Fábrica de Leis

Por um olhar mais atento sobre o modo como são produzidas as normas jurídicas

Autores

  • Fabiana de Menezes Soares

    é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) onde coordena o Observatório para Qualidade da Lei e o LegisLab.

  • João Trindade Cavalcanti Filho

    é doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito Constitucional pelo IDP consultor legislativo do Senado e Professor de Direito Constitucional e Legística do IDP. É advogado e também representante do Brasil no Grupo de Formulação de Regras Comuns de Legística para os Países e Regiões Lusófonas (Universidade de Lisboa).

  • Müller Dantas de Medeiros

    é assessor técnico-legislativo da Mesa Diretora do Senado graduado em Direito mestre em Gestão Pública pela UFRN especialista em Poder Legislativo e Direito Parlamentar pelo ILB-Senado e doutorando em Direito pela UFMG.

  • Natasha Schmitt Caccia Salinas

    é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio doutora e mestre em Direito pela USP e master of laws (LL.M.) pela Yale Law School.

  • Renê Braga

    é advogado. Doutor e mestre em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor do curso de graduação em Direito do Unilavras.

  • Roberta Simões Nascimento

    é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal desde 2009 doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do curso de especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

  • Samuel Gomes

    é advogado mestre em Filosofia do Direito e especialista em Poder Legislativo e Direito Parlamentar.

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

6 de setembro de 2022, 8h00

Tem crescido, nas últimas décadas, o interesse acadêmico e profissional pelas técnicas empregadas na elaboração de leis e atos normativos infralegais. Os fundamentos jurídicos da atividade legislativa vêm desafiando não só juristas, mas cientistas políticos, linguistas, cientistas da informação e claro, legisladores. A complexidade das demandas sociais, a pluralidade de atores, a imensa diversidade de contextos de aplicação das leis exige abordagens sintonizadas com nosso tempo. Isso significa que a diminuição do abismo entre os códigos e o direito no cotidiano passa por perspectivas de análise que contribuem para o desenvolvimento de leis & regulações.

ConJur
A primeira diz respeito à mudança na própria atividade legiferante do Estado. Parte significativa das leis e regulamentos produzidos desde pelo menos a segunda metade do século 20 visam, em essência, a reger políticas públicas. Esse tipo de legislação não tem por objetivo principal conferir direitos e atribuir deveres a "sujeitos de direito", tal como o fazia o direito privado clássico, mas sim a estabelecer diretivas para os "implementadores de políticas públicas. Leis e regulamentos assumem, portanto, o papel de instrumentos de "engenharia social" no qual objetivos legislativos, normas de competência, procedimentos de tomada de decisão, regras, princípios e outros tipos de comandos são inseridos no texto legal visando a um único propósito: realizar os objetivos da política pública legislada. Se o objetivo é produzir atos normativos que viabilizem a realização de políticas, um consenso surge em torno da ideia de que a produção normativa deve seguir ritos e empreender análises que potencializem esse papel instrumental da lei, especialmente nas suas dimensões de eficácia e efetividade. A tecnologia trouxe também um especial apelo à simplificação da linguagem e do dever do Estado em assegurar uma maior inteligibilidade dos seus textos, do modo como comunica os seus atos normativos.

A segunda perspectiva é decorrente do primeira. Os novos papéis assumidos pela lei e pelo direito contribuíram para cenários de fragmentação regulatória, instabilidade jurídica, inflação legislativa e disputa entre poderes. Com o advento e transformações do Estado de Bem-Estar Social, a legislação assumiu novos papéis e perdeu seu caráter sistemático, revelando-se insuficiente para tratar de uma realidade altamente cambiante. Nesse sentido, os processos de elaboração legislativo-regulatória necessitam, de um lado, amplificar o contraditório e, de outro, ampliar os canais de informações que veiculem dados e evidências típicos da sociedade de informação.

Um dos efeitos indesejados desse processo é a perda de protagonismo do poder legislativo para oferecer soluções aos problemas sociais mais prementes. Em todo mundo, assistiu-se, primeiro, à ascensão de "Estados Administrativos", em que o poder executivo passou a "legislar" em intensidade maior e com mais racionalidade do que o poder legislativo. Em temos recentes, a própria produção normativa estatal, inclusive a do poder executivo, tem cedido lugar para ambientes regulatórios nos quais normas são produzidas por atores não estatais. Se por um lado o Executivo tem maior celeridade na sua produção normativa, por outro pode exorbitar ou amesquinhar direitos e garantias fundamentais. Por vezes, esses conflitos culminam por depositar sobre o Judiciário o papel de decidir sobre o alcance e os efeitos de políticas públicas 

Embora a atividade normativa não seja privativa do poder legislativo, sendo necessário que outros atores estatais e não estatais regulem os mais variados setores de forma ágil e flexível, entendemos que o direito e a lei só cumprirão plenamente as suas funções instrumentais a partir do fortalecimento — e jamais retração — da atuação dos parlamentos. Para que se restaure a confiança no direito e na lei como mecanismo que garanta a coesão social, ao mesmo tempo em que solucione os problemas sociais contemporâneos, é preciso que sejam incorporados à atividade legislativa parlamentar rigorosos métodos de produção e revisão normativa.

