta Ellison Andrade dos Santos, especializado em Direito Criminal.

"Ocorrendo a mesma hipótese, no caso em que se tenha havido atrasos imotivados por parte do Poder Judiciário ao processar e cumprir a efetividade da decisão judicial de urgência, demorando, cinco meses para intimar oficialmente a parte sucumbente na demanda, circunstância que ultrapassa o limite legal de cinco dias", completa.

"Quando a parte deixa de cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final e/ou cria embaraços à sua efetivação ou quando pratica inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso. nesses casos, a multa poderá alcançar um patamar de até 20% do valor da causa, devendo o juiz considerar a gravidade da conduta. Entretanto, nos casos em que o valor da causa for irrisório ou inestimável, o magistrado poderá fixar em até dez vezes o valor do salário-mínimo", afirma Tauyl.

Para o doutor em Direito e professor de Direito Constitucional da Universidade Mackenzie, Flávio de Leão Bastos, este é um exemplo de caso grave. "(A demora) pode ser estrutural, pois uma repartição pública depauperada pode estar sem servidores. Mas também pode ser por razões políticas. No caso de demarcação de terras indígenas, o atual governo é refratário, contrário aos povos indígenas. Então, isso pode até fazer parte, em tese, de uma grande sistematização para impedir a demarcação de terras indígenas, e a consequência a gente sabe qual é: o etnocídio, o genocídio indígena", explica.

Retrocesso
O MPF alega retrocesso no procedimento demarcatório utilizando-se de atos administrativos ilegais. Em 2021, a própria Funai havia informado ao MPF que os autos do processo administrativo de revisão de limites da TI Menkü teriam sido devolvidos à Diretoria de Proteção Territorial para reanálise sob o crivo da nova gestão. 

Na ocasião, foi alegado que a devolução do processo teve como base o parecer da Advocacia-Geral da União, embasado no Parecer n° 001, e que teve seus efeitos recentemente suspensos pelo Supremo Tribunal Federal, ou seja, sem validade. A fundamentação ainda foi feita no poder de autotutela da administração. 

"Com efeito, os despachos, pareceres, cotas e informações técnicas mencionados no procedimento deixam clara a ilegalidade do ato administrativo que determinou o retrocesso no procedimento demarcatório e, mais ainda, evidenciam que o processo estava suficiente e regularmente instruído, pronto para ser encaminhado ao Ministro da Justiça e Segurança Pública. O ato do presidente da Funai que determina o retrocesso contraria as conclusões da própria Funai, por meio de seus setores competentes, além de violar princípios constitucionais", ressaltou o procurador da República, titular do Ofício Indígena, Ricardo Pael.

Os artigos 231 e 232, da Constituição Federal asseguram aos povos indígenas, dentre outros direitos, a proteção e a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, devendo a União proteger e fazer respeitar tais bens.

Sem prorrogação de prazo
"Em regra, as decisões judiciais proferidas em caráter de urgência ou em sentença transitada em julgado não comportam prorrogações de prazo para que se dê efetividade aos seus efeitos, devendo ser cumprida dentro do interstício estabelecido na própria decisão", expõe o advogado Ellison Andrade dos Santos.

Pode acontecer, no entanto, dependendo da complexidade da demanda no cumprimento da medida imposta, a pretensão de dilação do prazo a pedido de uma das partes, ficando a concessão do pedido, a critério do Juízo, ou ainda, por pedido bilateral, por intermédio de negócio jurídico processual, ocasião em que, as partes envolvidas no litígio consentem a prorrogação.

"Porém, no caso de demarcação de terras, pode acontecer atrasos significativos na efetividade da decisão judicial, já que, após o trânsito em julgado da sentença, há um vultoso desenvolvimento de trabalho pericial de demarcação, onde há depender da área, tamanho e circunstâncias em que se encontre, o prazo de 15 dias se torna insuficiente para que se dê cumprimento a ordem judicial, salientando ainda, quando concluído o trabalho da perícia, este, é submetido à manifestação das partes, cabendo inclusive impugnações", explica o advogado especializado em Direito Criminal.

