Crimes da ditadura

União vai ao STF para não pagar indenização a perseguido pela ditadura

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23 de outubro de 2022, 7h49

O pagamento de indenizações a anistiados políticos, perseguidos e torturados durante a ditadura militar no Brasil depende de uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

STF
STFEspecialistas apontam estratégia protelatória da União ao recorrer ao Supremo

O Ministério Público Federal já se manifestou no processo a favor dos pagamentos, com o fundamento de que crimes envolvendo a violação dos direitos humanos fundamentais durante o regime militar não prescrevem.

"A União agora está levando o assunto para o STF. O parecer do MPF teria sido no sentido de manter o entendimento do STJ. É importantíssimo que a Suprema Corte confirme a tese pacificada no STJ. E, nesse sentido, o posicionamento da PGR tem grande relevância", explica o procurador regional da República no Ministério Público Federal em São Paulo Marlon Weichert.

Para que o tema seja julgado, o relator do RE, ministro Nunes Marques, deve liberar o processo para julgamento, e a presidente do Tribunal deve agendar. Não está descartada a hipótese de uma decisão monocrática, mas é mais provável, segundo especialistas, que ela seja julgada no Plenário Virtual do Supremo.

Procrastinação
Segundo especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a intenção da União ao levar o tema para a Corte Suprema é apenas protelar a condenação, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que as indenizações não prescrevem.

A advogada Irene Gomes, do Distrito Federal, representante de várias vítimas da ditadura, afirma que "o recurso extraordinário tem caráter meramente procrastinatório. Visa, tão somente, a atrasar o andamento processual para ganhar tempo para a União. A parte interessada pode, inclusive, a depender dos demais conteúdos processuais, questionar a má-fé da União".

Argumento similar é utilizado pelo advogado Wilson Quinteiro, do Paraná, autor de tese sobre a inexistência de prescrição dos crimes contra perseguidos e ex-presos políticos brasileiros. "Acredito que eventuais disputas judiciais sobre o tema, embora possam continuar ocorrendo, são certamente tentativas de mera argumentação diante do já positivado pelo Judiciário."

O STJ já havia admitido a imprescritibilidade das ações indenizatórias que envolvem a violação de direitos fundamentais durante a ditadura militar, ao formular a Súmula 647, no ano passado, "garantindo, inclusive, às famílias daqueles que tiveram seus direitos fundamentais violados o direito de alcançar a reparação tanto material quanto moral", explica Quinteiro.

De acordo com a Súmula 647, "são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar".

União X MPF
O recurso extraordinário foi ajuizado pela União contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que condenou o Estado a pagar R$ 90 mil a um anistiado por danos morais sofridos em decorrência da prisão, perseguição política e tortura durante o período de repressão.

A União alegou que a decisão do TRF-5, ao reconhecer a obrigação do Estado de indenizar o anistiado político por danos morais, contrariou o artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal, que diz que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

O Executivo sustenta que o direito prescreveu, uma vez que a ação judicial foi interposta mais de 40 anos depois do fato. Argumentou, ainda, que a Lei 10.559/2002 já garantiu a reparação econômica para os anistiados políticos, tendo vetado no artigo 16º o pagamento cumulativo de benefícios ou indenizações com o mesmo fundamento. Por fim, considerou excessiva a quantia estipulada pelo Tribunal e pediu a redução do valor.

Segundo o MPF, representado pela subprocuradora-geral da República Cláudia Sampaio Marques, o recurso da União não deve ser provido, já que os crimes de violação aos direitos fundamentais cometidos durante a ditadura militar são imprescritíveis e não se aplica o prazo de cinco anos previsto no Decreto 20.910/1932.

No despacho, Sampaio cita trecho da decisão do STJ no REsp 1.989.264, que decidiu que "é possível cumular a indenização do dano moral com a reparação econômica da Lei 10.559/2002", ao contrário do que alega a União.

Para Cláudia Marques, não houve violação do art. 37, § 6°, da Lei Maior, pois estão configurados os requisitos da responsabilidade objetiva do Estado.

Já em relação à queixa sobre o alto valor da indenização, ela afirma que rever a quantia exigiria reexame de fatos e provas. A representante do MPF aponta que o procedimento é proibido em recurso extraordinário, conforme estabelece a Súmula 279 do STF.

"Isso significa que o STF deve acatar a manifestação do Ministério Público Federal no sentido de que os temas questionados têm caráter infraconstitucional somente. Não dizem respeito, direto, à ofensa de preceito constitucional. Ficam à borda, têm caráter apenas reflexos da Constituição Federal", explica a advogada Irene Gomes.

Jurisprudência consolidada
 

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Estado já se comprometeu a indenizar por crimes cometidos na ditadura

O STJ já tem jurisprudência clara sobre o tema. Além do precedente citado pelo MPF, há ainda o Agravo Interno no REsp 1.710.240/RS, em que a 2ª Turma do STJ reafirmou o entendimento de que a prescrição quinquenal, disposta no art. 1º do Decreto 20.910/1932, não se aplica aos crimes da ditadura.

Esse mesmo entendimento foi suscitado pela ministra Regina Helena Costa no REsp 2.006.473, em setembro deste ano.

"No caso dos anistiados, ex-presos e perseguidos políticos, o direito a indenização, seja na esfera material ou moral é cediço, tanto em julgamentos, como pela doutrina", diz Wilson Quinteiro. "Ao ter sido formulada a Lei nº 10.559/2002, o Estado brasileiro reconheceu sua obrigação de indenizar, tanto na esfera material — por meio da Comissão de Anistia, mas não exclusivamente por ela — como na esfera moral — por meio das ações judiciais, apenas — e o STJ já entendeu como cumuláveis tais indenizações, por meio da súmula 624."

De acordo com a Súmula 624, "é possível cumular a indenização do dano moral com a reparação econômica da Lei n. 10.559/2002", a Lei da Anistia Política.

Responsabilidade solidária
Além disso, não apenas o governo federal, mas também todos os estados podem ser responsabilizados pela sua conduta durante o regime militar, já que possuem responsabilidade solidária na infração aos direitos fundamentais.

Embora as diretrizes da perseguição fossem originadas do governo federal, eram, muitas vezes, exercidas por entes dos estados-membros, como, por exemplo, as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops), órgãos estaduais de repressão.

Os próprios estados, ao editar leis que fixam a indenização, passaram a assumir a sua parcela de responsabilidade nas perseguições, torturas e prisões cometidas à época. Quinteiro destaca ainda que a própria União, ao efetuar o pagamento administrativo de indenização, reconheceu a veracidade dos fatos, bem como sua responsabilidade pelos danos causados.

Por exemplo, o estado de Santa Catarina responde solidariamente com a União a ação envolvendo repressão da força de repressão exercida pelo poder estadual. Os agentes do Executivo catarinense tinham conhecimento da atuação da brigada militar, a polícia militar desse estado, na repressão política durante a ditadura. Esse entendimento foi firmado pela 4ª Turma do TRF-4, no AG 5007502- 86.2019.4.04.0000.

"Havia policiais catarinenses atuando na cidade de Itapiranga e as autoridades em Florianópolis foram alertadas sobre prisões irregulares que estavam ocorrendo. Houve evidente falta do serviço, a resultar na responsabilidade do estado pela reparação dos danos suportados pelas vítimas", demonstra o advogado paranaense.

"Dessa forma, acredito que, as questões referentes à imprescritibilidade já estão há muito tempo superadas pelo Judiciário, não havendo muito que se debater. A única hipótese de argumentação do Estado reside na comprovação da perseguição, que deve ser analisada caso a caso", avalia Quinteiro.

RE 1.399.116

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