Opinião

Usuário de drogas não deve fazer transação penal

Autor

  • Lucas Schirmer de Souza

    é advogado criminalista pós-graduando em Direito 4.0: Direito Digital Cibersegurança e Proteção de Dados na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) secretário-adjunto da Comissão sobre Políticas de Drogas da OAB/SC associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e cursista do CoPlanar: Capacitação de Gestores para a Elaboração de Planos Estaduais e Municipais sobre Drogas — idealizado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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24 de outubro de 2022, 21h32

Como cediço, a Lei de Drogas não traz critérios objetivos para determinar se alguém é usuário ou traficante. Segundo o artigo 28, §2º, da Lei 11.343/06, para determinar se a droga se destinava para consumo pessoal, o juiz deverá considerar o local de apreensão, a quantidade e a natureza da droga apreendida, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes criminais do agente.

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Evidente que todo ser humano é dotado de convicções próprias, que formam nossos pré-conceitos, o que flagra a arbitrariedade na tomada de decisão do magistrado. Registre-se que o primeiro filtro pré-conceituoso parte do policial responsável pelo flagrante.

Ultrapassado este temeroso ponto, considerado usuário sob a primeira perspectiva, feita normalmente um por policial militar, será impelido a assinar um Termo Circunstanciado de Ocorrência, o famoso TC.

Em se tratando de crime de menor potencial ofensivo, é cabível a transação penal, que é um acordo entre Ministério Público e o indiciado para que o processo seja arquivado condicionado à aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, conforme previsto no artigo 76 da Lei 9.099/90. Para fazer jus ao acordo, o acusado deve ser primário, ter bons antecedentes e possuir boa conduta social.

Na prática, normalmente a proposta do órgão ministerial consiste no pagamento de multa pecuniária de aproximadamente um salário mínimo. Vale ressaltar que, no caso de aceite do acusado à proposta do Ministério Público, nada importará em reincidência, sendo vedada, contudo, a utilização do mesmo benefício no prazo de cinco anos.

Primordialmente, deve ser considerado que uma vez realizada a transação penal o agente continua primário, impedido, entretanto, de firmar o acordo novamente, conforme exposto alhures. Ou seja, se for abordado novamente dentro deste período, não poderá realizar a transação penal.

De outro lado, caso não aceite a transação penal, o processo continuará para julgamento pela suposta infração do artigo 28 da Lei 11.343/06, podendo o acusado ser condenado à: 1) advertência sobre os efeitos das drogas; 2) prestação de serviços à comunidade; e 3) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Contudo, em razão da suspensão do Recurso Extraordinário nº 635.659, de Relatoria do excelentíssimo ministro Gilmar Mendes, cujo julgamento é sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, o processo por porte/posse de drogas para uso também deverá ficar suspenso quando chegar no STF questionando o mesmo tema, tendo em vista que o julgamento do RE está sobrestado desde 2015, até então com três votos favoráveis à descriminalização, de forma unânime pelos ministros que já exararam sua perspectiva.

Ademais, dependendo da quantidade de drogas, poderá ser aplicado o princípio da insignificância  que determina a desnecessidade de punição de crimes que geram uma ofensa irrelevante ao bem jurídico protegido pelo tipo penal , e consequentemente a absolvição do acusado.

É impossível prever a aplicabilidade do referido princípio em se tratando de posse de drogas, porquanto inexiste qualquer quantidade especificada em lei, sobretudo para considerar o sujeito traficante ou usuário. Para se aproximar da realidade concreta, é necessária ampla consulta à jurisprudência de seu estado.

Em verdade, não raras vezes o princípio da insignificância é afastado pelos Julgadores sob a argumentativa de que se trata de crime de perigo abstrato, o que não necessita da demonstração de que efetivamente alguém foi exposto a perigo de dano.

Ainda, são tecidas justificativas que a reprovabilidade da conduta é pertinente porque subsiste o 'risco social elevado' (termos retirados de julgados do Tribunal de Justiça Catarinense após pesquisa jurisprudencial), a despeito das fundamentações exaradas.

No que diz respeito à obrigatoriedade de fundamentação nas decisões judiciais (artigo 93, IX, da CRFB c/c artigo 489, §1º, do CPC), é notável a sua inobservância nas veredas da justiça, haja vista que tal garantia constitucional, em muitos casos, demonstra-se quase que inexistente, e, em decorrência desse fato, cada vez mais há o surgimento de cidadãos prejudicados por essa carência de respaldo satisfatório em sentenças, que indiquem a real necessidade da reprimenda penal nos casos de posse de drogas para consumo próprio, em que não se mitiga a esfera individual de ninguém, senão a do próprio do usuário.

De qualquer forma, ainda existe grande probabilidade de ocorrer a prescrição da pretensão punitiva do estado nesse caso, que é de dois anos (artigo 30, Lei 11.343/06), o que também resultaria na absolvição por extinção de punibilidade.

Portanto, o usuário de drogas que estiver sendo processado criminalmente na forma do artigo 28 da Lei 11.343/06 deve ponderar o risco de responder ao processo  ainda que por mera militância , e de firmar a transação penal com o MP, sob o risco de impedimento à benesse do acordo pelo prazo de cinco anos.

Na América do Sul, com exceção de situações específicas (como durante a condução de veículos), nenhum país criminaliza o consumo simples, ou seja, a lei não tipifica como crime estar sob o efeito de substâncias ilícitas. Naqueles que o faziam, Argentina e Colômbia, suas respectivas Cortes Supremas declararam a norma como inconstitucional, caminho que o Brasil tende a seguir após o julgamento do RE 635.359. Não obstante, alguns países (como Venezuela, Paraguai e Bolívia) preveem o tratamento compulsório para o uso.

A proibição do porte/posse para o uso conduziu à estigmatização e marginalização dos usuários de drogas, sem mencionar que retira das mãos dos que constroem as políticas públicas a responsabilidade da distribuição das drogas que circulam no mercado paralelo, transferindo este poder para onde ele não deveria estar (tráfico de drogas).

Finalmente, na América Latina somente o Brasil, o Suriname e as Guianas criminalizam o porte de drogas para uso pessoal. Em lugares como o Paraguai e a Colômbia, pessoas podem portar substâncias ilícitas desde 1988 e 1994, respectivamente.

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