Ampliação da TI
Em abril de 2018, por unanimidade, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região já havia determinado a ampliação da TI Menkü, do povo indígena Myky porque a terra indígena foi demarcada sem critérios técnicos em 1987, baseada em patrocínio e material elaborado por um fazendeiro da região que disputava a área com os indígenas. A decisão atendeu a recurso do MPF e da própria Funai.

Segundo a Funai, em 1976, Benedito Mauro Tenuta, fazendeiro da região, encaminhou à fundação uma proposta para custear a demarcação da TI Menkü.

"A demarcação foi efetuada pelo citado fazendeiro, em 1978, sem qualquer estudo técnico especializado, em flagrante desacordo com o Decreto nº 76.999/1972, excluindo-se parcelas significativas da área tradicionalmente ocupada pelos Myky. Homologou-se uma terra indígena insuficiente para a reprodução física e cultural desta sociedade indígena, negligenciando-se, portanto, os preceitos constitucionais vigentes", afirmou a relatora do caso, desembargadora Daniele Maranhão.

A decisão da corte federal afirma que é viável a revisão de processo demarcatório realizado antes da Constituição de 1988 para adequar à norma constitucional vigente, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça. O ato de revisão praticado dentro da prerrogativa da administração de rever/anular seus atos quando eivados de vícios, notadamente por se tratar de direito imprescritível, está previsto em ressalva do parágrafo 4º do artigo 231 da Constituição Federal.

Segundo o procurador regional da República Felício Pontes Jr., que defendeu o direito dos indígenas no Tribunal, impedir a ampliação da área é condenar o Povo Myky ao etnocídio. "Essa nova forma de colonialismo não mata o corpo das pessoas, como faz o genocídio, mas aniquila a sua cultura. E trata-se de uma cultura extremamente diferenciada. Apenas dois povos do mundo falam essa língua, um deles é o Povo Myky; o outro é Povo Manoki, ambos se encontram no Mato Grosso", declarou.

As informações da Funai mostraram que, ainda na década de 1970, as terras foram invadidas por um fazendeiro que arrasou duas malocas onde viviam os indígenas, violou o cemitério onde jaziam seus antepassados, destruiu as roças e a Casa de flautas, considerada sagrada. "Se pudesse comparar, diria que a Casa de Flautas para o Myky produz o mesmo sentimento que o Muro das Lamentações tem para os judeus, ou Santo Sepulcro para os cristãos", explicou Pontes Jr.

Para entender o caso
Fazendeiros da Associação dos Produtores Rurais Unidos de Brasnorte, Tequendama Agropecuária Ltda e Agropecuária Rio Papagaio Ltda haviam tentado suspender o processo de demarcação por meio de mandado de segurança, alegando que possuem títulos de terra sobre a área.

Eles alegaram que a existência de fazendas na região impediria o reconhecimento da tradicionalidade indígena e que a terra indígena não poderia ser ampliada, considerando a decisão do caso Raposa Serra do Sol pelo STF. Entretanto, segundo o MPF, os argumentos dos fazendeiros não se sustentam em razão de diversas premissas fáticas e jurídicas baseadas nos tribunais superiores.

Os fazendeiros da região onde está o povo Myky sustentam ainda que a ampliação da TI Menkü passará de 47.094,8647 hectares para 186.648 hectares, situação que tem gerado acirramento de ânimos na região. Os possuidores atuais de terras e proprietários defendem que têm certidões que lhes garantem a posse de forma regular. Procurada, a Funai não respondeu à reportagem. Com informações da Procuradoria da República em Mato Grosso.

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ACP 1.20.006.000014/2017-81

Apelação 0012564.11.2012.4.01.3400
Apelação 0012899.30.2012.4.01.3400
Apelação 0013569-68.2012.4.01.3400

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