Opinião

Nova lógica concorrencial e mercadológica do setor de saneamento

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25 de outubro de 2022, 17h03

O advento no novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) provocou uma necessidade de virada de chave significativa na mentalidade das empresas estatais que historicamente atuaram no setor. Nesse contexto de inovação, o objetivo deste artigo é explorar as consequências dessa nova perspectiva concorrencial e mercadológica, explicando o seu sentido e alcance e em que medida ela impacta nas atividades das empresas estatais e privadas de saneamento.

TV Brasil/Reprodução
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Inicialmente, importa observar que o novo marco representa a tentativa de se efetivar a implementação de uma política pública de universalização dos serviços de saneamento até 2033 (artigos 10-B e 11-B). Para tanto, diversas alterações estruturais no mercado foram implementadas, todas elas convergindo para o objetivo de atrair investimentos capazes de ampliar a cobertura até que se atinja o objetivo da universalização.

Na busca por este resultado, houve profunda alteração no papel reservado às empresas estaduais de saneamento. E é natural que isto tenha ocorrido, diante da incapacidade de grande parte delas atingirem as metas de universalização.

Em que pese a heterogeneidade das empresas estaduais em termos de eficiência, fato é que  em nível nacional  o modelo inaugurado pelo Planasa [1] não foi capaz de garantir a tão prometida universalização do saneamento. Isto ocorreu mesmo tendo sido garantido um espaço privilegiado às companhias estaduais, as quais foram assegurados mercados quase cativos, explorados mediante contratos de programa, isto é, as empresas estaduais atendiam os municípios dos Estados em que estavam sediadas, sendo os vínculos celebrados de maneira direta.

Esse cenário gerou vantagens para as empresas estaduais, que utilizaram os contratos de programa em suas bases territoriais criando verdadeiros mercados monopolistas regionais. Inclusive, tais contratos muitas vezes eram firmados sem qualquer padrão claro de universalização ou estipulação de metas de investimento para tanto.  

Com a implementação do novo marco, alterou-se esse paradigma. Se antes poderia se reconhecer um espaço de atuação favorecido em favor das estatais, agora a delegação do serviço de saneamento a um terceiro alheio ao Município exige competição [2]. Agora a regra é que os contratos de concessão no mercado de saneamento devem ser licitados, gerando disputa entre todos os potenciais interessados, independentemente de sua natureza pública ou privada. Com isso, pôs-se fim às vantagens

"[…] que as companhias estaduais possuíam nos regimes anteriores e que as colocavam como atores privilegiados para a prestação do saneamento básico. Elas passam, então, a concorrer com as empresas privadas, em processos licitatórios para futuros contratos de concessão" [3].

Assim, embora se admita a atuação das empresas estaduais no setor, elas estão sujeitas à competição com a iniciativa privada e entre si. Não há mais a possibilidade de elas atuarem articulando-se diretamente com os municípios. A contratação direta só pode se dar para entes vinculados à Administração dos próprios municípios [4].

E mais. A par de exigir que os contratos sejam licitados, o novo marco trouxe a obrigação de as concessionárias comprovarem capacidade financeira para execução dos contratos já firmados (artigo 10-B). A ausência dessa comprovação demanda a adoção de soluções alternativas, capazes de mitigar o risco de não se atingir a universalização.

Como se nota, as mudanças impactam de modo profundo na estrutura do mercado de saneamento, repercutindo na atuação das empresas estaduais atuam e atuaram no setor com certos privilégios. Em síntese, "[…] uma das apostas do chamado novo Marco legal é criar pressões de concorrência no setor de saneamento básico, assim como exigir destas sociedades empresárias [estatais] compromissos explícitos com as metas de universalização" [5].

Como não poderia deixar de ser, a consolidação de uma nova racionalidade setorial implica a necessidade de alteração no modo de atuação das empresas estaduais. Em termos simples, agora elas são obrigadas a competir com as empresas privadas pelo mercado e devem se conformar a essa nova realidade.

Ademais, as estatais competem não só com as empresas privadas, mas entre si, já que a partir do novo marco nada impede que elas atuem em novos mercados, o que é natural e desejável para empresas eficientes. Há, inclusive, um incentivo para que isso aconteça. A nova lógica concorrencial e mercadológica do setor impulsiona as estatais a buscar novos mercados, sob pena de não fazerem frente à atuação das empresas privadas.

