Paradoxo da Corte

Depósito do valor exigido não libera o devedor dos encargos

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

25 de outubro de 2022, 8h00

Questão que sempre ensejou muita dúvida, no cotidiano da nossa advocacia contenciosa, respeitava às consequências do "depósito preventivo", efetivado pelo executado, visando a se exonerar, enquanto pendente a discussão acerca do débito, dos encargos moratórios.

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Lembro que esse problema não existe em algumas experiências jurídicas, como, por exemplo, no âmbito do direito italiano, visto que o artigo 687 do Codice di Procedura Civile prevê o denominado sequestro liberatorio, pelo qual, a pedido do devedor, o juiz autoriza que este faça um depósito judicial do valor que entende devido, quando a existência da obrigação ou o montante cobrado estiver sendo discutido.

Explica, a propósito, Fulvio Mastropaolo (Il Sequestro Liberatorio come Vicenda dell'Obbligazione, Milão, Giuffrè, 1984, pág. 22), que o objetivo dessa faculdade legal é o de prevenir o devedor dos efeitos do débito em atraso. Trata-se, a rigor, como assevera a doutrina processual italiana, de um mecanismo "defensivo", enquanto o devedor contesta o valor ou a própria existência da dívida exigida pelo credor.

Autorizado pelo juiz, o devedor, deixando de ter disponibilidade sobre a quantia que entende devida, providencia o seu depósito numa conta bancária, à disposição do juízo. Assim, uma vez definido o quantum debeatur, o devedor que efetuou o depósito, somente responderá por eventual diferença a favor do credor. É dizer: o sequestro liberatorio, no direito italiano, isenta o devedor de arcar com os encargos moratórios.

Essa questão já estava relativamente definida pela nossa jurisprudência, a partir da tese que restou assentada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento, em 2014, do Recurso Especial nº 1.348.640-RS, sob o rito dos recursos repetitivos, no qual foi decidido que: "na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada" (Tema 677).

Todavia, como ainda restavam algumas dúvidas entre as turmas do próprio Superior Tribunal de Justiça, em outubro de 2020, a ministra Nancy Andrighi suscitou questão de ordem no Recurso Especial nº 1.820.963-SP, que restou acolhida pela Corte Especial, forte nos seguintes fundamentos:

"No julgamento do REsp. n– 1.475.859-RJ, a 3ª Turma deu nova conformação a esse entendimento, fixando a orientação de que a obrigação da instituição financeira depositária pelo pagamento dos juros e correção monetária sobre o valor depositado convive com a obrigação do devedor de pagar os consectários próprios de sua mora, segundo previsto no título executivo, até que ocorra o efetivo pagamento da obrigação ao credor.

A partir de então, a jurisprudência da 3ª e 4ª Turmas passou a oscilar entre a aplicação, ou não, do Tema 677/STJ nas hipóteses em que o depósito judicial não é feito com o propósito de pagamento ao credor, repercutindo a divergência nos demais juízos e Tribunais pátrios.

Contexto em que se mostra adequada a instauração de procedimento de revisão do entendimento firmado no Tema 677/STJ, para que a Corte Especial se manifeste sobre a preservação, ou não, do respectivo enunciado.

Delimitação do tema submetido à revisão: 'revisão da tese relativa ao Tema 677/STJ: definir se, na execução, o depósito judicial do valor da obrigação, com a consequente incidência de juros e correção monetária a cargo da instituição financeira depositária, isenta o devedor do pagamento dos encargos decorrentes da mora, previstos no título executivo judicial ou extrajudicial, independentemente da liberação da quantia ao credor'.

Determinação de suspensão do processamento dos recursos especiais e agravos em recurso especial que versem sobre idêntica questão de direito e que estejam pendentes de apreciação em todo o território nacional.

Questão de ordem acolhida".

Importa frisar que, na sessão do dia 19 de outubro passado, a Corte Especial, por apertadíssima maioria (7 a 6), ultimou o julgamento da referida questão de ordem, concluindo agora de forma contrária àquela precedente orientação, ao ponderar que, no momento em que o credor receber o valor que havia sido depositado, deve ser acrescido dos juros e correção monetária pagos pelo banco no período em que a quantia ficou depositada. O que ainda faltar para atingir o total efetivo da condenação deverá ser complementado pelo devedor, nos termos do título judicial. É dizer: de nada adianta o prévio depósito eventualmente providenciado pelo devedor, uma vez que ele não se exonera de todos os encargos devidos.

Desse modo, a partir do mencionado julgamento, passa a vigorar a seguinte tese:

"Na fase de execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente de penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários da sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial".

A posição que acabou vingando nesse sentido foi a da ministra relatora Nancy Andrighi, então secundada pelos ministros João Otávio de Noronha, Laurita Vaz, Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin, Benedito Gonçalves e Og Fernandes. Ficaram vencidos os ministros Paulo de Tarso Sanseverino (que abriu a divergência), Jorge Mussi, Luís Felipe Salomão, Mauro Campbell, Raul Araújo e Francisco Falcão. Na opinião destes, a tese do Tema 677 não deveria sofrer modificação.

Segundo os termos do voto condutor da ministra Nancy Andrighi, a obrigação da instituição financeira depositária pelo pagamento dos juros e correção sobre valor depositado convive com a obrigação do devedor de pagar os consectários próprios da sua mora. Ou seja, quando o dinheiro depositado for finalmente liberado ao credor, deve ser acrescido dos juros e da correção monetária pagos pela instituição financeira pelo período em que foi depositária e, no que faltar, os juros e correção monetária suportados pelo devedor, conforme a condenação. "Em suma, não se pode atribuir efeito liberatório do devedor por causa do depósito de valores para garantia do juízo com vistas a discussão do crédito postulado pelo credor, nem ao depósito derivado da penhora de ativos financeiros, pois não constituem pagamento com animus solvendi (intenção de quitar a dívida)."

Ao desempatar o respectivo julgamento, o ministro Og Fernandes sugeriu a modulação dos efeitos da nova tese, visando a proteger a segurança jurídica, em particular, pelo impacto da nova tese sobre muitos casos em tramitação, pendentes de julgamento. Essa sugestão, contudo, restou vencida.

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