Direito Digital

E-health nos Países Baixos e o longo caminho a se percorrer no Brasil

Autores

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

  • Carolina Xavier

    é mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa pesquisadora no Legal Informatics Laboratory (DTI-BR) e no Instituto Legal Grounds e advogada.

25 de outubro de 2022, 8h00

Há algumas décadas, o mundo enxerga nos países nórdicos exemplos de inovação e de liderança no que se refere a diferentes assuntos de interesse público. Não é diferente com o caso da saúde digital — e-health. Ao menos não de acordo com um estudo de 2019, publicado pela Healthcare Information and Management Systems Society (HIMSS) em cooperação com a McKinsey. Para os mais de 500 profissionais da saúde ouvidos na pesquisa, a Holanda, ao lado dos países nórdicos, revela-se enquanto verdadeiro modelo para adoção e uso do e-health na Europa [1]. Dentre os dados publicados pela pesquisa, destaca-se a o grande volume de dados de pacientes que são disponibilizados em meios digitais (91%) e a quantidade de organizações no país que fazem uso do compartilhamento de dados com instituições externas, como farmácias e hospitais (75%). Esses e outros dados demonstram a importância de se compreender o caso holandês — que, afinal, pretende ser o modelo para o restante da Europa — para fins de aprimoramento de projetos e ideias em curso no Brasil.

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E-health pode ser conceituado como a aplicação de ferramentas e tecnologias de informação e comunicação digital para amparar e aprimorar a saúde e a prestação de cuidados em saúde, possibilitando maior eficiência e funcionalidade [2]. Essa é a definição utilizada pelo monitor anual que analisa a disponibilidade e a utilização de iniciativas de e-health na Holanda. Sendo bastante ampla, busca abarcar todo um conjunto de iniciativas, aplicações e serviços que tem sido incentivado e financiado pelo governo do país. Trataremos, no presente artigo, do modelo de e-health holandês, cuja estrutura será dividida e analisada em cinco tópicos principais — que estão, na maior parte dos casos, entrelaçados enquanto objetivos das iniciativas analisadas: inovação, participação, compartilhamento, colaboração e segurança.

No primeiro tópico, estão várias soluções já disponíveis, além de outras em construção, para o chamado cuidado inteligente, i.e., o cuidado baseado em ferramentas tecnológicas acessíveis a cidadãos e profissionais, seja em formato de aplicativos ou plataformas online. Tais soluções encontram-se reunidas no Zorg van Nu, iniciativa do Ministério da Saúde, Bem-Estar e Desporto da Holanda, e surpreendem pela sua diversidade, incluindo desde despertadores para deficientes auditivos e dispensadores inteligentes de medicamentos até plataformas de monitoramento online de doenças crônicas e respiratórias [3]. Com o intuito de impulsionar cada vez mais esses desenvolvimentos, o país tem sediado, nos últimos anos, o Smart Care Rally (Slimme Zorg Estafette), evento que reúne organizações de cuidados em saúde para apresentar e discutir oportunidades e possibilidades de transformação do setor por meio da inovação [4].

O segundo tópico trata de formas de colocar o paciente em uma posição ativa nos cuidados com a saúde. Para tanto, foi estabelecido, recentemente, o chamado Ambiente de Saúde Pessoal (Persoonlijke GezondheidsOmgeving, ou PGO), um espaço online, que pode ser um site ou um aplicativo no celular, no qual o interessado pode reunir e gerenciar seus dados de saúde, incluindo não só dados médicos (vacinas, medicamentos), mas, ainda, informações quanto a hábitos de alimentação ou de sono. Ao paciente é permitido escolher, de início, qual aplicativo dentre um catálogo de opções quer utilizar: há diferenças quanto às funcionalidades e, principalmente, quanto aos prestadores de cuidados com os quais é possível se conectar. Para auxiliar a escolha, foi organizada uma lista com as opções, filtros através dos quais o paciente consegue visualizar qual o programa mais adequado às suas prioridades e módulos de teste para aqueles ainda indecisos [5]. Após, o paciente (maior de 16 anos) pode (1) coletar, a partir da conexão com o computador de seu provedor de serviços de saúde, uma cópia de seus dados médicos no PGO escolhido; (2) adicionar dados manualmente; e (3) adicionar dados vinculados a aplicativos de saúde, como relógios inteligentes. Por ainda estar em desenvolvimento, nem todas as funcionalidades estão disponíveis e nem todos os prestadores estão conectados, mas, em breve, a ideia é que o paciente possa decidir se e com quem compartilha os dados recolhidos. A iniciativa é financiada pelo governo e tem sido intensamente impulsionada no país, por meio de materiais didáticos, inclusive vídeos no YouTube [6] e cursos oferecidos por bibliotecas [7].

