Por um olhar mais atento sobre o modo como são produzidas as normas jurídicas
6 de setembro de 2022, 8h00
Tem crescido, nas últimas décadas, o interesse acadêmico e profissional pelas técnicas empregadas na elaboração de leis e atos normativos infralegais. Os fundamentos jurídicos da atividade legislativa vêm desafiando não só juristas, mas cientistas políticos, linguistas, cientistas da informação e claro, legisladores. A complexidade das demandas sociais, a pluralidade de atores, a imensa diversidade de contextos de aplicação das leis exige abordagens sintonizadas com nosso tempo. Isso significa que a diminuição do abismo entre os códigos e o direito no cotidiano passa por perspectivas de análise que contribuem para o desenvolvimento de leis & regulações.
A segunda perspectiva é decorrente do primeira. Os novos papéis assumidos pela lei e pelo direito contribuíram para cenários de fragmentação regulatória, instabilidade jurídica, inflação legislativa e disputa entre poderes. Com o advento e transformações do Estado de Bem-Estar Social, a legislação assumiu novos papéis e perdeu seu caráter sistemático, revelando-se insuficiente para tratar de uma realidade altamente cambiante. Nesse sentido, os processos de elaboração legislativo-regulatória necessitam, de um lado, amplificar o contraditório e, de outro, ampliar os canais de informações que veiculem dados e evidências típicos da sociedade de informação.
Um dos efeitos indesejados desse processo é a perda de protagonismo do poder legislativo para oferecer soluções aos problemas sociais mais prementes. Em todo mundo, assistiu-se, primeiro, à ascensão de "Estados Administrativos", em que o poder executivo passou a "legislar" em intensidade maior e com mais racionalidade do que o poder legislativo. Em temos recentes, a própria produção normativa estatal, inclusive a do poder executivo, tem cedido lugar para ambientes regulatórios nos quais normas são produzidas por atores não estatais. Se por um lado o Executivo tem maior celeridade na sua produção normativa, por outro pode exorbitar ou amesquinhar direitos e garantias fundamentais. Por vezes, esses conflitos culminam por depositar sobre o Judiciário o papel de decidir sobre o alcance e os efeitos de políticas públicas
Embora a atividade normativa não seja privativa do poder legislativo, sendo necessário que outros atores estatais e não estatais regulem os mais variados setores de forma ágil e flexível, entendemos que o direito e a lei só cumprirão plenamente as suas funções instrumentais a partir do fortalecimento — e jamais retração — da atuação dos parlamentos. Para que se restaure a confiança no direito e na lei como mecanismo que garanta a coesão social, ao mesmo tempo em que solucione os problemas sociais contemporâneos, é preciso que sejam incorporados à atividade legislativa parlamentar rigorosos métodos de produção e revisão normativa.
Conferir maior racionalidade ao processo de produção normativa não é imperativo apenas para o executivo, de modo que o legislativo não deve se furtar ao seu dever de produzir boas leis. Afinal, a função legislativa é a mais discricionária dentre todas, na medida em que por força de suas atribuições constitucionais tensiona os limites da legalidade. Portanto, cabe a reflexão sobre os contornos do devido processo legislativo e suas exigências de institucionalização da produção do direito em um sistema político democrático, representativo e deliberativo.
Isso leva ao terceiro fenômeno aqui destacado: a crescente judicialização do processo normativo, seja em via legislativa, seja em via administrativa. Os tribunais brasileiros e as cortes de outros países têm sido chamados a verificar a conformidade ao direito não somente do produto da atividade normativa, mas também de seu processo de elaboração tendo em vista parâmetros constitucionais, legais e regimentais. Discute-se em que medida deve haver o exame dos elementos e etapas concretos do devido processo normativo e seu significado para validade jurídica das normas assim produzidas.
Nesse contexto, por vezes, o Judiciário acaba sendo instado a dar respostas em ações conclamando a aplicação literal dos regimentos internos das Casas Legislativas, menosprezando o dado de que os acordos entre líderes também são fonte do direito parlamentar e as normas regimentais trazem os contornos para a sua validade. A pretensão de um controle de "regimentalidade" estrita incorre no equívoco de tomar processo legislativo como se fosse semelhante ao processo judicial, ignorando o caráter meramente instrumental dos regimentos internos – que servem para legitimar, pelo procedimento, as decisões legislativas. Ou seja, regimentos não são fins em si mesmos; não faz sentido atender a forma só pela forma, quando não existe divergência entre os parlamentares, representantes legitimados democraticamente para tomar decisões em nome da sociedade. O "jurídico" é diferente do "político" e partir dessa distinção é passo indispensável para compreender o processo legislativo.
É com esse pano de fundo que inauguramos a coluna Fábrica de Leis. Publicaremos, artigos que se propõem a traçar diagnósticos sobre a atuação legislativa dos parlamentos das três esferas da federação brasileira, bem como propor medidas de aperfeiçoamento das técnicas legislativas empregadas pelos legisladores pátrios a partir de postulados de Legística, Teoria da legislação, Legisprudência, Processo Legislativo, Avaliação de Impacto Regulatório, Avaliação Legislativa dentre outras áreas do conhecimento voltadas para o estudo das leis.
