Opinião

"Tribunal da internet": terra sem lei de juízes que condenam pelo cancelamento

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17 de outubro de 2022, 20h27

Recentemente vieram a público diversos episódios envolvendo manifestações relacionadas com o cenário político polarizado que estamos vivendo no Brasil. Destaco especialmente casos que vieram à tona advindos de colegas integrantes da advocacia mineira e paulista, que estão no centro do debate público. Em um dos casos, uma advogada instiga seus interlocutores a não viajar para o Nordeste brasileiro dizendo que não iria "alimentar quem vive de migalhas", em vídeo gravado durante a apuração das eleições, quando o candidato petista assumiu a liderança da contagem em razão dos votos conquistados naquela região. Em semelhantes circunstâncias, outra afirmou: "Não conheço o Nordeste e nem quero conhecer. Deus me livre desse lugar de gente horrorosa. Ignorantes". Por isso, foram acusadas de "xenofobia". Em outro episódio um advogado, em um grupo privado de WhatsApp, afirma que "esse bandido merece ser fuzilado", logo após um terceiro enviar um vídeo em que o candidato petista relata como seria possível instaurar o socialismo no Brasil. Por isso, ele foi acusado de "crime de ódio", "intolerância" e de "apologia à violência".

O "Tribunal da internet" condenou todos imediatamente por meio do cancelamento. Como verdadeiros baluartes da justiça em vestes de rainha de copas pediam: 'cortem as cabeças'! E, nesses casos, como se trata de advogados, além das imputações criminais, o "ódio do bem" também afirmou que teriam ocorrido violações de caráter ético-disciplinares, que demandariam providências urgentes da Ordem dos Advogados do Brasil — mesmo que nenhum deles tenha se manifestado como advogado.

É importante lembrar, no entanto, que, se a todos é permitido formar suas opiniões de forma imediata a respeito dos fatos, mesma sistemática não se aplica às consequências legais e ao tratamento institucional às pessoas com eles envolvidas. Explico: ainda que haja provas cabais de uma conduta, o enquadramento jurídico e as consequências aplicadas a quem a praticou dependem de apuração que possibilite o exercício do direito de defesa. Afinal, a título de exemplo, temos todos os anos milhares de crimes graves sendo filmados e cuja autoria é incontestável: furtos, roubos, assassinatos, entre outros. Mas pode uma pessoa que é filmada atirando em outra que venha a falecer (cometendo, portanto, o crime de homicídio previsto no artigo 121 do Código Penal) ser imediatamente condenada? É certo que não. Não pode nem sequer ser presa (se não for hipótese de flagrante delito) de forma imediata sem o devido processo legal: a autoridade policial ou o Ministério Público precisa requerer a um juiz a decretação da prisão, que só pode ser deferida se observados os requisitos legais.

Se isso é uma verdade para um crime grave como um homicídio, porque nos chamados "crimes de ódio" cometidos nas redes sociais se admitem antecipações condenatórias e aplicação imediata da pena de linchamento virtual (que não existe em nenhum dispositivo legal e muitas vezes é tão dura e desproporcional)? Em primeiro lugar é preciso esclarecer o óbvio: "crimes de ódio" não existem, são uma nomenclatura leiga inventada na internet para autorizar a imediata aplicação da pena pelos "juízes donos da verdade". E aqui eu não me refiro a posicionamentos institucionais — em vídeos das lideranças ou em notas públicas, que precisam sim ser veiculados de forma imediata para remediar danos e esclarecer posicionamentos — mas aos ataques de caráter pessoal realizados de forma absolutamente covarde contra quem tenha cometido um erro, muitas vezes advindos de supostos defensores de direitos humanos que, diante de um tráfico de drogas, por exemplo, com prisão em flagrante, são os primeiros a clamar por “presunção de inocência”.

A falácia de que existem "crimes de ódio" é fruto de uma absoluta falta de técnica jurídica no tratamento das questões que envolvem as manifestações públicas na internet — "crimes de ódio", no máximo, são um gênero do qual fazem parte outros tipos penais específicos. Ninguém será processado e julgado "por crime de ódio" (exceto se algum magistrado se achar no direito de inventá-lo de forma criminosa e leviana — o que já é uma realidade pontual, infelizmente até mesmo nas nossas mais altas cortes). Assim, nota-se, portanto, que muitas reações são fruto do imediatismo demandado pelas redes sociais sem observar o real teor de qualquer dispositivo legal.

Em relação aos casos recentes acima apontados, cabe uma análise específica a respeito dos tipos penais erroneamente imputados. Nos primeiros, acusaram-se as advogadas da prática do crime de xenofobia, com base no disposto no artigo 20 da Lei 7.716/1989, que define os crimes de racismo. Eis o teor do dispositivo: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Em primeiro lugar é importante observar que a as regiões do Brasil não se enquadram no conceito de "procedência nacional", afinal, o nosso país é uma só nação, mas, como a jurisprudência também é fonte do direito, e não apenas a letra fria da lei, cabe ressaltar que já há casos esparsos de aplicação análoga (indevida) para enquadrar condutas preconceituosas de caráter regional.