Além disso, o tópico da participação também busca capacitar pacientes e profissionais de saúde para esse novo ambiente digital, a partir de cursos, testes, vídeos educacionais [8], bem como da disponibilização de contatos para tirar dúvidas sobre PGOs e questões digitais práticas no geral. Uma das iniciativas nesse sentido é o chamado digicoach [9], um esquema de vouchers oferecido pelo Ministério da Saúde focado no aumento de competências digitais de funcionários que, ao concluírem o treinamento, tornam-se aptos a auxiliarem outros colegas.

O tópico do compartilhamento está relacionado ao desenvolvimento de uma infraestrutura social e técnica que permita a transmissão e a interoperabilidade de dados entre os diferentes níveis de cuidado e atores envolvidos no processo. Para tanto, são necessários esforços voltados à padronização da informação e ao estabelecimento de protocolos para uma melhor comunicação dos sistemas. Focado nisso, o Ministério da Saúde holandês tem estabelecido os Programas de Aceleração de Troca de Informação entre Paciente e Profissional [10] (Versnellingsprogramma Informatie-uitwisseling Patiënt & Professional). O VIPP 5, instituído pelo Regulamento publicado no Diário Oficial em 2020 [11], com duração prevista até julho de 2023, é um programa de implementação que estabelece as bases para as trocas ocorridas por meio dos PGOs, disponibilizando subsídios a instituições de saúde que completassem os módulos e atingissem os resutados e normas desejados. O programa envolve, também, um podcast com conversas sobre o tema; um monitor com metas e prazos concretos, acompanhando os desenvolvimentos das instituições; um e-learning sobre os PGOs direcionado, especificamente, aos prestadores de cuidados em saúde e treinamentos de mudança comportamental [12]. Além do VIPP 5, há diversos outros programas nesse sentido, como o BabyConnect, voltado a instituições de atenção à maternidade; o VIPP 3 [13], concluído em 2021, com foco em cuidados de saúde mental; e o VIPP Farmacie [14], voltado à adaptação dos sistemas utilizados pelas diferentes farmácias e à implementação de um sistema de monitorização de medicamento, de modo que as informações necessárias estejam disponíveis nos PGOs aos pacientes, a fim de se evitar problemas causados por dosagem incorreta ou interações medicamentosas.

O tema também tem sido debatido no campo legislativo, com a WEGIZ (Wet Elektronische gegevensuitwisseling in de zorg), proposta legislativa que prevê a troca obrigatória de certos dados médicos de forma eletrônica — com base em sua necessidade para a prestação de um bom atendimento — e a padronização semântica e tecnológica, buscando alcançar a "interoperabilidade total" [15]. De acordo com o Diretor de Política de Informação do Ministério da Saúde, o objetivo não é regular quais dados específicos devem ser compartilhados, mas sim como, observando-se sempre legislações já existentes, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu e regras sobre sigilo médico [16]. Em 27 de setembro, o projeto foi aprovado por unanimidade pela Câmara dos Deputados e, agora, irá ao Senado para apreciação e votação.

Esses e outros programas acabam por aproximar e envolver todos os envolvidos no processo do cuidado, o que toca o quarto tópico deste texto: a colaboração. Nessa lógica, chama atenção o Health Reserch Infrastructure, parceria público-privada com o objetivo de construir uma infraestrutura integrada de pesquisa de dados de saúde que seja acessível a pesquisadores, cidadãos e prestadores de cuidados. Iniciada em 2015 a partir de conferências, discussões e planejamentos, a iniciativa busca garantir, até 2025, o pleno acesso a uma plataforma comum, a nível nacional, pautada na construção do conhecimento compartilhado que servirá como ferramenta para pavimentar o caminho em direção à medicina do futuro: preventiva, personalizada e participativa. É como prevê a proposta do projeto, apresentada em 2016 [17], com base em conceitos como Open Science e open data, e em respeito aos chamados FAIR principles, que defendem o armazenamento dos dados em formatos localizáveis, acessíveis, interoperáveis e re-utilizáveis (Findable, Acessible, Interoperable e Re-usable). São destacadas, ainda, preocupações com proteção da segurança, certificações, propriedade intelectual e privacidade, temas que serão discutidos no próximo mês, na 7ª Conferência sobre Health-RI.