Conferir maior racionalidade ao processo de produção normativa não é imperativo apenas para o executivo, de modo que o legislativo não deve se furtar ao seu dever de produzir boas leis. Afinal, a função legislativa é a mais discricionária dentre todas, na medida em que por força de suas atribuições constitucionais tensiona os limites da legalidade. Portanto, cabe a reflexão sobre os contornos do devido processo legislativo e suas exigências de institucionalização da produção do direito em um sistema político democrático, representativo e deliberativo.  

Isso leva ao terceiro fenômeno aqui destacado: a crescente judicialização do processo normativo, seja em via legislativa, seja em via administrativa. Os tribunais brasileiros e as cortes de outros países têm sido chamados a verificar a conformidade ao direito não somente do produto da atividade normativa, mas também de seu processo de elaboração tendo em vista parâmetros constitucionais, legais e regimentais. Discute-se em que medida deve haver o exame dos elementos e etapas concretos do devido processo normativo e seu significado para validade jurídica das normas assim produzidas.

Nesse contexto, por vezes, o Judiciário acaba sendo instado a dar respostas em ações conclamando a aplicação literal dos regimentos internos das Casas Legislativas, menosprezando o dado de que os acordos entre líderes também são fonte do direito parlamentar e as normas regimentais trazem os contornos para a sua validade. A pretensão de um controle de "regimentalidade" estrita incorre no equívoco de tomar processo legislativo como se fosse semelhante ao processo judicial, ignorando o caráter meramente instrumental dos regimentos internos – que servem para legitimar, pelo procedimento, as decisões legislativas. Ou seja, regimentos não são fins em si mesmos; não faz sentido atender a forma só pela forma, quando não existe divergência entre os parlamentares, representantes legitimados democraticamente para tomar decisões em nome da sociedade. O "jurídico" é diferente do "político" e partir dessa distinção é passo indispensável para compreender o processo legislativo.

É com esse pano de fundo que inauguramos a coluna Fábrica de Leis. Publicaremos, artigos que se propõem a traçar diagnósticos sobre a atuação legislativa dos parlamentos das três esferas da federação brasileira, bem como propor medidas de aperfeiçoamento das técnicas legislativas empregadas pelos legisladores pátrios a partir de postulados de Legística, Teoria da legislação, Legisprudência, Processo Legislativo, Avaliação de Impacto Regulatório, Avaliação Legislativa dentre outras áreas do conhecimento voltadas para o estudo das leis.

Temos testemunhado, em tempos recentes, um crescente protagonismo do Congresso na proposição de leis primárias, ao mesmo tempo em que assistimos a uma retração do poder executivo na proposição de medidas provisórias e até mesmo de leis de matéria de sua competência. Isso obviamente não significa que o poder executivo produza menos normas do que o legislativo. Se considerarmos as normas secundárias ou de natureza infralegal, o poder executivo é responsável por 84% de todas as normas editadas no Brasil. No entanto, é inegável que o parlamento, na era Bolsonaro, destacou-se em relação a legislaturas de governos anteriores na proposição de leis primárias, como emendas constitucionais e leis ordinárias, bem como impulsionou  a avaliação de impacto no Executivo.

Legislar mais não significa legislar melhor, e será nosso papel, nesta coluna, observar a qualidade da produção legislativa parlamentar, o que requer muito mais do que uma análise estritamente jurídico-dogmática das iniciativas legislativas. Embora não pretendamos nos furtar a analisar a robustez jurídica dos enunciados normativos das leis, analisaremos sobretudo as dimensões de eficácia, efetividade e eficiência dos textos legais.

Assumimos, portanto, o compromisso de estimular, nesta coluna, uma agenda que tem como escopo central a produção — ao invés da interpretação e aplicação — de leis. Além de explorar temáticas como os processos interpretativos típicos da legislação, sua racionalidade e teorias da legislação, a dinâmica do sistema de leis e regulamentos, faremos análises sobre o impacto do sistema político e da cultura jurídica no desenho legislativo e regulatório das leis que são fabricadas todos os dias, em todas as unidades federativas, e que não escaparão ao nosso controle de qualidade.