É importante observar que, para que uma conduta seja considerada crime, é preciso que os atos praticados se enquadrem nos núcleos do tipo penal. Nesse caso, muito embora possa ter havido falas com intento de sugestionar comportamento de terceiros, os destinatários da fala foram as pessoas que viajam para o Nordeste para que deixem de para lá se deslocar; ou afirmação de que não há vontade de conhecer tal região. O caráter preconceituoso (para mim, indiscutível, e, por isso mesmo, reprovável) das falas não permite o enquadramento como "discriminatório" do ponto vista criminal, que demanda tratamento diferenciado a uma pessoa ou a um grupo de pessoas, não a um lugar. "Ah, mas e o 'pessoas que vivem de migalhas' e 'gente horrorosa'"? Essas falas de caráter preconceituoso inquestionável, podem ter caráter ofensivo, mas o crime de injúria não se tipifica se a conduta tem destinatário genérico, e essas ofensas não se conceituam como discriminação em um contexto de poder, mas apenas geográfico (incapazes, dessa forma, de atrair as imputações prevista na referida lei).

É importante observar, portanto, que a Lei 7.716/1989, que tipifica os crimes de racismo, não criminaliza todas as formas de preconceito — que, mesmo que às vezes não possam ser punidas em âmbito criminal, por ausência de previsão legal, devem sim ser sempre rechaçadas institucional e publicamente. Preconceito não pode e não deve ser admitido e tolerado!

Mas não se pode, por isso, flexibilizar o Princípio da Legalidade e da Ultima Ratio, segundo os quais o Direito Penal pune como crime apenas as condutas mais graves desde que expressamente previstas em lei. Ou seja: há uma série de condutas de caráter absolutamente reprovável do ponto de vista social e moral que, ainda, não são crimes. Em relação a isso não cabe se admitirem aplicações analógicas em âmbito criminal ou o chamado "ativismo judicial", mas sim mudar a lei a partir do devido processo legislativo.

Do mesmo modo, no caso de alguém que diga que alguém "merece ser fuzilado" também não há crime. A quem tenha veiculado falas desse tipo, muitas vezes se imputa a prática de "crimes de ódio", "ameaça" e "apologia à violência". Nesse sentido, conforme acima apontado, os chamados "crimes de ódio" não se encontram previstos na legislação criminal brasileira. O que há são outros tipos penais com requisitos próprios tais como ameaça, apologia ao crime, injúria e difamação — então esse esclarecimento técnico precisa ser repisado. Pois bem, o crime de ameaça encontra-se previsto no Código Penal da seguinte forma: "Art. 147 – Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave".

Ou seja, quem pratica um crime de ameaça dirige intimidação específica, afirmando que irá (em primeira pessoa, ou falando de terceiro — que outra pessoa irá) causar a alguém um mal injusto e grave. É um crime necessariamente doloso, então a vontade e a consciência do sujeito ativo precisam estar destinadas à intimidação da vítima. Assim, em primeiro lugar, para avaliar a tipicidade da conduta, seria importante analisar a conjuntura, para se verificar se se tratou de algo concreto ou de uma infeliz (repisa-se: indevida, reprovável) figura de linguagem descontextualizada. Mas, no "Tribunal da Internet", a condenação não demanda contexto, frases isoladas e vídeos cortados são suficientes para os juízes "donos da verdade, acima do bem e do mal".

Ainda sobre o crime de ameaça, quando uma fala é dita sobre terceiro, não presente no momento da sua veiculação, não se tipifica, a não ser a fala seja intencionalmente dita a pessoas que conhecem a pessoa objeto da manifestação. Do contrário, trata-se de crime impossível. Ora, se a intenção é ameaçar o Fulano, do que adianta dizer a respeito da possibilidade de causar mal a ele a um Sicrano que não o conhece? Além disso, quando a afirmação é no sentido de que alguém "merece" algo, não se trata de ameaça, mas sim de uma opinião pessoal (mesmo que reprovável) sem caráter intimidatório. Quem afirma que uma pessoa merece determinada consequência não está afirmando que vai (ou que um terceiro vá) causar nada a ela. Portanto, afirmar "Fulano merece ser fuzilado/morrer" mesmo sendo absolutamente reprovável do ponto de social e moral, não é crime (a não ser que tal afirmação se dê em contexto que permita inferir efetividade e que seja capaz de chegar ao destinatário para intimidá-lo ou a terceiros que possam se sentir intimidados por ele, como amigos e familiares).

Para além disso, há, ainda, as questões atinentes ao devido processo legal. É apenas por meio dele que as instituições, dentro de um Estado Democrático de Direito, podem aplicar as consequências normativas a quem quer que seja. Portanto, antecipação de juízos de valor a respeito da existência de crimes ou de infração ético-disciplinares expõem precipitadamente os envolvidos e maculam a lisura e a imparcialidade dos procedimentos que poderão, no futuro, ser instaurados. Por outro lado, mesmo em crimes graves como o homicídio, ainda que se trate de uma conduta filmada de forma inequívoca, o devido processo resguarda o direito de defesa, em que o acusado pode apresentar seus argumentos como ilegalidade das provas ou mesmo apontar ausência de ilicitude da conduta, como, por exemplo, por a ter praticado em legítima defesa ou estado de necessidade. Será que às pessoas que cometem condutas por meio de fala ou texto na internet também não deve ser assegurado, no mínimo, o mesmo que se assegura aos homicidas e traficantes: ampla defesa, contraditório e devido processo legal?