Uma experiência inicial do projeto foi estabelecida em 2021, pelo chamado Personal Health Train, com foco no acesso controlado aos dados, a partir da percepção dos perigos de uma centralização completa. A abordagem do PTI, portanto, buscou encontrar formas de utilização de dados em bases descentralizadas. Em resumo, a ideia é que as perguntas de pesquisa (envoltas em um "trem") viajem até as "estações" que hospedam os dados, enquanto eles permaneçam onde estão. Essas "estações" podem estabelecer suas próprias regras internas, incluindo quanto ao que a "pergunta viajante" pode fazer nessas viagens [18]. Assim, pesquisadores poderiam trabalhar com dados de diversas fontes, com acesso controlado, garantindo-se a privacidade e a proteção dos dados. Apesar da novidade, já há alguns exemplos de utilização dessa abordagem no país, especialmente na área da pesquisa em saúde [19].

Por fim, no último tópico, as preocupações voltam-se à garantia de um ecossistema seguro e confiável para o extenso armazenamento e compartilhamento de dados, em sua maior parte sensíveis (assim classificados pela GDPR e, no Brasil, pela LGPD). Visando a segurança dessas informações, o país criou o MedMij [20], um selo que permite aos cidadãos verificar quais organizações cumprem os padrões mínimos estabelecidos para a confiabilidade dos sistemas. Esse rótulo também é um requisito para a inclusão dessas instituições em iniciativas como os Ambientes de Saúde Pessoal, ou seja, o paciente só consegue se conectar com hospitais ou clínicas participantes do MedMij. Além disso, a Holanda tem utilizado o chamado DigiID [21], aplicativo de identificação digital necessário para se fazer o login nos provedores de serviços de saúde e em websites de organizações governamentais. Ainda, o Conselho da Informação (Informatieberaad Zorg), ligado ao Ministério da Saúde holandês, tem firmado acordos, estabelecido normas e desenvolvido projetos, como o Email Seguro (Veilige Mail), pelo qual foi elaborado um padrão voltado à segurança do tráfego de e-mail na área da saúde.

Se, a princípio, o e-health parece tratar da mera utilização de tecnologias para aprimorar processos já existentes, os exemplos de esforços de saúde digital na Holanda demonstram que as possibilidades vão muito além. O país chama atenção ao construir um verdadeiro ecossistema de inovação e conectividade entre pacientes, profissionais da saúde, organizações e governos, e é importante que sejam observados os sucessos e as falhas de experiências internacionais como esta para que possam ser aprimorados projetos semelhantes no Brasil, considerando-se, é claro, os diferentes desafios impostos pelas realidades de cada um.

Pensar um sistema de e-health efetivo, eficiente e que, sobretudo, seja capaz de salvaguardar os direitos fundamentais dos usuários não é tarefa fácil. Isso fica claro quando analisamos os elementos envolvidos na criação de um modelo de saúde digital nos Países Baixos. Nesse sentido, iniciativas como a do Ministério da Saúde de implementar no país um sistema de "open health" [22] sem uma verdadeira análise do impacto positivo e especialmente negativo — p.e. externalidades concorrenciais negativas — no sistema de saúde devem ser tomadas com mais cautela. Temos muito a fazer antes de podermos pensar em um sistema de saúde digital no Brasil. Agir com precaução e acompanhando a melhor experiência internacional parece ser o melhor caminho. Uma estruturação apressada de um sistema de e-health em um país de dimensão continental como o nosso pode significar um perigoso tropeço.

 


[1] eHealth Trend Barometer: Annual European eHealth Survey 2019. HIMSS Analytics — Europe. Disponível em: https://europe.himssanalytics.org/europe/ehealth-barometer/ehealth-trend-barometer-annual-european-ehealth-survey-2019. Acesso em: 21 out. 2022.

[2] WOUTERS, M., et al. (2019). Samen aan zet — eHealth-monitor 2019. The Hague & Utrecht: Nictiz & NIVEL.

[3] Zorg van Nu. Disponível em: https://www.zorgvannu.nl/. Acesso em: 21 out. 2022.