Citações
1 https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-96WPB6 Acesso em: 17.ago.2022.

2 aqui. Acesso em: 17.ago.2022.

3 A expressão é de Roscoe Pound, realista jurídico norte-americano, que defendia o papel preditivo e instrumental do direito sobre as políticas públicas. POUND, Roscoe. Social Control Through Law. New Haven: Yale University Press, 1942. 

4 Um dos autores que melhor retratou a crise do direito e da lei para regular uma sociedade plural e cada vez mais fragmentária é Gunther Teubner. Cf. TEUBNER, Gunther. Juridification. Concepts, Aspects, Limits, Solutions. In: TEUBNER, Gunther (Ed.). Juridification of Social Spheres: a comparative analysis in the areas of labor, corporate, antitrust and social welfare law. Berlin; New York; de Gruyter, 1987.

5. A  expressão  “Estado  Administrativo”  foi  cunhada  por  Dwight  Waldo  para  se  referir  a  uma Administração  Pública  que  concentra  em  si  atividades  típicas  dos  três  poderes  de  um  Estado.  Esta expressão é usualmente adotada nos Estados Unidos, mas é evitada pela literatura jurídica brasileira, talvez porque remeta à ideia – incompatível com uma visão rígida da separação de poderes – de que a Administração Pública exerça funções quase-legislativas ou quase-judicantes. Cf. WALDO, Dwight. The  Administrative  State:  a  study  of  the  political  theory  of american public administration. New York: Ronald Press Company, 1948.

6 NOLL, Peter. Gesetzgebungslehre.Rechtswissenschaften. Rowolt Taschenbuch Verlag GmbH. Reimbek bei Hamburg: juni1973. MORAND, Charles-Albert. Éléments de Légistique Formelle e Matérielle. In: MORAND, Charles-Albert (Org.). Légistique Formelle et Matérielle. Aix-En-Provence: Presse Universitaires d´Aix-Marseille, 1999, p. 17-45.

7 Por todos, cf. ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoría de la legislación. Madri: Civitas, 1997.

8 Por todos, cf. WINTGENS, Luc. F. Legisprudence: Practical Reason in Legislation. Roudledge, 2016.

9 Por todos, France Houle, Analyses d'impact et consultations réglementaires au Canada, Étude sur les transformations du processus réglementaire fédéral : de la réglementation pathogène à la réglementation intelligente, Cowansville, Éditions Yvon Blais, 2012, 604 p

10 Por todos, MADER, Luzius.L’évaluation législative. Pour une analyse empirique des effets de la legislation. Lausanne: Payot, 1985.

11 Esse fenômeno foi noticiado pelo próprio Conjur. Cf. SANTOS, Rafa. Com governo enfraquecido, Congresso se torna protagonista na proposição de leis. Conjur, São Paulo, 19 de julho, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-19/congresso-nacional-assume-protagonismo-proposicao-leis. Acesso em: 17 ago. 2022.

12 Estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBT, 2018) identificou que, desde a Constituição de 1988, em um período correspondente a 32 anos, foram editadas, apenas no nível federal, 168.642 normas. No período, foram produzidas “6 emendas constitucionais de revisão, 108 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 116 leis complementares, 6.308 leis ordinárias, 1.612 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 13.318 decretos federais e 141.680 normas complementares (portarias, instruções normativas, ordens de serviço, atos declaratórios, pareceres normativos, etc.)”.

Autores

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    é professora do curso de graduação e do Programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Doutora e mestre em Direito pela UFMG. Coordenadora do Observatório para Qualidade da Lei e do Legislab (Laboratório de Legislação e Políticas Públicas).

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    é consultor legislativo do Senado Federal, doutor em Direito do Estado pela USP, professor de Direito Constitucional do IDP e advogado.

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    é analista de Processo Legislativo e assessor técnico da mesa-diretora do Senado; Bacharel em Direito e Mestre em Gestão Pública pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte); discente da especialização em Poder Legislativo e Direito Parlamentar pelo ILP (Instituto Legislativo Brasileiro); auditor interno da AL-RN (2018-2020); colaborador do Observatório do Processo Legislativo, do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa)

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    é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio. Doutora e mestre em Direito pela USP. Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School.

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    é advogado. Doutor e mestre em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor do curso de graduação em Direito do Unilavras.

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    é advogada do Senado, professora voluntária na Universidade de Brasília, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) e doutora e mestre em Direito pela Universidade de Brasília.

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    é assessor especial de Relações Internacionais do Senado, advogado e mestre em Filosofia do Direito.

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    bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA). Consultor legislativo do Senado e advogado. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenador-geral da Pós-Graduação em Poder Legislativo e Direito Parlamentar do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB).

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