Muito grave, também, são as condenações pelo "Tribunal da Internet", que, por serem imediatas, acabam fulminando de forma avassaladora a reputação e a saúde mental dos envolvidos — ainda que possam ser inocentes, ainda que arrependidos, ainda que mal interpretados, são "cancelados". Mais uma vez: para pessoas presas em flagrante delito, por exemplo, de homicídio ou tráfico de drogas, muitas vezes, os mesmos que exigem "presunção de inocência" (que é sim uma garantia constitucional inafastável), são os primeiros a sentir autorizados a cometer crimes contra quem tenha sido "flagrado" na internet falando algo que se considere absurdo.

Contudo, ainda que se trate de um absurdo, ainda que as falas veiculadas por quem quer que seja sejam absolutamente reprováveis, não se pode relativizar a gravidade dessas outras condutas praticadas na sequência.

Os juízes do "Tribunal da Internet" muitas vezes cometem crimes e a gravidade do que quer suas vítimas tenham dito não altera a tipicidade e a ilegalidade dos ataques cometidos como se o meio virtual fosse "uma terra sem lei". Quando as pessoas se sentem no direito de xingar e ofender, trata-se do crime de injúria. Quando divulgam algo com intuito de acabar com a reputação de alguém, trata-se do crime de difamação. Quando se dirigem a alguém afirmando que vão lhe causar mal injusto e grave, trata-se do crime de ameaça. Quando se causam danos graves à saúde mental, trata-se do crime de lesão corporal. Os fins não justificam os meios em um Estado Democrático de Direito!

Vale destacar que a dimensão dos fatos na internet é, muitas vezes, responsabilidade de terceiros, que compartilham e comentam condutas de forma precipitada e aumentam a exposição inicial. Isso é ainda mais grave quando há exposição externa desautorizada de mensagens veiculadas em âmbito íntimo, afinal, entre amigos ou colegas a conotação dada muitas vezes é absolutamente diferente da que o meio externo dá a um trecho isolado, um print desautorizado e descontextualizado. Nesse ponto, é preciso relembrar episódio recente em que empresários foram vítimas de busca e apreensão ilegal com base apenas em vazamento de mensagens privadas a veículo de imprensa, ou seja: sem qualquer prova de autoria do ponto de vista técnico (e sem qualquer possibilidade de tipicidade da conduta — mas isso é assunto para outro texto no futuro).

Por fim, observo o quão especialmente covarde é o "Tribunal da Internet" com as mulheres. Se muitas pessoas são punidas de forma imediata, à revelia de qualquer possibilidade defesa ou de contextualização, as mulheres muitas vezes são expostas a uma série de ataques de gênero: homens e mulheres se sentem no direito de atentar contra a dignidade sexual da mulher que tenha dito algo que se considere inapropriado, com ataques como "puta", "vagabunda" e outras afirmações de baixo calão que podem até mesmo ser configuradas como apologia ao estupro. E essa misoginia escancarada acaba sendo ignorada, tolerada ou até mesmo estimulada: "bem-feito", "ela merece", "ela que pediu", "agora aguenta" — dizem baluartes da justiça (muitas vezes até mesmo que, de forma hipócrita, se autointitulam feministas). Isso é absolutamente repugnante.

Essas são reflexões pontuais buscando que as pessoas se lembrem de que, quando se fala em crime, existem questões legais e científicas (Direito é uma ciência, não uma conversa de boteco), que precisam ser levadas em consideração. Acusar alguém de ter praticado um crime é uma coisa muito séria. Dizer algo que pode ofender os outros, também. É preciso ter parcimônia e responsabilidade, especialmente nesses tempos em que os ânimos estão tão aflorados em razão dos embates políticos. A polarização é perniciosa, cega as pessoas e faz com que graves violações às garantias constitucionais sejam negligenciadas. "Pimenta nos olhos dos outros é refresco", é a máxima dos juízes donos da verdade que estão acima do bem e do mal, que fecham os olhos e ignoram abusos perpetrados pelo próprio Poder Judiciário.

Que tenhamos mais cautela e empatia nos julgamentos; que tenhamos mais técnica para tratar de assuntos criminais; que sejamos mais rigorosos e coerentes ao exigir a observância dos preceitos constitucionais. Superado o período eleitoral, que possamos entender que somos um país rico e diverso, que estamos em uma democracia que deve permitir divergências; que somos um povo alegre, esforçado e brilhante ("O melhor do Brasil é o brasileiro – e a brasileira"), que pode e deve, mesmo divergindo, seguir caminhando junto para construir um país melhor, mais seguro, desenvolvido e justo para todos!

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