[4] De Slimme Zorg Estafette 2023 vindt plaats van 6 februari t/m 3 maart. Slimme Zorg Estafette. Disponível em: https://slimmezorgestafette.nl/. Acesso em: 21 out. 2022.

[5] NEDERLAND, Patiëntenfederatie. Kies een PGO die bij jou past | digitalezorggids.nl. Digitale ZorgGids. Disponível em: https://www.digitalezorggids.nl/kies-je-pgo/. Acesso em: 21 out. 2022.

[6] PGO – YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCifEAhS-mrQMhkrMQvTfUCQ. Acesso em: 21 out. 2022

[7] Bibliotheken bieden les aan over persoonlijke gezondheidsomgevingen. Disponível em: https://www.pgo.nl/nieuws/bibliotheken-bieden-les-aan-over-persoonlijke-gezondheidsomgevingen/. Acesso em: 21 out. 2022.

[8] Leermiddelen. Disponível em: https://www.pgo.nl/leermiddelen/. Acesso em: 21 out. 2022.

[9] Training tot Digicoach – ZonMw. Disponível em: https://www.zonmw.nl/nl/subsidies/openstaande-subsidieoproepen/detail/item/training-tot-digicoach/. Acesso em: 21 out. 2022.

[10] MINISTERIE VAN VOLKSGEZONDHEID, Welzijn en Sport. VIPP programma's — Programma’s en projecten — Informatieberaad Zorg. Disponível em: https://www.informatieberaadzorg.nl/programmas-en-projecten/vipps. Acesso em: 21 out. 2022.

[11] MINISTERIE VAN VOLKSGEZONDHEID, Welzijn en Sport. Regeling van de Minister voor Medische Zorg van 4 februari 2020, kenmerk 1640959-201242-CZ, houdende regels voor het subsidiëren van instellingen voor medisch-specialistische zorg en audiologische centra, voor het stimuleren van digitale informatie-uitwisseling met de patiënt en onderling (Subsidieregeling subsidiëring Versnellingsprogramma Informatie-uitwisseling Patiënt en Professional MSZ en audiologische centra). artikel 3 van de Kaderwet VWS-subsidies. Disponível em: https://zoek.officielebekendmakingen.nl/stcrt-2020-7935.html. Acesso em: 21 out. 2022.

[12] VIPP | De patiënt meer inzicht in zijn eigen zorg. Disponível em: https://www.vipp-programma.nl/vipp-centraal/nieuws/2021/jaaroverzicht-2021-deel-1. Acesso em: 21 out. 2022.

[13] MINISTERIE VAN VOLKSGEZONDHEID, Welzijn en Sport. VIPP3 GGZ – Programma's en projecten – Informatieberaad Zorg. Disponível em: https://www.informatieberaadzorg.nl/programmas-en-projecten/vipps/vipp3-ggz. Acesso em: 21 out. 2022.

[14] VIPP Farmacie | Voor de uitwisseling van gegevens in de Apotheek. VIPP Farmacie. Disponível em: https://vippfarmacie.nl/. Acesso em: 21 out. 2022.

[15] Wet elektronische gegevensuitwisseling in de zorg (35.824). Disponível em: https://www.eerstekamer.nl/wetsvoorstel/35824_wet_elektronische. Acesso em: 21 out. 2022.

[18] The PHT concept | The Personal Health Train. Disponível em: https://pht.health-ri.nl/pht-concept. Acesso em: 21 out. 2022.

[19] Use cases | The Personal Health Train. Disponível em: https://pht.health-ri.nl/use-cases. Acesso em: 21 out. 2022.

[20] MedMij. Disponível em: https://medmij.nl/. Acesso em: 21 out. 2022.

[21] DigiD | Home. Disponível em: https://www.digid.nl/. Acesso em: 21 out. 2022.

[22] Opinião – Marcelo Queiroga: 'Open health' é questão de tempo, coragem e decisão. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/03/open-health-e-questao-de-tempo-coragem-e-decisao.shtml. Acesso em: 21 out. 2022.

Autores

  • é docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), coordenador nacional de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional, diretor do Instituto Legal Grounds, sócio do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados e ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022).

  • é membra do Grupo de Estudos em Novas Regulações de Serviços Direitos, do Instituto Legal Grounds, mestranda em Direito Constitucional pelas universidades de Lisboa e de Hamburgo, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e advogada.

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