Devo, não nego

Com tese sobre CDC e alienação fiduciária, STJ preserva estabilidade do mercado

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27 de outubro de 2022, 20h49

A decisão do Superior Tribunal de Justiça de vetar que a resolução do contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, desde que causada por inadimplemento, seja regida pelo Código de Defesa do Consumidor faz valer a vontade do legislador e garante a estabilidade do mercado.

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Tese do STJ afastou aplicação do CDC nos casos de resolução de contrato de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária

Essa é a opinião de especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre a tese firmada pela 2ª Seção da corte nesta quarta-feira (26/10). O enunciado foi definido sob o rito dos recursos repetitivos e tem aplicação obrigatória pelas instâncias ordinárias.

O caso trata de imóveis cuja compra é feita por meio de financiamento com alienação fiduciária, ou seja, a propriedade do bem é transferida para a instituição financeira que forneceu o dinheiro e só é devolvida ao comprador quando a dívida for totalmente quitada.

Essa operação é orientada pela Lei 9.514/1997. Ela prevê que, em caso de inadimplemento, a propriedade seja consolidada em favor do credor fiduciário, que por sua vez venderá o bem em leilão para quitar a dívida. O que sobrar — se sobrar — deve ser devolvido ao comprador devedor.

Uma outra opção seria usar o Código de Defesa do Consumidor, que em seu artigo 53 determina que são nulas as cláusulas de contratos de compra e venda que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que pedir a resolução do acordo por inadimplemento.

Em suma, o STJ decidiu que, nos contratos com cláusula de alienação fiduciária, não existe a possibilidade de o devedor recuperar qualquer montante com base nas parcelas que já foram pagas. Essa posição é muito importante para o mercado.

Sistema são
Para Olivar Vitale, sócio do escritório VBD Advogados e representante da Federação Internacional Imobiliária, que atuou como amicus curiae (amiga da corte) no STJ, a tese fixada é favorável a todo o setor imobiliário, pois ela oferece segurança a quem vende imóveis e, graças a isso, condições mais favoráveis a quem compra.

Vitale explica que prestigiar a Lei 9.514/1997 é bom porque fortalece o uso da alienação fiduciária, a principal forma de garantia usada no Brasil desde, pelo menos, 2001. Essa preferência decorre da facilidade de executar a dívida em caso de inadimplemento.

"Após a adoção da alienação fiduciária como principal garantia do mercado, a inadimplência caiu mais de dois dígitos, para algo entre 1% e 2%. Os juros anuais para o crédito imobiliário, que já foram de quase 20%, há alguns anos estão em patamares de apenas um dígito percentual. Prestigiar tal garantia é manter o sistema saneado e pulsante."

Segundo Diego Amaral, do escritório Dias & Amaral Advogados, o STJ nada mais fez do que aplicar a lei, conferindo segurança para todos que, com seriedade, buscam cumprir os contratos. "É segurança para as duas partes", exalta. E ele faz um importante acréscimo: a tese fixada diz que a Lei 9.514/1997 se aplica ao contrato de compra e venda com garantia de alienação fiduciária que seja devidamente registrado, e após o devedor ser constituído em mora.

"Muitas vezes, as pessoas fazem contrato com alienação fiduciária, mas não registram. Nesses casos, a lei não vai ter eficácia. Estaríamos falando de um contrato com forte base no Código de Defesa do Consumidor. Mesmo com todas as discriminações voltadas para a alienação fiduciária, não haveria um requisito básico para implementação da lei: o registro", explica o advogado.

Giselle Vergal, do Viseu Advogados, destaca que não se questionou a legalidade do procedimento de excussão (execução do bem dado em garantia pelo devedor) na alienação fiduciária, mas apenas a forma de devolução dos valores pagos pelos devedores ao credor fiduciário.

"Esse assunto é de absoluta relevância, são duas leis federais com dispositivos antagônicos, e agora o STJ já definiu: não se aplica o CDC e, vendido o imóvel em leilão, o devedor (inadimplente) só recebe de volta a importância que sobrar, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos do imóvel", diz ela

De acordo com Marcello Vieira de Mello, do GVM-Guimarães & Vieira de Mello Advogados, a conclusão da 2ª Seção é condizente com o avanço legislativo que deu segurança jurídica ao mercado imobiliário. "A aplicabilidade do CDC nesses contratos voltaria com a instabilidade. Entendemos que é muito importante que o STJ valorize e mantenha essa evolução legislativa."

Comprador são?
Na opinião de Marcelo Tapai, diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, a posição do STJ tem a consequência negativa de reduzir o alcance do Direito do Consumidor. "O STJ, conhecido como o Tribunal da Cidadania, está prestigiando a questão econômica e o liberalismo total. Infelizmente esse parece ser um caminho sem volta", lamenta ele.

Apesar disso, Tapai não vê possibilidade de desaquecimento do mercado. "Quem compra um imóvel nunca pensa em desistir do negócio, perdendo muito ou pouco. Ou seja, as pessoas não deixarão de comprar em razão desse entendimento. Por outro lado, o risco para as empresas desaparece".

Diego Amaral, por sua vez, afirma que a alienação fiduciária traz uma segurança muito grande para quem vai cumprir o contrato. Além disso, ele diz que a decisão não extirpou a aplicabilidade do CDC nos contratos imobiliários.

"Por exemplo, na compra e venda de apartamentos na planta não vai ser aplicada a alienação fiduciária. Ela só pode ser aplicada depois, na fase de financiamento. Ou seja, se não existe imóvel pronto e matrícula individualizada, ela não cabe. Aí continuam valendo o CDC e a Lei do Distrato (Lei 13.786/2018)."

"Em verdade, não foi afastado o CDC", concorda Olivar Vitale. "O artigo 53 do CDC proíbe a cláusula contratual que estabeleça a perda total dos valores pagos. Não há essa previsão no contrato de compra e venda com alienação fiduciária."

Prova disso é que a Lei 9.514/1997 fixa que, em caso de inadimplemento, o imóvel alvo da alienação fiduciária deve ser levado a leilão. Se a venda se der em valor superior à dívida — incluídos aí juros convencionais, penalidades e demais encargos —, a sobra desse valor tem de ser entregue ao devedor.

Esse seria o caso do primeiro leilão, previsto no artigo 27, parágrafo 1º, da lei. Se o maior lance tiver valor inferior ao que vale o imóvel, será feito um segundo leilão, e neste será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida. Ou seja, é nesse caso que o devedor pode ser ver de mãos abanando ao fim do processo.

REsp 1.891.498
REsp 1.894.504

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