Ademais, com a quebra dos monopólios até então existentes e o estabelecimento de uma competitividade geral no setor de saneamento, houve também incentivos para que as estatais passassem a articular-se entre si e com as empresas privadas com vistas a aumentar sua eficiência e gerenciar e repartir os riscos decorrentes dos empreendimentos. Isso leva à celebração de parcerias com investidores privados, implementadas a partir de estratégias diversas, todas elas buscando assegurar a captação de recursos para viabilizar a sua plena atuação em ambientes competitivos.

Com efeito, atualmente, assiste-se a uma verdadeira revolução na atuação das empresas estaduais de saneamento. Se antes essas empresas se limitavam a celebrar contratos de programa nas suas bases territoriais originárias, hoje os desafios são de muito maior monta. Atrair novos investidores, celebrar contratos de parceria, formar consórcios para disputar licitações etc., são todas decorrências da alteração na legislação setorial.

E nesse novo cenário de ampla competição o número de operações privadas só cresce, o que revela ainda mais a importância de as estatais alterarem suas posturas comerciais. Em 2019, 5,2% dos municípios eram atendidos por concessionárias privadas; em 2021 esse número saltou para 9,2%. Isso sem contar os vultosos projetos implementados em Alagoas e no Rio de Janeiro, que implicaram a modificação do ambiente dos serviços nestes estados [6].

Perceber essa nova realidade é fundamental para que as estatais se mantenham tão ou mais eficientes que as empresas privadas. E, nesse sentido, é preciso se atentar para as possíveis dificuldades que envolvem a participação de companhias estaduais em licitações, com destaque para as amarras públicas no que toca a contratação de seguros, garantias, estudos e outros documentos estabelecidos em editais de licitação como necessários à apresentação da proposta. Isto é, há a possibilidade de o engessamento da liberdade de contratar inerente às empresas estatais impedir que elas concorram em grau de igualdade com as empresas privadas.

Seja como for, fato é que a nova lógica mercadológica e concorrencial instaurada pelo Novo Marco Legal do Saneamento impõe às estatais que historicamente atuaram no setor o desenvolvimento de novas formas de atuação. Caso elas não se reinventem de forma a atuar competitivamente com as empresas privadas e, consequentemente, se mostrem incapazes de satisfazer os interesses sociais que justificaram a sua criação, fatalmente se tornarão obsoletas. A adaptação a esse novo ambiente é fundamental, afinal, elas agora precisam se manter operantes em uma realidade de ampla concorrência, o que se faz especialmente delicado em um momento em que a capacidade de investimento público é escassa.

Em uma palavra final, o novo Marco Legal do Saneamento realizou uma aposta ousada, compreendendo o investimento privado como essencial para o atingimento das metas de universalização. E isso trouxe mudanças significativas para o setor, até então dominado pelas empresas estaduais de saneamento. O que antes era quase um monopólio, hoje é um mercado caracterizado pela ampla concorrência. Nesse novo contexto, o esperado é que assistamos a uma mudança radical no perfil de operação das companhias estaduais de saneamento, que deverão reforçar a sua interface negocial caso pretendam cumprir com suas missões institucionais com eficiência.


[1] Plano Nacional de Saneamento, instituído em 1971 e descontinuado em 1986. Foi substituído pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), previsto na Lei nº 11.445/07 e implementado em 2013.

[2] Nos termos do artigo 10, a prestação de serviços de saneamento por entidade que não integre a administração depende de licitação, com posterior celebração de contrato de concessão, sendo vedada a utilização de contratos de programa para esse fim.

[3] TRINDADE, Karla Bertocco e ISSA, Rafael Hamze. Primeiras impressões a respeito dos impactos da Lei nº 14.026/20 nas atividades das empresas estaduais de saneamento: a questão da concorrência com as empresas privadas. In.: GUIMARÃES, Bernardo Strobel; VASCONCELLOS, Andréa Costa de; HOHMANN, Ana Carolina (coords.). Novo Marco Legal do Saneamento, Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 30.

[4] Há, nos termos do art. 10, duas formas de prestação de serviços de saneamento: a prestação direta, realizada por entidade que integre a Administração do ente púbico titular do serviço, via de regra, o Município; a prestação indireta, realizada por empresas estatal ou privada que se sagrar vencedora de licitação.

[5] GUIMARÃES, Bernardo Strobel e PEREIRA, Rafaella Krasinski Alves, Empresas estatais de saneamento básico, novo marco legal e parcerias com a iniciativa privada. In.: GUIMARÃES, Bernardo Strobel; VASCONCELLOS, Andréa Costa de; HOHMANN, Ana Carolina (coords.). Novo Marco Legal do Saneamento, Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 30.

[6] Para uma visão da evolução da participação privada, consulte-se o relatório anual produzido pela ABCON para o ano de 2021, disponível em https://abconsindcon.com.br/relatorio-anual.

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