Temos testemunhado, em tempos recentes, um crescente protagonismo do Congresso na proposição de leis primárias, ao mesmo tempo em que assistimos a uma retração do poder executivo na proposição de medidas provisórias e até mesmo de leis de matéria de sua competência. Isso obviamente não significa que o poder executivo produza menos normas do que o legislativo. Se considerarmos as normas secundárias ou de natureza infralegal, o poder executivo é responsável por 84% de todas as normas editadas no Brasil. No entanto, é inegável que o parlamento, na era Bolsonaro, destacou-se em relação a legislaturas de governos anteriores na proposição de leis primárias, como emendas constitucionais e leis ordinárias, bem como impulsionou a avaliação de impacto no Executivo.
Legislar mais não significa legislar melhor, e será nosso papel, nesta coluna, observar a qualidade da produção legislativa parlamentar, o que requer muito mais do que uma análise estritamente jurídico-dogmática das iniciativas legislativas. Embora não pretendamos nos furtar a analisar a robustez jurídica dos enunciados normativos das leis, analisaremos sobretudo as dimensões de eficácia, efetividade e eficiência dos textos legais.
Assumimos, portanto, o compromisso de estimular, nesta coluna, uma agenda que tem como escopo central a produção — ao invés da interpretação e aplicação — de leis. Além de explorar temáticas como os processos interpretativos típicos da legislação, sua racionalidade e teorias da legislação, a dinâmica do sistema de leis e regulamentos, faremos análises sobre o impacto do sistema político e da cultura jurídica no desenho legislativo e regulatório das leis que são fabricadas todos os dias, em todas as unidades federativas, e que não escaparão ao nosso controle de qualidade.
Citações
1 https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-96WPB6 Acesso em: 17.ago.2022.
2 aqui. Acesso em: 17.ago.2022.
3 A expressão é de Roscoe Pound, realista jurídico norte-americano, que defendia o papel preditivo e instrumental do direito sobre as políticas públicas. POUND, Roscoe. Social Control Through Law. New Haven: Yale University Press, 1942.
4 Um dos autores que melhor retratou a crise do direito e da lei para regular uma sociedade plural e cada vez mais fragmentária é Gunther Teubner. Cf. TEUBNER, Gunther. Juridification. Concepts, Aspects, Limits, Solutions. In: TEUBNER, Gunther (Ed.). Juridification of Social Spheres: a comparative analysis in the areas of labor, corporate, antitrust and social welfare law. Berlin; New York; de Gruyter, 1987.
5. A expressão “Estado Administrativo” foi cunhada por Dwight Waldo para se referir a uma Administração Pública que concentra em si atividades típicas dos três poderes de um Estado. Esta expressão é usualmente adotada nos Estados Unidos, mas é evitada pela literatura jurídica brasileira, talvez porque remeta à ideia – incompatível com uma visão rígida da separação de poderes – de que a Administração Pública exerça funções quase-legislativas ou quase-judicantes. Cf. WALDO, Dwight. The Administrative State: a study of the political theory of american public administration. New York: Ronald Press Company, 1948.
6 NOLL, Peter. Gesetzgebungslehre.Rechtswissenschaften. Rowolt Taschenbuch Verlag GmbH. Reimbek bei Hamburg: juni1973. MORAND, Charles-Albert. Éléments de Légistique Formelle e Matérielle. In: MORAND, Charles-Albert (Org.). Légistique Formelle et Matérielle. Aix-En-Provence: Presse Universitaires d´Aix-Marseille, 1999, p. 17-45.
7 Por todos, cf. ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoría de la legislación. Madri: Civitas, 1997.
8 Por todos, cf. WINTGENS, Luc. F. Legisprudence: Practical Reason in Legislation. Roudledge, 2016.
9 Por todos, France Houle, Analyses d'impact et consultations réglementaires au Canada, Étude sur les transformations du processus réglementaire fédéral : de la réglementation pathogène à la réglementation intelligente, Cowansville, Éditions Yvon Blais, 2012, 604 p
10 Por todos, MADER, Luzius.L’évaluation législative. Pour une analyse empirique des effets de la legislation. Lausanne: Payot, 1985.
11 Esse fenômeno foi noticiado pelo próprio Conjur. Cf. SANTOS, Rafa. Com governo enfraquecido, Congresso se torna protagonista na proposição de leis. Conjur, São Paulo, 19 de julho, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-19/congresso-nacional-assume-protagonismo-proposicao-leis. Acesso em: 17 ago. 2022.
12 Estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBT, 2018) identificou que, desde a Constituição de 1988, em um período correspondente a 32 anos, foram editadas, apenas no nível federal, 168.642 normas. No período, foram produzidas “6 emendas constitucionais de revisão, 108 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 116 leis complementares, 6.308 leis ordinárias, 1.612 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 13.318 decretos federais e 141.680 normas complementares (portarias, instruções normativas, ordens de serviço, atos declaratórios, pareceres normativos, etc.)”.
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